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Corrida presidencial dos EUA se transforma em referendo entre os super-ricos

Candidatos como Bloomberg e Trump e outros com políticas agressivas para redistribuir a riqueza mostram que o poder político dos bilionários movimenta campanha das eleições de novembro

Pablo Guimón
Michael Bloomberg e Donald Trump em uma imagem de arquivo de 2016.
Michael Bloomberg e Donald Trump em uma imagem de arquivo de 2016.BRENDAN SMIALOWSKI (AFP)
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Democratic U.S. presidential candidate Senator Bernie Sanders speaks at a campaign rally in Las Vegas, Nevada, U.S., February 21, 2020.  REUTERS/Mike Segar
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Racha entre democratas favorece reeleição de Trump

O slogan da campanha presidencial de Michael Bloomberg é conciso e surpreendentemente eloquente: “Mike fará”. Tirar Donald Trump da Casa Branca é a prioridade de cerca de metade dos norte-americanos nas eleições de novembro, e o candidato democrata diz que o “fará”. Por quê? Porque tem 64,2 bilhões de dólares para fazê-lo.

Nunca na história uma corrida presidencial explorou tão abertamente as possibilidades que o dinheiro oferece para alcançar o poder político nos Estados Unidos. E acontece, além disso, quando a mera existência dos bilionários e seu efeito na sociedade constitui um dos grandes debates ideológicos nas primárias democratas. Dois candidatos, Bloomberg e Tom Steyer, terceiro e sétimo nas pesquisas, pertencem ao seleto clube dos 607 norte-americanos com fortunas de mais de um bilhão de dólares. E outros dois, Bernie Sanders e Elizabeth Warren, primeiro e quarta, baseiam suas campanhas na redução das cada vez mais extremas desigualdades econômicas de que padece o país, com agressivos planos fiscais para redistribuir a riqueza dessa elite. Com apoio do eleitorado latino, Sanders ganhou neste sábado as primárias de Nevada, se transformando no favorito na corrida democrata.

“A isto se deve acrescentar que, pela primeira vez na história, o presidente que concorre à reeleição também é bilionário”, aponta Jason Seawright, professor da Universidade Northwestern (Illionis), que investiga as preferências políticas dos norte-americanos ricos e seu papel na democracia. “Isso muda o jogo. Em uma campanha que confronta Trump, Bloomberg e Sanders, a conversa sobre dinheiro e política é inevitável.”

As eleições de novembro serão de alguma maneira um referendo sobre os bilionários. Os eleitores poderão escolher entre se livrar deles (Sanders, Warren), colocar um à frente do país (Trump, Bloomberg, Steyer) ou deixá-los mais ou menos como estão (Joe Biden, Pete Buttigieg, Amy Klobuchar).

No debate dos candidatos democratas da última quarta-feira em Las Vegas, a expressão “bilionário” foi usada mais vezes do que, por exemplo, “China”, “imigração” ou “mudança climática”. Mais do que um detalhe do debate, os bilionários constituem a própria melodia da corrida. São os pré-candidatos e seus oponentes. São os chefes da economia que criou as desigualdades que provocaram a onda populista que o país vive. E também são, de Mark Zuckerberg a Jeff Bezos, passando por Rupert Murdoch, os que controlam as plataformas de persuasão.

O surgimento dos super-ricos na primeira linha da política norte-americana, explica Seawright, “foi gradual”. “Um fator é que há cada vez mais bilionários”, defende. “Desde os anos oitenta, a diferença que separa os mais ricos dos demais aumentou. Outro fator é que, desde que as reformas nos sistemas das primárias foram introduzidas nos anos setenta, o controle dos partidos políticos sobre o processo de eleição de seus candidatos é mais fraco.”

Cerca de 95% dos eleitores democratas acreditam que as desigualdades econômicas são um grande problema para o país hoje, de acordo com um estudo do Pew Research. Está no topo da lista de preocupações, atrás apenas do custo da saúde e da mudança climática. 55% dos democratas que apoiam Sanders e 49% daqueles que apoiam Warren acreditam que a existência de pessoas com fortunas superiores a um bilhão de dólares é ruim para o país, enquanto 69% dos simpatizantes de Bloomberg e 67% dos que apoiam Biden acreditam que não é bom nem ruim.

“Anos de desigualdades crescentes nos EUA acabaram por fazer dela o assunto central na política”, explica David Callahan, pesquisador e diretor do Inside Philantropy, um projeto que busca o controle e a transparência da filantropia em grande escala. “A desigualdade econômica sempre se desloca à desigualdade política, pois os ricos encontram maneiras de transformar seu dinheiro em influência. Em uma época com mais pessoas que têm mais dinheiro, essa elite goza de uma influência crescente.”

