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China tomará o lugar dos EUA? A corrida para antecipar o mundo de amanhã

Em plena crise, acontece uma queda de braço para entender o futuro e influenciá-lo. Alguns especialistas duvidam de uma mudança radical

Marc Bassets
Dois ciclistas no sábado em Piccadilly Circus, em Londres.
Dois ciclistas no sábado em Piccadilly Circus, em Londres.Aaron Chown (AP)

A corrida das previsões já começou. Há semanas, Governos, instituições internacionais, economistas, laboratórios de ideias e gurus embarcaram em uma competição para explicar o mais rápido possível o mundo de amanhã.

Ainda não se sabe como terminará esta fase da crise da covid-19, a doença causada pelo vírus SARS-Cov-2 que em quatro meses se espalhou da China para o resto do planeta, matou mais de 155.000 pessoas e confinou metade da humanidade. Não está claro como será a saída do confinamento nem quando uma vacina garantirá o retorno à normalidade. Ninguém sabe ao certo qual será a normalidade dentro de alguns meses. Mas o instinto humano de ir um passo à frente —e a necessidade prática de se preparar para o novo mundo e de influenciá-lo— é o motor que leva a uma superprodução de documentos para esclarecer durante a tempestade.

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Brazilian President Jair Bolsonaro speaks after joining his supporters who were taking part in a motorcade to protest against quarantine and social distancing measures to combat the new coronavirus outbreak in Brasilia on April 19, 2020. (Photo by EVARISTO SA / AFP)
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“É precisamente quando as coisas são complicadas e estão em movimento que é útil fazer previsões para enxergar com mais clareza”, diz Bruno Tertrais, diretor-adjunto da Fundação para a Pesquisa Estratégica, think tank sediado em Paris, autor de O Ano do Rato – Consequências Estratégicas da Crise do Coronavírus, um relatório claro e conciso sobre o que está por vir.

Existem dois grupos na febre prospectiva. Primeiro, o daqueles que acreditam que “nada será igual”, “habitaremos um mundo diferente”, “é o fim do capitalismo e da globalização”. “É uma comoção antropológica profunda. Paramos meio planeta para salvar vidas: não há precedentes em nossa história”, disse o presidente francês, Emmanuel Macron.

O segundo grupo é o dos cautelosos. São aqueles que, olhando a história, desconfiam das datas que transformam tudo. E aqueles que argumentam que o coronavírus, mais do que marcar um corte na história, acentuará tendências em andamento. Ou aqueles que inclusive alertam para a possibilidade de um retorno ao de sempre, ao business as usual, “à vida normal”, como diz Donald Trump.

Tertrais esboça várias tendências: um retrocesso da globalização; um declínio dos líderes populistas acompanhado pelo sucesso paradoxal das ideias de soberania e defesa das fronteiras; o retorno do Estado protetor; o auge das sociedades de vigilância; o risco de ações oportunistas por parte de Estados e organizações: a tentação de pescar em rio revolto. A última tendência, na contracorrente de uma previsão muito difundida, é que nenhuma potência –tampouco a China– sairá fortalecida.

Tertrais descreve o coronavírus como uma “surpresa estratégica” comparável à queda do Muro de Berlim em 1989 ou à crise financeira de 2008. Nem todas as “surpresas estratégicas” provocam as consequências esperadas: em 2001, depois dos atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono, um colunista do The New York Times, previu a Terceira Guerra Mundial. Em 2008, o presidente francês Nicolas Sarkozy acreditou que havia chegado o momento da “refundação do capitalismo”. A hora atual talvez se assemelhe à queda do Muro: um acontecimento que se enquadrava no espectro do possível, embora ninguém o tenha previsto então; e um mundo às cegas durante meses. Tudo poderia sair muito bem ou muito mal. “Ninguém sabia o que ia acontecer”, recordou o historiador Pierre Grosser alguns meses atrás. “Pensávamos que a União Soviética iria implodir, mas não sabíamos se seria muito perigoso.”

Nathalie Tocci, diretora do Istituto Affari Internazionali em Roma, fala de um possível “momento Suez” para os Estados Unidos, em alusão à crise do canal de Suez em 1956 que precipitou o fim do Reino Unido como potência mundial. “Não é que a China será o novo império, mas é um momento em que o poder global da China se consolida. Terá um poder de atração, um soft power, ou poder brando, que não é exercido de maneira coercitiva”, afirma.

