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Como em menos de três meses o agente patogênico SARS-Cov-2 colocou o mercado financeiro em alerta, desacelerou a economia global, modificou os hábitos cotidianos, reavivou medos ancestrais e pôs em xeque os líderes do planeta
Soldados sul-coreanos desinfetam uma rua de Seul.JUNG JEON-YE (AFP)
O mundo olhava para o outro lado. Eram os últimos dias de 2019 e os primeiros de 2020, e os motivos de inquietação abundavam. Eram reais, mas não os corretos.
Mas a crise que faz parte da humanidade tremer neste início de década vinha de outro lugar e era outra coisa. Finalmente o big one – a grande crise, o grande terremoto, a ameaça escondida que poderia mudar tudo – não apareceu sob a forma de atentado maciço, guerra ou recessão econômica. Não tinha o rosto de Vladimir Putin nem de um obscuro terrorista do moribundo Estado Islâmico. Era algo diferente: um agente minúsculo – 125 nanômetros, ou seja, 0,000125 milímetro – localizado possivelmente em um mercado de uma populosa cidade chinesa, embora a origem exata continue envolta em uma nebulosa.
E este vírus, tecnicamente chamado SARS-Cov-2, causador da doença Covid-19, pôs em xeque Governos que se consideravam invulneráveis e poderosos; engripou a máquina que faz funcionar a globalização – o comércio, as viagens, a indústria –; colocou o mercado financeiro em alerta, levando a economia ao momento mais crítico desde a crise financeira de 2008; despertou em muitos cidadãos medos atávicos e lhes recordou que são mortais, e começa a alterar nossos costumes, talvez de forma duradoura. O balanço mundial supera os 100.000 casos e 3.500 mortos. E deixa em estado de semiexceção populações inteiras em zonas ricas de países desenvolvidos, sem memória recente de situações similares, a não ser por alusões literárias ou cinematográficas. A notícia, nesta segunda-feira, de que o Governo italiano colocará o país inteiro em situação de isolamento, assim como já estavam 16 milhões de pessoas nas regiões da Lombardia e outras 14 províncias do norte, é uma evidência tanto da preocupação que a praga suscita entre as autoridades como de seu caráter excepcional.
Observar como a irrupção do coronavírus ocorreu em um período tão breve – um abrir e fechar de olhos na escala do tempo acelerado da informação 24 horas e do fluxo turvo das redes – e como passou a dominar as agendas globais e pessoais, tem uma dupla utilidade. Primeiro, é como se estivesse se estendendo um produto revelador sobre o planeta: mostra – e amplifica – suas fraquezas e falhas. E, segundo, tem a capacidade de acelerar processos em curso: do freio na globalização à tendência a erguer fronteiras nas democracias ocidentais.
Tudo começa em dezembro na China, num mercado – até onde se soube –, e a origem do vírus se encontra provavelmente em um morcego, do qual o ser humano se contagiou, talvez através de outro animal. Eis aqui, de saída, dois elementos determinantes. Um, bem visível, taxativo, colossal: a China. Outro, invisível, microscópico: os vírus ditos zoonóticos, ou seja, transmissíveis de animais para humanos, que causam algumas das doenças mais destrutivas das últimas décadas.
A China representa 17% da economia mundial; 11% do comércio, 9% do turismo, 40% da demanda de algumas matérias-primas. É o país mais populoso: 1,4 bilhão. É a fábrica do planeta, um experimento de turbocapitalismo governado por um regime autoritário, a potência que já não é só econômica e disputa a hegemonia mundial com os EUA, o grande triunfador da última etapa de globalização dos bens e serviços iniciada há cerca de 30 anos.
Por que alguns vírus se espalham e infectam humanos?
David Quammen, de Montana (Estados Unidos)
O segundo elemento são os vírus que passam de animais a seres humanos. As doenças causadas por eles incluem a gripe de 1918, que matou 50 milhões de pessoas segundo algumas estimativas, a AIDS, da qual já morreram 32 milhões de pessoas, mas também o ebola, a SARS, a gripe aviária e o Covid-19. Sempre existiram, mas, como explica David Quammen, autor de Spillover – Animal Infections and the Next Human Pandemic (“transbordamento – infecções animais e a próxima pandemia humana”), vivemos “uma era de zoonoses emergentes”.
