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França e Reino Unido lideram endurecimento do tom europeu com a China

Merkel pede mais transparência a Pequim, mas evita atitude de confrontação

Um avião com equipamento sanitário chinês chega ao aeroporto de Paris-Vatry (França), no último domingo.
Um avião com equipamento sanitário chinês chega ao aeroporto de Paris-Vatry (França), no último domingo.Francois Nascimbeni/AFP/dpa (Europa Press)

Não é só Donald Trump que acusa a China na crise global pelo coronavírus. Sem a estridência nem as incoerências do presidente norte-americano, com um tom mais precavido e diplomático, vários líderes europeus questionaram nos últimos dias a versão chinesa sobre a origem, a gestão e as cifras. E responderam ao que consideram ser uma ofensiva propagandística destinada a evitar responsabilidades. Os Governos da França e do Reino Unido encabeçam essa guinada na atitude em relação à superpotência asiática.

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Um mundo de ansiedade, medo e estresse

“Esperamos que a China nos respeite, como ela deseja ser respeitada”, declarou na segunda-feira o ministro francês de Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian. “Nada pode voltar a ser como antes” enquanto a China não esclarecer de forma cabal tudo o que está relacionado com o vírus, observou na semana passada seu homólogo britânico, Dominic Raab, provisoriamente à frente do Governo enquanto o primeiro-ministro Boris Johnson se recupera da enfermidade.

A pandemia exacerbou as rivalidades geopolíticas. E abriu uma oportunidade para ampliar as áreas de influência. Entre os Estados Unidos e a China, os europeus tinham mantido um perfil discreto até recentemente. Uma exceção foi Josep Borrell, alto representante para a Política Externa da União Europeia, que em 24 de março alertou para o que chamou de “política da generosidade” como arma de influência geopolítica na “batalha global das narrativas”.

As imagens de aviões chineses transportando material médico para a Europa enquanto os sócios da UE fechavam as fronteiras entre eles marcaram as primeiras semanas da crise. Não importa que a Europa tivesse ajudado a China em janeiro, depois que o vírus foi detectado pela primeira vez naquele país. A narrativa da pujante potência autoritária resgatando as decadentes democracias era tentador, num momento em que alguns países ocidentais viam a pandemia escapar ao seu controle.

O porta-voz chinês de Relações Exteriores, Zhao Lijian.
O porta-voz chinês de Relações Exteriores, Zhao Lijian.GREG BAKER (AFP)

O tom mudou. Os europeus não empregam a retórica de Trump, que fala do “vírus chinês” ou dá trela a teorias sobre uma possível fuga acidental do agente patogênico de um laboratório, além de ameaçar represálias. Mas o fundo da mensagem não é tão diferente.

“A resposta de Borrell sobre a batalha dos relatos já era uma resposta bastante forte ao esforço diplomático chinês para vender o modelo chinês perante a crise da covid-19”, diz Mathieu Duchâtel, responsável por assuntos da Ásia no think tank Institut Montaigne. “Atualmente há uma gradação. Apresenta-se a questão da transparência da informação na China, tanto em relação à origem do vírus como quanto à gestão da crise em dezembro e janeiro, e a comunicação internacional sobre a gravidade da situação em Wuhan e a província de Hubei.”

A tensão, no caso francês, chegou ao seu auge em 14 de março, quando Le Drian convocou o embaixador chinês em Paris, Lu Shaye, ao Quai d’Orsay (chancelaria), depois que o site da Embaixada da China publicou vários artigos anônimos acusando os Governos ocidentais de má gestão e atacando seus meios de comunicação. Le Drian denunciou as “calúnias” da embaixada. Uma das acusações formuladas pelos representantes do país asiático, depois retificada, dizia que “o pessoal encarregado dos cuidados nas Ehpads [siglas francesas para os asilos de idosos] abandonou seus postos da noite para o dia, desertou coletivamente, deixando seus residentes morrerem de fome e de doença”.

Oficialmente, o coronavírus causou a morte de 4.632 pessoas na China, de 20.265 na França, e de 16.509 no Reino Unido, segundo as últimas contagens. O contraste nas cifras alimenta as dúvidas.

“Claramente há coisas que ocorreram e que não sabemos”, disse na semana passada o presidente francês, Emmanuel Macron, ao jornal Financial Times. “Acredito que seja absolutamente necessário promover uma revisão aprofundada de todo o ocorrido, incluído a origem da eclosão da pandemia”, concordou Raab. “Deveremos fazer as perguntas mais duras, sobretudo, as que se referem a como surgiu toda esta crise e se não se poderia ter sido freada antes”, acrescentou.

