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Com Brexit, Reino Unido abre nova era com o desafio de unir um país fraturado

Premier Boris Johnson evita uma grande comemoração e fala em “momento de renovação nacional”

Dois funcionários retiram a bandeira britânica da sede do Conselho Europeu, nesta sexta em Bruxelas.
Dois funcionários retiram a bandeira britânica da sede do Conselho Europeu, nesta sexta em Bruxelas.OLIVIER HOSLET / POOL (EFE)
Rafa de Miguel

A partir deste sábado, Boris Johnson tem um desafio de dimensões colossais: recuperar a unidade de um país dividido entre os que recebem o Brexit como uma “libertação” e os que o consideram “uma tragédia e um erro histórico”. O primeiro-ministro britânico falou nesta sexta-feira sobre “o amanhecer de uma nova era” e apresentou a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) como “um momento de mudança e renovação nacional”. As celebrações oficiais, no entanto, reduziram-se à mínima expressão, para não reabrir as feridas ainda recentes depois de mais de três anos de raiva e bloqueio.

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Como um corredor que passa exausto pela linha de chegada da maratona, ou um esquiador que deixa finalmente de dar voltas depois de um grande golpe, somente os partidários mais ferrenhos do Brexit tinham vontade de comemorar. Os demais ficaram sem forças para qualquer festejo. E os defensores da permanência na UE se limitaram a expressar sua tristeza, sua resignação, quase seu alívio, ante um fato consumado.

O Reino Unido abandonou oficialmente, às 23h (20h em Brasília) desta sexta-feira as instituições comunitárias, depois de 47 anos. “A tarefa deste Governo ―minha tarefa― é voltar a unir este país e levá-lo adiante. E o mais importante que devo dizer esta noite é que isso não é um final, mas um começo”, afirmou Johnson, numa mensagem à nação gravada um dia antes em Downing Street (residência oficial do primeiro-ministro) e retransmitida pelos canais de TV nacionais uma hora antes da conclusão do Brexit. O premiê conteve sua natureza entusiasta ―que o levou, num primeiro momento, a anunciar que soariam os sinos do Big Ben― e ordenou que as comemorações fossem modestas e distantes de qualquer triunfalismo.

Johnson reuniu seus ministros durante tarde em Sunderland, norte da Inglaterra. Lá foi anunciado, no referendo de 2016, o primeiro resultado a favor da saída da UE. Na sua chegada, um grupo de manifestantes se encarregou de gritar ao primeiro-ministro que ele não era bem-vindo. “Trata-se de usar este novo poder, esta soberania recapturada, para dar à população as mudanças pelas quais votou (...). Vamos redescobrir músculos que não havíamos usado durante décadas”, afirmou Johnson em sua mensagem à nação.

Downing Street já anunciou que Johnson se dirigirá aos britânicos na segunda-feira, ao vivo, para explicar quais são os seus planos para os próximos 11 meses, quando forem abertas as negociações com Bruxelas para definir a relação futura do país com o bloco. Não será um caminho fácil. Ele conta com ampla maioria na Câmara dos Comuns (deputados) e um Partido Conservador aparentemente unido ao redor de sua figura. Os tories já não se enfrentarão pela “questão europeia”, mas correm o risco de ressuscitar outra velha guerra. A dos defensores radicais do livre comércio, que aspiram a romper qualquer amarra às normas da UE, e a dos protecionistas que, nos próximos meses, começarão a ver as consequências do Brexit para os agricultores, pecuaristas, pescadores e empresários de seus respectivos colégios eleitorais.

“A Grã-Bretanha está diante de uma encruzilhada”, disse nesta sexta-feira o ainda líder da oposição, Jeremy Corbyn. “Ao abandonarmos a UE, temos a oportunidade de definir nosso futuro papel na comunidade internacional para as próximas décadas. Mudará o lugar que ocupamos no mundo. A questão é saber qual direção seguir.” Um diagnóstico finalmente acertado deste veterano político que, com sua ambiguidade em relação à crise mais grave vivida pelo Reino Unido nas últimas décadas, conduziu o Partido Trabalhista a uma catástrofe histórica.

