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Ameaça de endurecimento de Trump se choca contra o muro dos militares

Comandantes do Exército, reformados e na ativa, rechaçam duramente a militarização da resposta aos protestos raciais. O ex-chefe do Pentágono acusa o presidente de “abuso de poder”

Amanda Mars
Donald Trump, na Casa Branca com Jim Mattis em julho de 2018.
Donald Trump, na Casa Branca com Jim Mattis em julho de 2018.KEVIN LAMARQUE
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Un manifestante con una mascarilla en la que puede leerse "no puedo respirar" sostiene un cartel que reivindica los 8 minutos y 46 segundos. Foto: Reuters
8 minutos e 46 segundos: um símbolo de protesto contra o racismo nos Estados Unidos
Former Minnesota police officer Derek Chauvin poses for an undated booking photograph taken after he was transferred from a county jail to a Minnesota Department of Corrections state facility.  Minnesota Department of Corrections/Handout via REUTERS. THIS IMAGE HAS BEEN SUPPLIED BY A THIRD PARTY.
Derek Chauvin, o policial responsável pelos 8 minutos e 46 segundos de brutalidade que incendiaram os EUA
President Donald Trump returns to the White House after visiting outside St. John's Church, Monday, June 1, 2020, in Washington. Part of the church was set on fire during protests on Sunday night. (AP Photo/Patrick Semansky)
Trump busca ativar sua base eleitoral com retórica dura contra os protestos

A resposta de ferro de Donald Trump à onda de protestos raciais, em que defende o uso do Exército para conter a violência, causou estupor entre os militares norte-americanos. O presidente topou com uma enxurrada de críticas públicas de comandantes reformados e na ativa. O repúdio do chefe do Pentágono, Mark Esper, se somou a uma declaração demolidora de seu predecessor, Jim Mattis, que acusa o presidente de “abuso de poder” e desobedecer a Constituição. Antes, outro funcionário de alto escalão do Departamento de Defesa renunciou por discordar da dispersão violenta de uma concentração pacífica. O chefe do Estado Maior Conjunto, Mark A. Milley, enviou uma mensagem aos comandantes lembrando sobre o direito dos norte-americanos a se expressar e se reunir.

O ardor guerreiro de Trump trombou com os próprios militares. A equipe de confiança do republicano planejou segunda-feira como um golpe na mesa para apresentar o presidente dos Estados Unidos como o homem da “lei e da ordem” pela crise social desatada no país, que teve como detonador a morte de um afro-americano em uma brutal prisão policial. A ameaça, entretanto, de utilizar o Exército se os governadores dos Estados não fossem capazes de conter os distúrbios com seus próprios recursos ―a polícia e os reservistas da Guarda Nacional― e a desocupação posterior de manifestantes pacíficos diante da Casa Branca voltou como bumerangue e rompeu a habitual discrição do mundo militar.

Na noite de quarta-feira, pouco depois do chefe do Pentágono refutar as colocações de Trump em entrevista coletiva, o ex-secretário de Defesa Jim Mattis atacou o presidente em uma declaração explosiva, publicada pela revista The Atlantic. Mattis, que renunciou a seu cargo em dezembro de 2018 por discordâncias com Trump sobre a retirada de tropas da Síria, acusa o presidente de tentar burlar a Constituição e se declara “consternado e irritado” pela resposta da Casa Branca às mobilizações. “Donald Trump é o primeiro presidente da minha vida que não tenta unir o povo americano, sequer finge. No lugar, tenta nos dividir”, afirma o general, de 69 anos.

Mattis, que passou 41 anos nos Marines, é um militar condecorado especializado no Oriente Médio e muito respeitado no mundo militar, onde é conhecido pelos apelidos de Cachorro Louco e Monge Guerreiro. Não havia criticado dessa forma tão direta e pública ao presidente dos Estados Unidos desde que deixou seu posto, mas à época já havia afirmado que o mandatário precisava de um secretário de Defesa “com pontos de vista mais alinhados aos seus”. Ele se opunha à retirada das tropas anunciada por Trump sem contar com os aliados.