Tanto a França como o Reino Unido mantinham uma posição de cooperação com a China antes da pandemia. Ao chegar a Downing Street em meados do ano passado, Boris Johnson enfrentou o dilema de proteger os interesses do Reino Unido ante o futuro incerto do Brexit ou seguir o caminho de conflito com Pequim indicado por seu parceiro e aliado, Trump. Queria nadar e manter a roupa seca, e seguiu em frente com a decisão de permitir que a empresa chinesa Huawei participasse do desenvolvimento nacional das novas redes de comunicação 5G, apesar das advertências de Washington e de muitos falcões da ala dura do Partido Conservador.

Por enquanto, o Governo britânico tem adotado um tom diplomático e buscou ressaltar a cooperação entre os dois países no que diz respeito à troca de suprimentos para o setor da saúde ou à organização do retorno de cidadãos britânicos que permaneciam na China, mas se juntou à longa lista de vozes internacionais anunciando a necessidade de repensar o papel de Pequim no mundo. Paris também busca esse equilíbrio entre cooperação e competição —e entre Washington e Pequim—, mas a Covid-19 inclina a balança para a rivalidade.

"Pequim joga com a fragmentação da UE", disse Le Drian em uma entrevista ao Le Monde. O chefe da diplomacia francesa sustenta que "a pandemia é a continuação, por outros meios, da luta entre as potências" e "também a sistematização das relações de poder que se viam antes, com a exacerbação da rivalidade sino-americana. "A China se sente em condições de dizer um dia “eu sou a potência e a liderança", argumenta. E acrescenta: "Queremos que os Estados Unidos cumpram suas responsabilidades e mantenham um relacionamento de confiança com seus aliados".

Em outras palavras: a equidistância entre Washington e Pequim nunca existiu e agora menos do que nunca. "Há uma convergência transatlântica bastante forte na maneira como se percebe a China de Xi Jinping [o presidente chinês]. Há uma convergência de análises”, resume Duchâtel. "Os tons e as culturas políticas são diferentes, mas há uma base e reações comuns que às vezes são semelhantes.”

Alemanha: Merkel pede transparência

Berlim permanece firme no momento em sua política de não-confronto com a China, seu grande parceiro comercial, em meio a uma recessão e dependente de suprimentos médicos procedentes da Ásia para combater a pandemia. Ainda assim, a chanceler alemã, Angela Merkel, pouco dada a acusações públicas, fez nesta segunda-feira uma crítica velada ao Governo chinês. "Quanto mais transparente a China for quanto à gênese do vírus, melhor será para que o mundo inteiro aprenda sobre ele", disse em resposta a uma pergunta durante uma coletiva de imprensa sobre a Covid-19.

Até agora, o tom geral de Berlim tem sido comedido. “No momento, não vimos na Alemanha a retórica dura de outras capitais europeias. A Alemanha tem a relação econômica mais estreita com o país asiático em toda a Europa e, em plena recessão, vai relutar muito em colocá-la em perigo", lembra Noah Barkin, pesquisador do German Marshall Fund. A pujança da China, acrescenta, foi fundamental para mitigar os efeitos da crise do euro, e a economia asiática, com sua forte demanda, poderia agora desempenhar um papel similar.

Indo além das motivações econômicas, a diplomacia alemã é tradicionalmente marcada pela busca de entendimento com a China, país que Merkel visita todos os anos. Até o surgimento do coronavírus, previa-se que o destaque da presidência alemã da UE seria a cúpula com esse país em Leipzig. Essa sintonia diplomática deu frutos nesta crise. No início do mês, o Süddeutsche Zeitung informou que Merkel havia conversado com o presidente Xi Jinping para preparar o caminho para a aquisição de suprimentos médicos pela Alemanha em um momento de competição global desenfreada.

Ao mesmo tempo, a Alemanha está preparando medidas para impedir a aquisição de empresas alemãs por estrangeiros, alerta o especialista em China Thorsten Benner, diretor do Instituto Global de Políticas Públicas, em Berlim. Benner interpreta que, também na Alemanha, além das políticas oficiais, “há um debate público, que já era notável com o 5G e que, quando a emergência passar, ressurgirá novamente. Agora, a prioridade é reabrir a economia, e as posições pragmáticas prevalecem.” A Covid-19, acrescenta Benner, deixou os políticos alemães bem conscientes da necessidade de reduzir a dependência de suprimentos médicos.

Prova do debate de que Benner fala é a disputa pública mantida entre o sensacionalista Bild, o jornal mais lido na Alemanha, com a Embaixada da China em Berlim. Seu diretor, Julian Reichelt, enviou uma carta a Xi Jinping na qual o acusa de pôr o mundo em perigo. “O senhor fecha todos os jornais e sites que criticam seu Governo, mas não fecha os locais que vendem sopa de morcego”, diz Reichelt, referindo-se às teorias que associam esse prato às origens do vírus. E prossegue: “A China se enriquece com as invenções de outros […]. O maior sucesso de exportação (aquele que ninguém quer ter, mas já percorreu o mundo) é o coronavírus.”

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