Os 400 norte-americanos mais ricos triplicaram sua participação na riqueza do país desde os anos oitenta e hoje têm mais do que a soma dos 150 milhões de adultos que compõem 60% das famílias, de acordo com um estudo do economista Gabriel Zucman, de Berkeley. Quatro em cada cinco norte-americanos apoiam os aumentos de impostos aos mais ricos para financiar uma maior cobertura social, semelhante à que existe na maioria das democracias ricas. Mas essas preferências não se refletem nas políticas públicas. “Nossas pesquisas mostram há muito tempo que os norte-americanos são a favor de medidas que redistribuam o dinheiro dos mais ricos”, explica Seawright. “No entanto, as políticas econômicas sistematicamente caem do lado dos ricos. Existe um problema de não representação e isso tem a ver com a indústria da influência e do lobby.”

Os bilionários determinam a política dos EUA há décadas sem a necessidade de disputar eleições. A explosão da indústria da influência em Washington foi espetacular. Em 1971 havia 175 grupos de lobby registrados. Em 2019, havia 11.862. A filantropia também se tornou uma arma eficaz de influência política. “Graças às leis de financiamento de campanhas e às diretrizes difusas para as contribuições beneficentes, os bilionários dispõem de várias opções para transformar sua riqueza em influência”, explica Callahan.

Organizações beneficentes como a que Trump teve até dezembro de 2018 se tornaram, segundo denuncia a jornalista Jane Mayer em seu livro Dark Money (Dinheiro Obscuro), “uma nova geração de fundações hiperpolíticas” que “investem em ideologia como capitalistas de risco”. Também Bloomberg financia há tempos grupos importantes em causas progressistas, bem como campanhas de congressistas e políticos locais, tecendo uma extensa rede de apoios muito valiosa para uma corrida presidencial.

Menção especial merecem os irmãos Koch, Charles e o já falecido David, cujo sofisticado trabalho na sombra durante anos foi fundamental para a propagação das ideias do populismo de direita que levou Trump à Casa Branca. Investiram, por exemplo, no ensino universitário para inculcar suas ideias nas novas gerações, com bolsas de estudo e fundações que financiam programas e pesquisas acadêmicas alinhadas com sua visão da economia e da política.

Mas a influência do dinheiro não está relacionada à tendência política, e hoje muitos norte-americanos mais ricos financiam candidatos democratas e causas associadas a esse partido. “A diferença é que os progressistas falam mais e dão menos, e os conservadores falam menos e dão mais”, indica Seawright.

Nesse contexto, destaca-se o caso de Bernie Sanders, cuja campanha é financiada exclusivamente por pequenas contribuições de seus seguidores e que se orgulha de não ter recebido um único dólar dos bilionários. “Se aqueles que te dão dinheiro são os cidadãos, você governa para os cidadãos. Se os bilionários te dão o dinheiro, para quem você governa?”, perguntou à multidão a congressista Alexandria Ocasio-Cortez em um comício do senador em New Hampshire. Mas Sanders não é o único candidato que não pretende aceitar um dólar de nenhum doador bilionário. Tampouco Bloomberg o fará. Ele já tem de sobra.

Cobrir a campanha do chefe

“Michael Bloomberg recebe por todos os lados em um animado debate democrata”. Ninguém poderá negar que a manchete reflete o que aconteceu no último confronto entre os aspirantes a enfrentar Donald Trump, o primeiro de que o bilionário candidato centrista participou, realizado na quarta-feira em Las Vegas. Manchetes como essa foram vistas em todos os veículos de comunicação. A coisa excepcional desta em particular estava um pouco mais acima, no cabeçalho do veículo que a carregava: a Bloomberg.

Numa manhã de dezembro, John Micklethwait, diretor da prestigiosa agência internacional de notícias Bloomberg News, chegou à redação com uma missão espinhosa: explicar à sua equipe de redatores de política como cobrir uma campanha presidencial da qual seu chefe participa. “Escreveremos sobre praticamente todos os aspectos desta campanha presidencial da mesma maneira que fizemos até agora”, escreveu em um memorando. Mas a Bloomberg News não poderia “investigar” o chefe e a proibição seria estendida ao resto dos pré-candidatos democratas. Eles podem continuar investigando a Casa Branca, mas a campanha do agora também candidato Donald Trump considerou que isso era um viés e negou acesso aos jornalistas da Bloomberg para cobrir seus eventos.

Entre as diretrizes que já existiam na empresa está a proibição de cobrir “a riqueza e a vida pessoal” do chefe. “Não quero que os repórteres que pago escrevam uma história ruim a meu respeito”, disse em uma entrevista em 2018. Seus três mandatos na prefeitura de Nova York e a própria carreira do empresário como filantropo e doador político, já ofereceram aos 2.700 jornalistas de sua empresa um campo de provas para lidar com conflitos de interesse. Mas esta é outra disputa. Para tranquilidade de seus trabalhadores, conforme disse nesta semana um de seus assessores, se vencer as eleições Bloomberg venderá a empresa que leva seu sobrenome.

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