Na quarta-feira se expressou dessa maneira: “Nunca sonhei que as tropas que fizeram o mesmo juramento que eu [de defender a Constituição] receberiam sob nenhuma circunstância a ordem de violar os direitos constitucionais de seus concidadãos e ainda menos para tornar possível uma estranha foto ao comandante em chefe eleito”.

O general Mattis se referia ao polêmico episódio de segunda-feira, quando a polícia e a Guarda Nacional ―o Exército de reservistas que depende dos Estados― desalojaram com gás lacrimogêneo uma manifestação pacífica diante da residência presidencial, antes do toque de recolher imposto na cidade, para que Trump pudesse caminhar à igreja de Saint John ―atacada por vândalos na noite de domingo― e posar com uma Bíblia na mão: “Sabemos que somos melhores do que o abuso da autoridade executiva que presenciamos na praça Lafayette. Precisamos repudiar e fazer com que prestem contas os que estão no poder e que queiram debochar de nossa Constituição”.

Essa mesma desocupação violenta levou James Miller, um membro de alto escalão do Pentágono, a renunciar de seu cargo no Conselho Assessor de Defesa. Em uma carta publicada no The Washington Post, considerou que a presença de seu chefe, o secretário da Defesa, Mark Esper, nesse ato significava um respaldo ao uso da força na dispersão dos manifestantes. Miller, que serviu como subsecretário de Defesa para política durante a Administração de Obama, disse em sua carta a Esper: “Quando me incorporei ao conselho fiz um juramento que o senhor conhece, apoiar e defender a Constituição dos Estados Unidos [...]. O senhor fez o mesmo juramento em 23 de julho de 2019, quando assumiu seu cargo de secretário de Defesa. Acho que violou esse juramento na segunda-feira”.

A carta foi publicada na terça-feira e Esper, na quarta de manhã em entrevista coletiva, corrigiu Trump e afirmou que não sabia que a foto da discórdia ocorreria. Naquele mesmo dia, o chefe do Estado Maior Conjunto, Mark A. Milley, enviou uma mensagem aos comandantes em que lembrava que cada membro das Forças Armadas havia jurado defender a Constituição, o que “outorga aos americanos o direito à liberdade de expressão e de reunião pacífica”.

O presidente dos EUA só pode mobilizar tropas sem a autorização dos governadores dos Estados invocando a Lei de Insurreição, assinado por Thomas Jefferson em 1807 com a finalidade de evitar revoltas contra o Governo da nação. A cidade de Washington é o único lugar em que Trump pôde cumprir sua palavra de utilizar o Exército e na segunda-feira havia mobilizado efetivos da polícia militar. De acordo com o Departamento de Defesa, até 1.600 soldados foram enviados à região esperando ordens. Para Mattis, “militarizar a resposta, como vimos em Washington, estabelece um falso conflito entre os militares e a sociedade civil”.

As críticas vão além do episódio concreto, abarcam a resposta geral de Donald Trump. O general de quatro estrelas John Allen, ex-comandante das forças da OTAN e dos Estados Unidos no Afeganistão, chamou o ocorrido na segunda-feira como “um dia horrível para os Estados Unidos e sua democracia”. Em um artigo publicado no Foreign Policy, com o título Um Momento de Vergonha Nacional e Perigo – e Esperança, Allen, hoje presidente do think tank Brookings Institution, diz que “ainda que possam existir criminosos experientes nos dois lados dos distúrbios, são minoria”. No discurso à nação de segunda, Trump “mencionou George Floyd, mas não tocou absolutamente nos problemas principais”. O secretário de Defesa, Mark Esper, reconheceu: “O racismo é real na América, devemos reconhecê-lo para confrontá-lo e erradicá-lo”.

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