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O desafio de congelar a economia

Com a recessão já dada como certa, o desafio agora é evitar danos ao tecido produtivo até que o dinheiro flua novamente. Sem precedentes em que se agarrar, não será tarefa fácil

Ignacio Fariza
Uma rua no bairro de Dumbo, no Brooklyn, com vista para a ponte de Manhattan, que foi obrigado a fechar seus bares e restaurantes.
Uma rua no bairro de Dumbo, no Brooklyn, com vista para a ponte de Manhattan, que foi obrigado a fechar seus bares e restaurantes.Jeenah Moon

Durante semanas, com a China já paralisada e as cadeias de suprimentos dando o primeiro golpe, a palavra recessão permaneceu fora do léxico: o debate ainda girava em torno de quanto o coronavírus subtrairia do crescimento. Mas a pandemia chegou ao Ocidente e as dúvidas rapidamente se volatilizaram: uma economia confinada deixa pouco espaço para escapatória. Haverá recessão na Espanha. Haverá recessão na Europa. Haverá recessão nos Estados Unidos. E haverá recessão na América Latina. A ruína inicial será enorme, quase certamente maior que a da crise de 2008 e 2009, e o desafio hoje das autoridades econômicas ―Governos, bancos centrais, FMI, Banco Mundial, G20, G7 ―é evitar que esse baque limitado no tempo se transforme em algo mais: uma Grande Depressão, como nos anos 30 do século passado. O sucesso depende, em boa medida, de um tratamento experimental: congelar o tecido produtivo até que o pesadelo termine e esperar que, depois, a atividade retorne o mais próximo possível ao ponto em que estava antes. Em resumo, evitar um curto-circuito no sistema de produção que estrangule o crescimento por anos e não meses.

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FILE - In this November 1918 photo made available by the Library of Congress, a nurse takes the pulse of a patient in the influenza ward of the Walter Reed hospital in Washington. For President Woodrow Wilson, the pandemic was a case of first impression. The country was accustomed to 100,000 deaths a year from the flu. Widespread use of vaccines were not common. It wasn't that Wilson was restrained about using federal power, he simply had far less precedent to lean on, and a much higher priority in the war effort.  (Harris & Ewing/Library of Congress via AP, File)
Lições de 1918: as cidades que se anteciparam no distanciamento social cresceram mais após a pandemia

"Já é tarde demais para evitar a recessão: estamos diante de uma desaceleração maciça e repentina, com efeitos devastadores tanto no consumo como na produção. Mas podemos e devemos fazer o possível para impedir uma depressão. É o desafio que definirá toda uma geração”, diz por email Mohamed El-Erian, chefe da assessoria econômica da Allianz e ex-presidente do Conselho de Desenvolvimento Global dos EUA, na época de Barack Obama. “Estamos no mais parecido com um período morto para a economia, no qual as pessoas e as empresas precisam, acima de tudo, sobreviver”, diz Alan Blinder, ex-número dois do Fed e ex-assessor da Casa Branca nos tempos de Bill Clinton. Enquanto a parada durar, todos os esforços dos Governos e dos bancos centrais serão direcionados para um único objetivo: fazer todo o possível para que possam sair desta. “Apoiar as famílias menos privilegiadas, dar crédito às empresas e evitar insolvências e demissões”, acrescenta Ricardo Reis, economista da London School of Economics (LSE).

A economia entrou em um túnel escuro e autoinfligido, lembra Grégory Claeys, do think tank Bruegel, com o maior objetivo imaginável: salvar vidas. Os EUA passaram em tempo recorde do pleno emprego a uma previsão de 20% de desemprego e a Goldman Sachs já vislumbra uma contração de dois dígitos na Espanha. Em águas desconhecidas e sem um farol do passado para iluminar o caminho, desta vez, como escreveu a economista Carmen Reinhart, é diferente.

E o receituário também deve ser. Em circunstâncias extraordinárias como esta, cabe agora à política econômica desempenhar um papel muito diferente daquele a que está acostumada: tentar, por todos os meios, garantir que o tecido produtivo preserve seus traços básicos sem grandes interrupções até que a atividade retorne às ruas. Submeter o setor produtivo, em outras palavras, a uma espécie de coma induzido ou criogenização que mantenha os sinais vitais tão intactos quanto possível, de modo que, quando tudo passar, na habitual sopa de letrinhas dos economistas a saída da crise seja em forma de V e não de L.