No relatório A Ordem Internacional e o Projeto Europeu em Tempos da Covid-19, Tocci desenha dois cenários: um de fechamento —nacionalismo, protecionismo, rivalidade entre potências e influência chinesa— e outro de abertura que poderia levar a uma maior cooperação global. “Se você me perguntar qual dessas duas dinâmicas é mais forte, eu não sei”, diz Tocci. “Mas sei que há algo que fará a diferença: a liderança. E hoje a liderança praticamente não existe. Sem liderança, temo que estejamos indo mais na direção da competição do que da cooperação.”

“Não sabemos o que acontecerá, mas vale a pena pensar nisso. Dependerá muito de como sairmos e com quais danos”, diz Gregory Treverton, ex-diretor do Conselho Nacional de Inteligência, a célula prospectiva da inteligência dos Estados Unidos. Seu trabalho consistia em imaginar cenários. E um dos que imaginou foi uma pandemia em 2023. “Se você observar o que já estava acontecendo antes da crise, havia um aumento do nacionalismo, do protecionismo, da tensão entre os EUA e a China, da desconexão entre as pessoas e os Governos”, reflete. “A pergunta é como a covid-19 afeta isso. A resposta é que, a curto prazo, o exacerbará.”

Warren Hatch, presidente da empresa de prognósticos Good Judgement, acredita que uma previsão geopolítica —sobre a ascensão da China e o declínio dos Estados Unidos— deveria ser delimitada e dividida em perguntas concretas e verificáveis: sobre a evolução do PIB chinês ou a contribuição deste país às organizações internacionais.

À pergunta sobre se esta crise muda tudo, Hatch responde: “Muito do que costumávamos fazer e que agora parece inimaginável, como ir a eventos esportivos, acredito que faremos novamente: inventaremos algo. Por outro lado, há coisas que já estavam mudando e se acelerarão: a ideia de trabalhar de casa, por exemplo, ou ver o médico desde o domicílio pela Internet”.

Entre todas as previsões que circulam sobre o mundo que emergirá desta crise do coronavírus existe uma que pode ser avançada sem medo de erro: será um mundo obcecado pelas pandemias. Depois dos ataques de 2001, o terrorismo se tornou o centro de gravidade, o que não permitiu ver outras ameaças.

O mesmo poderia acontecer agora, com as pandemias no lugar do terrorismo. “Existe de fato um risco”, diz Tertrais, “de que nos próximos cinco anos a pandemia seja considerada o risco número um e que os outros sejam menos notados”.

Entre as ameaças, a mudança climática é citada. Ou mais pandemias. “Este é um ensaio geral”, diz Treverton. “Imagine uma pandemia tão letal quanto o ebola e tão transmissível quanto a covid-19. Não vejo outra ameaça semelhante.”

Uma “competição áspera”, segundo a visão francesa

“O mundo posterior às crises é preparado durante a crise, e não no final”, afirma um relatório do Centro de Análise, Previsão e Estratégia (CAPS) do Quai d’Orsay, uma espécie de think tank interno do Ministério das Relações Exteriores francês. O relatório, revelado no final de março pelo jornal Le Monde, não define a política oficial francesa, mas aponta linhas de reflexão estratégica diante da “competição áspera” que se anuncia. O ponto de partida é que o dia seguinte será conturbado e que os prolegômenos estão em jogo nestes momentos.

As ameaças são múltiplas: da estabilidade política à paz social. O relatório alerta sobre “a narrativa chinesa”: a possível atratividade futura de seu modelo, reforçada pela propaganda. Por isso, é necessário “não apenas desenvolver uma contranarrativa, mas poder se apoiar em um equilíbrio eloquente e colocar em evidência as diferenças de método”. E acrescenta: “Porque, no fim das contas, a história é escrita pelos vencedores”. Os vazios de poder e o aproveitamento que possam fazer potências como a China ou a Rússia podem levar a “uma aceleração da redistribuição das cartas”. Os autores não intervêm no debate sobre se estamos diante de uma mudança radical ou de um retorno às inércias do passado. “Uma crise de tal magnitude é sempre a ocasião para reorientações profundas”, diz o documento. “Mas não implica mecanicamente nenhuma dessas reorientações. No final, é a política que as impõe, ou a que não está à altura da ocasião.”

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