“Há muitos vírus vivendo em animais, plantas e bactérias nos ecossistemas. Provavelmente milhões. Alguns podem infectar os humanos, além das criaturas nas quais estiverem. Por que alguns vírus se espalham e infectam os humanos?”, diz Quammen, por telefone, de Montana. “É porque estamos entrando em contato com esses animais, plantas e criaturas. Perturbamos ecossistemas diversos. Destruímos a floresta tropical. Construímos povoados e minas nestes lugares. Destruímos árvores. Comemos os animais que vivem nessas matas. Capturamos animais selvagens e os enviamos a mercados na China. Com estas ações nos expomos a estes vírus.”
É um enigma quando o SARS-Cov-2 começou a circular e quando os primeiros casos foram detectados. A única data segura, por enquanto, é 31 de dezembro. Nesse dia, o Governo chinês confirmou os primeiros casos de uma pneumonia de origem desconhecida. Tudo foi rápido desde então. Em 7 de janeiro, pesquisadores chineses identificaram o novo vírus. Quatro dias mais tarde, declarou-se o primeiro morto: um homem de 61 anos, cliente do mercado de Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes no centro da China. E 10 dias mais tarde foram registrados os primeiros casos no Japão, Coreia do Sul e Tailândia, e as autoridades chinesas impuseram o isolamento de Wuhan. A crise já não era só chinesa: transformou-se em asiática. Em 30 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde decretou “emergência sanitária global”.
Casos confirmados em todo o mundo (em espanhol)
Muitos dos dilemas que surgiriam nas semanas seguintes, quando as contagens diárias de pacientes deixaram de ser um assunto longínquo fora da Ásia, já estavam ali. É possível isolar o mal e derrotá-lo? Ou é preciso se conformar em administrá-lo da melhor forma possível para atenuar seu impacto? As quarentenas são úteis? E outra pergunta fundamental: para administrar uma epidemia como esta e impor medidas drásticas à população, estão mais bem equipados os Estados autoritários ou os democráticos?
O Governo chinês foi criticado no princípio por sua opacidade, e o descontentamento se refletiu nas críticas depois da morte, em 7 de fevereiro, do médico Li Wenliang, repreendido por dar o alarme em dezembro e primeiro mártir da pandemia. Desde então, suas medidas de choque para frear a doença motivaram o aplauso das autoridades sanitárias internacionais.
“A pergunta é: quem está mais bem protegido? As ditaduras ou as democracias?”, diz a professora Anne-Marie Moulin, médica e filósofa do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França. “Está claro que um país autoritário, com populações acostumadas a medidas absolutas, pode parecer mais favorável à defesa contra as epidemias. Mas uma democracia em que a informação circula, e onde os cidadãos se sentem solidários, também pode ser um país mais vigilante e mais bem organizado, no qual ligar para avisar sobre um caso não pareça uma denúncia. Sabe o que teria de ser feito? Considerar dois países com a mesma epidemia: um autoritário, que não respeite as liberdades, e outro que as respeite. E ver o que acontece. É uma experiência que nunca ocorreu, de modo que temos que nos conformar com as especulações.”
Funcionários chineses viajam através da neve para visitar aldeias remotas e informar sobre o coronavírus. A RAN (EFE)
Se os dois modelos fossem claros e cristalinos como na Guerra Fria, talvez seria mais simples. Hoje o vírus circula por um planeta governado por Xi Jinping e Donald Trump, “dois grandes rivais que parecem debilitados pela epidemia”, comenta Dominique Moïsi, conselheiro especial do laboratório de ideias Institut Montaigne, com sede em Paris, e autor de livros como A Geopolítica das Emoções (Elsevier). Nos Estados Unidos, “a crise no início teve uma gestão bastante ruim por parte de Trump, que a desprezou e fez declarações improvisadas”, explica Moïsi. “Na China, viu-se que os que lamentavam a centralização excessiva do poder, o retorno a um modo imperial de gestão, usavam a crise para criticar o poder”, explica. “Xi Jinping acabará enfraquecido? Ou poderá dizer que foi surpreendido no início, que o gosto pelo secreto tornou lenta a capacidade de enfrentar a crise, mas que, no final das contas, a centralização de um regime autoritário permitiu contê-la?”
