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Alberto Fernández anuncia enviar ao Congresso projeto para legalizar o aborto

Na abertura do ano legislativo, o presidente argentino também defendeu a reforma da Justiça

Alberto Fernández e Cristina Kirchner neste domingo, durante a abertura das sessões ordinárias do Congresso.
Alberto Fernández e Cristina Kirchner neste domingo, durante a abertura das sessões ordinárias do Congresso.Agustín Marcarian
Enric González

A longa batalha argentina sobre o direito ao aborto parece ter uma nova chance de terminar. Nos próximos dez dias, o Congresso receberá um projeto de lei sobre a descriminalização da interrupção da gravidez. Esse foi o anúncio mais relevante (e mais aplaudido) do presidente Alberto Fernández durante a cerimônia de abertura dos trabalhos legislativos. Fernández também deu detalhes sobre a próxima reforma da Justiça federal —uma questão complicada porque qualquer mudança pode ser interpretada como um instrumento para ajudar a vice-presidente, Cristina Kirchner, alvo de vários processos— e a limitação de poderes dos serviços de inteligência.

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O presidente se referiu em primeiro lugar à situação econômica. Ele falou de um “país arruinado” após dois anos de recessão, com inflação de 53,8% em 2019 e desemprego de 9,7%, mas não pôde definir um programa específico porque isso depende do resultado da renegociação da dívida, que deve se desenrolar e, em princípio, ser concluída durante neste mês de março. “Nós nos endividamos apenas para o lucro dos especuladores e dos credores”, disse ele. “Todos nós vimos como os dólares acabaram fugindo do sistema financeiro, retirando os recursos e nos deixando com a dívida.” Fernández declarou que o Banco Central analisa atualmente o que aconteceu com o dinheiro procedente do Fundo Monetário Internacional, grande parte do qual desapareceu ao financiar poupanças privadas em dólares ou se desviar pela simples evasão de capital.

Entre as grandes urgências, além da luta contra a fome (a insegurança alimentar aumentou na Argentina em 71% durante o mandato de Mauricio Macri, segundo a FAO), ele destacou a necessidade de “acabar com o vício inflacionário”. “Não é possível que, com a moeda estável e com as tarifas e os combustíveis congelados, o preço dos alimentos continue a subir”, afirmou. “Os aproveitadores que especulam aumentando os preços não têm lugar em nossa sociedade.”

Impostos no campo

A situação tributária dos produtores agrícolas faz parte da equação alimentar. Alberto Fernández insistiu em que a proposta de seu Governo sobre direitos de exportação (impostos retidos na fonte) aumenta o percentual de apenas “1 de um total de 25 cultivos afetados” (isto é, a soja, que passaria de 30% para 33% ) e considerou que se trata de uma abordagem “generosa e solidária”. Os empresários agrícolas ameaçam desencadear mobilizações de protestos enquanto aguardam novas reuniões nesta semana.

A reforma mais delicada entre as que Fernández anunciou promover é a da Justiça federal. Atualmente, uma dúzia de magistrados federais com gabinetes em Buenos Aires absorve todas as grandes causas, da corrupção política ao crime organizado. Essa concentração de poder (“um oligopólio”, segundo Fernández) favorece a distribuição interessada de processos, bem como de outras disfunções. A ideia do Governo é descentralizar a Justiça federal (os processos sobre o crime organizado teriam andamento, por exemplo, em Santa Fé, a província mais afetada pelo problema) e aumentar pelo menos em meia centena o número de magistrados.

A grande questão é como será a nomeação dos novos juízes federais. Dependendo do mecanismo, as suspeitas de partidarismo ganharão força. Sempre está no ar a sombra da vice-presidente Cristina Kirchner, alvo de diversas ações de corrupção e abertamente inimiga da Justiça federal. A vice-presidente permaneceu impassível, sentada à esquerda do presidente, enquanto ele lia o discurso.

Outro projeto ambicioso, relacionado à Justiça, é a transformação dos serviços de espionagem. A Agência Federal de Inteligência (AFI) sofre intervenção do Governo desde a chegada de Fernández à Casa Rosada, e nos próximos dias será publicado um decreto urgente que proibirá os agentes deste serviço de “ajudar os juízes” (prática comum até agora, com uma transferência descontrolada de informações confidenciais) e se envolver em espionagem política. “Precisamos acabar com os porões da democracia", disse o presidente, que prometeu divulgar todos os relatórios da AFI sobre o controverso atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), que em 1994 causou 85 mortes e cujos autores ainda não são conhecidos.

Depois de anunciar a criação de uma Corporação Administrativa do Estado, para elevar o nível dos altos funcionários, e uma agência pública para avaliar o impacto das decisões estatais, Fernández mergulhou na questão estelar de seu discurso. “O aborto é criminalizado desde 1921”, explicou, “e há muitos abortos, apesar da ameaça penal”. “No século 21, toda a sociedade precisa respeitar a decisão individual de seus membros de dispor livremente de seus corpos." Para acabar com a “hipocrisia”, o presidente anunciou que nos próximos dez dias enviará ao Congresso um projeto para legalizar o aborto “no período inicial da gravidez” no serviço público de saúde. Os aplausos, na Câmara e no lado de fora, onde centenas de pessoas estavam acompanhando a sessão, foram longuíssimos.

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