Johnson decidiu comemorar de forma privada, com um jantar repleto de produtos ingleses na Downing Street, a chegada da nova era. Reuniu seus ministros e a todos os assessores e estrategistas que nos três últimos anos colaboraram para que o Brexit virasse realidade. Um projetor digital reproduziu a contagem regressiva nas fachadas de alguns edifícios governamentais. A Union Jack, a bandeira vermelha, azul e branca que representa um país que hoje corre um sério risco de se desintegrar, tremulou no The Mall, a avenida que une a Trafalgar Square ao palácio do Buckingham. Os defensores do fim da associação à UE celebraram sua vitória em frente ao Parlamento britânico, com direito a discurso do ultranacionalista Nigel Farage, o único protagonista desta história que sustentou seu histrionismo até o último minuto. “Chega ao fim um importante capítulo de minha vida. É como o último dia de escola. Você gosta quando chega, mas o mundo lá foram lhe dá certa apreensão”, disse ele na tarde de sexta-feira ao canal ITV, numa das várias entrevistas que concedeu para aproveitar o resto de um protagonismo que se esvai a toda velocidade.

Porque até os eurocéticos mais recalcitrantes mostraram certo pudor. “Não queremos ser triunfalistas, mas acredito que, em um gesto de simpatia com a Europa, alguns de nós podemos nos permitir beber um pouco de espumante francês nesta sexta-feira”, disse Jacob Rees-mogg, o político que mais ajudou a endurecer o discurso conservador a partir da sua ONG European Research Group.

Os britânicos partidários da permanência na UE mostraram sua resistência passiva, quase mais resignação, com vigílias em todo o país e velas acesas. Virou o tênue grito de guerra dos perdedores desta batalha. “Por favor, mantenham uma luz acesa para a Escócia.” Assim terminava a carta aberta que a ministra principal dessa região, Nicola Sturgeon, dirigiu na sexta-feira aos “amigos e vizinhos europeus”. “A melhor opção para Escócia é ser uma nação independente, dentro da UE. Enquanto isso, continuaremos ombro com ombro com o resto da Europa em torno de valores e interesses compartilhados”, afirmou.

O Brexit fragilizou a unidade de um país “formado por quatro nações”, das quais duas, Escócia e Irlanda do Norte, rejeitaram no referendo de 2016 a possibilidade de romper amarras com Bruxelas e começam a contemplar seriamente as vantagens de romper amarras com Londres.

Não se podem perder essas ameaças de vista, já urgem a Johnson algumas vozes conservadoras. O primeiro-ministro, entretanto, está obcecado com um único objetivo: reforçar o apoio todos os eleitores do norte da Inglaterra que se sentem abandonados à própria nas últimas décadas, e que em dezembro passado renegaram o trabalhismo para dar uma chance ao Partido Conservador. Quer convencê-los de que a raiva que manifestaram ao respaldar o Brexit era justificada, e que dedicará todos os recursos públicos ao seu alcance para reativar a economia dessas áreas. A isso se refere Johnson quando fala de “renovação nacional”, e se traduz politicamente no desejo de que os tories consolidem essa mudança de paradigma e retenham o poder durante uma década.

Johnson prometeu ao eleitorado do Reino Unido, agora liberto dos “grilhões” da UE, que geraria centenas de milhares de novos empregos. Sua esperança reside agora em começar a fechar novos tratados comerciais com países como os Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Japão, compensando assim a perda das vantagens adquiridas durante 47 anos de associação à UE.

“A UE tomou nos últimos 50 anos uma direção que já não convém ao Reino Unido”, afirmou Johnson em sua mensagem gravada à nação. E Londres afinal trilhou outro rumo.

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