Uma economia pode, então, ser congelada? “É possível, sim, embora muito complicado. E depende de quanto tempo: se o fechamento total se prorrogar, será catastrófico; se forem apenas algumas semanas ou meses, poderemos evitar o desastre... Para isso, é necessário impedir que empresas e empregos desapareçam", diz Reis. Quase não existem precedentes históricos. Talvez a Segunda Guerra Mundial, diz o professor da LSE sem muita certeza. Ou, como lembra por email Barke Eichengreen, de Berkeley, o da mal chamada gripe espanhola: “Mas foram algumas cidades, não um congelamento global como este”.

Enquanto não houver consumo para estimular, como afirma Sung Won Sohn, presidente da consultoria SS Economics e professor da Universidade Loyola Marymount, o objetivo continuará sendo algo tão simples de dizer e tão difícil de alcançar como o de evitar uma hecatombe em forma de avalanche de falências e demissões permanentes. E garantir que as feridas deixadas pela paralisia no setor financeiro sejam as menores possíveis: fora de todos os holofotes, os alarmes já dispararam por lá, com o enorme mercado hipotecário dos EUA (12 vezes o PIB espanhol) passando por sua maior turbulência desde a crise de 2008. “Estamos diante da primeira recessão na história liderada pelo setor de serviços. Se durar muito e afetar a solvência dos bancos, poderá ser ainda pior do que a Grande Crise."

A teoria aguenta tudo. As notas soam bem na partitura: o Estado se encarrega de que tudo não vá para o espaço e que não haja efeito dominó. Agora, é preciso que a orquestra tenha a destreza e a força para interpretar a música. A informalidade do trabalho e pior acesso ao financiamento, por exemplo, complicam bastante a tarefa de criogenização nos países emergentes. Enquanto isso, a maioria dos países europeus e os Estados Unidos já puseram mãos à obra, vetando demissões indefinidas e apostando em fórmulas temporárias nas quais o erário cubra uma parte substancial do salário ou jogando milionários salva-vidas de liquidez para as empresas.

Os idos de março deixaram, porém, algumas coisas claras. A dívida pública vai chegar às nuvens e terá que haver reduções no lado privado, como Mario Draghi alertou esta semana no Financial Times. “E parte dos empréstimos do Governo [às empresas] nunca será reembolsado”, disse Blinder por e-mail. Mais adiante, quando as pessoas voltarem a trabalhar e consumir, terá que haver mais: “O consumo precisará de apoio, com uma nova rodada de estímulos que, felizmente, as economias avançadas podem encarar graças às taxas de juros tão baixas”, completa Eichengreen, sem nenhuma dúvida quanto a defender o papel do Estado em momentos como este.

Mas o vazio converteu outros em keynesianos: hoje ninguém nega sua importância capital para evitar a queima total. E terão que ser assim também depois, dando uma mão no pagamento de impostos e assumindo sua responsabilidade social. Caso contrário, conclui Ian Greer, da Universidade Cornell, “mais uma vez os Governos acabarão resgatando os investidores e disseminando os custos para a sociedade por meio de medidas de austeridade”.

A excepcionalidade também deixa lições aprendidas. Os bancos centrais foram muito mais rápidos no reflexo do que em 2008. “É alentador o papel dos Estados e bancos centrais, agindo rapidamente e adotando medidas de emergência”, diz El-Erian. O Fed e o BCE têm sido contundentes: fizeram sua parte. E os erros cometidos, como o de Christine Lagarde em sua primeira aparição ―“não estamos aqui para reduzir os spreads”― foram corrigidos “em dois dias e não em dois anos, como antes”, observa Claeys. Outros, por sua vez, ainda não internalizam: “Desta vez, a crise é exógena e vai atingir a todos. A narrativa de irresponsabilidade fiscal já não se sustenta. É por isso que os eurobonds são tão importantes". Alguém deveria tomar nota em Berlim e em Haia.

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