Em 2 de fevereiro, registrou-se o primeiro morto fora da China, nas Filipinas. Duas semanas depois, veio o primeiro fora da Ásia, um turista chinês de 80 anos em Paris. Hoje são mais de 400 mortos fora da China, com dois focos críticos: Irã e Itália, e uma onda expansiva que revoluciona o que há quatro dias parecia sólido.
Torneios esportivos e congressos internacionais são cancelados – hoje parece fora de lugar o ceticismo com o qual muitos reagiram ante a decisão de suspender o Mobile World Congress em Barcelona –, e escolas foram fechadas em vários países deixando 290 milhões de alunos em casa. Na França, o Governo recomenda que as pessoas deixem de se cumprimentar com apertos de mão e, pior, deixem de lado a bise (os dois beijos que dão cada vez que se veem), um traço cultural que, se desaparecer, significará uma mudança considerável para a art de vivre francesa. Em Miami, um homem vai a um centro médico para fazer o exame de coronavírus e, como publicou o jornal Miami Herald, sai com uma conta de 3.270 dólares: o SARS-Cov-2 revela as características de um sistema de saúde predominantemente privado. A Arábia Saudita fecha a entrada de peregrinos a Meca, e o Santuário de Lourdes, na França, fecha os banheiros com água da gruta milagrosa.
Marcas norte-americanas como McDonald’s e Starbucks fecham lojas na China, companhias aéreas suspendem voos a este país, e o tráfego de contêineres no porto de Los Angeles – principal porta de entrada dos produtos chineses aos EUA e ponto nevrálgico da globalização – cai 25%. A queda da produção de alguns setores industriais importantes desse país (entre 15% e 40%) reduziu em 25% as emissões de gases do efeito estufa, segundo dados do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo, uma organização finlandesa.
O dilema é: quanto mais drásticas forem as medidas e o medo, pior será o impacto tanto na oferta (as fábricas e os escritórios param, as lojas ficam vazias) como na demanda. Inicialmente, no cenário mais otimista, a OCDE previa uma queda do crescimento mundial de 2,9% para 2,4% em 2020. Seria o nível mais baixo desde a crise financeira de 2008. No pior cenário, a economia global cresceria 1,5%. Logo após, decidiu não publicar os principais indicadores de confiança para março e adiou seu próximo relatório para abril. O motivo: a organização acredita que ainda não é possível coletar os efeitos econômicos do surto de coronavírus. Já as Nações Unidas alertaram que a crise do coronavírus está levando a uma ameaça econômica, cujo “terremoto” causará uma recessão em alguns países, bem como a desaceleração do crescimento anual global abaixo de 2,5%.
Dois turistas com máscara para evitar o coronavírus, em frente à Torre Eiffel de Paris. MEHDI TAAMALLAH (GETTY)
Impulsionado pela globalização, que abre fronteiras à circulação de mercadorias, pessoas e também vírus, o SARS-Cov-2 ameaça matá-la, como se 2020 fosse fechar definitivamente o ciclo aberto em 1989 com a queda do Muro de Berlim. “A epidemia intervém num momento em que já questionávamos a mundialização”, resume o veterano cientista político Moïsi. “E acelera e confirma potencialmente a ideia segundo a qual a mundialização feliz era uma ilusão temporária que duraria poucos anos, enquanto enfrentamos a mundialização infeliz.”
Em épocas de nacionalismo e populismo, as mensagens de desconfiança em relação ao estrangeiro e as teorias da conspiração ganham novas câmaras de ressonância. É a tentação da retirada, que vai da permanência em casa fazendo teletrabalho até o fechamento das fronteiras aos refugiados da Síria. E tudo isso imerso na sensação de irrealidade sobre a gravidade real de algo que não vemos e que assusta mais pelo que poderia ser do que pelo que ainda é. “A crise do coronavírus acelera e aprofunda uma cultura do medo que já estava presente”, diz Moïsi. E, com um toque de humor, ele compara com uma comida: “É como se reservássemos o pior para o final.”