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O que acontece no dia seguinte ao Brexit

Retirada do Reino Unido da União Europeia entrará para os livros de história, mas por enquanto será será mais simbólica do que prática

Homem carrega guirlanda em símbolo da União Europeia na praça do Parlamento, em Londres, nesta sexta-feira.
Homem carrega guirlanda em símbolo da União Europeia na praça do Parlamento, em Londres, nesta sexta-feira.SIMON DAWSON (Reuters)
Álvaro Sánchez

Não haverá estradas paralisadas na fronteira irlandesa. Nem expatriados no Reino Unido ou na União Europeia (UE) perdendo o direito à saúde pública e benefícios sociais. Tampouco escassez de alimentos, remédios ou combustível. Os telefonemas continuarão custando o mesmo. O Brexit chegará neste 1º de fevereiro com um amanhecer tão semelhante ao do dia anterior que poderá decepcionar tanto aos precursores da catástrofe isolacionista como aos que interpretam a data como o início da ansiada independência britânica após 47 anos trancados numa espécie de cárcere europeu. A tantas vezes adiada saída oficial do Reino Unido da UE chega finalmente neste sábado (noite desta sexta no Brasil), mas, embora as bandeiras sejam arriadas com solenidade, os documentos de divórcio sejam assinados entre flashes e a data entre para os livros de história, o passo é mais simbólico do que prático. Começa agora um período transitório em que quase nada muda, uma forma de pavimentar o caminho para a verdadeira soltura das amarras, marcada para 1º de janeiro de 2021.

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A consequência mais visível do Brexit será institucional. Os 73 eurodeputados britânicos não voltarão a ocupar seus assentos, terão até 7 de fevereiro para esvaziar seus gabinetes, poderão enviar para casa até 15 caixas com seus pertences a cargo do Legislativo continental, devolverão o laptop e a credencial e, em troca, receberão uma outra que lhes permite ter acesso ao local na qualidade de ex-eurodeputados. Só 27 vagas serão ocupadas por parlamentares de outros 14 Estados-membros, de modo que o plenário encolherá de 751 para 705 assentos.

O mesmo acontecerá em outras instâncias. O primeiro-ministro britânico não voltará a participar das cúpulas de chefes de Estado e Governo da UE. Nem seus ministros irão às reuniões realizadas periodicamente em Bruxelas com seus homólogos. O juiz britânico do Tribunal de Justiça da UE deixará seu cargo, assim como o do Tribunal Geral da UE. A advogada-geral continuará um pouco mais, até que seu sucessor seja escolhido. A representação permanente do Reino Unido na UE passará a se chamar Missão na UE, e os 27 países remanescentes nomearam o português João Vale de Almeida como seu primeiro embaixador pós-Brexit em Londres. Os funcionários britânicos na UE manterão seu posto, mas não se beneficiarão de promoções.

Toda essa movimentação acontecerá enquanto o Reino Unido permanece obrigado a cumprir as normas europeias durante o período transitório, continuando vinculado, por exemplo, à política pesqueira comum. A descoberta desse fato provocou recentemente a ira da eurodeputada britânica June Mammery, companheira do ultranacionalista Nigel Farage no Partido do Brexit. “A grande pergunta agora é: quem estará aqui para pedir contas a estas pessoas enquanto ainda controlam as águas de Grã-Bretanha sem que o Reino Unido tenha representação?”, questionou.

Período transitório mantém o ‘status quo’

Em 1º de fevereiro começa o período transitório, um prazo durante o qual a relação entre a UE e o Reino Unido continuará funcionando sem mudanças para cidadãos, consumidores, empresas, investidores, estudantes e pesquisadores. Londres continuará dentro do mercado comum e da união alfandegária, e os cidadãos de ambos os lados do canal da Mancha poderão continuar residindo sem entraves e se deslocando como até agora. Está previsto que isso vá até 31 de dezembro de 2020, mas a UE e o Reino Unido podem decidir prorrogar esse prazo, só uma vez, por mais um ou dois anos, desde que essa decisão seja tomada antes de 1º de julho.

Nos 11 meses de período transitório, o Reino Unido terá que respeitar todos os acordos internacionais assinados pela UE, continuará sob a jurisdição do Tribunal de Justiça da União Europeia e deverá cumprir as leis comunitárias, sob ameaça de sofrer um procedimento de infração, como qualquer outro Estado membro. O Reino Unido poderá negociar acordos internacionais com terceiros países, mas sua entrada em vigor terá que esperar o final do período transitório, a não ser que Bruxelas autorize em contrário.

Começa a negociação

A consumação do Brexit está longe de representar uma volta à calma nas relações entre a UE e o Reino Unido. Depois de estabelecer as bases do acordo de retirada, agora chega a vez de discutir como será a relação futura. O francês Michel Barnier liderará a negociação pelo lado europeu, e David Frost pelo britânico.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, temeroso de ficar preso às redes do período transitório, aprovou em dezembro uma lei que declara ilegal a sua prorrogação, uma forma de pressionar para que as negociações avancem o mais rapidamente possível. Mas, dados os precedentes, ninguém descarta que tenha que recuar de novo se as negociações encalharem. “Johnson também disse que preferia morrer em uma sarjeta a pedir outra prorrogação a Bruxelas, e acabou pedindo. Seu discurso é que não o vão estender, mas o que vão fazer na verdade ninguém sabe”, afirma Nicolas Veron, economista do Bruegel e do Peterson Institute.

Alunos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Alunos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. TOLGA AKMEN (AFP)

Um desencontro na negociação é o maior perigo que o processo enfrenta neste momento. Se em 1º de janeiro de 2021 não tiver sido concluído o acordo e o período de transição não for prorrogado, a separação seria abrupta e deixaria uma série de prejudicados, mas esse é só o pior cenário.

Continuará bancando a UE

Mesmo após deixar a UE, o Reino Unido continuará pagando todos os seus compromissos no Orçamento da União no período 2014-2020. Os beneficiários dos programas europeus, incluídos os do Reino Unido, desfrutarão deles até sua conclusão. O dinheiro continuará fluindo muito além da ruptura. Por exemplo, Londres pagará sua parte das pensões e outros benefícios dos funcionários comunitários e o mecanismo para os refugiados na Turquia.

Um clube menor

Com a saída de 66 milhões de britânicos, a população da UE passará a ser de aproximadamente 446 milhões e seu território diminuirá em 5,5%. Ante a tentação de que o divórcio com a UE possa se repetir em outros Estados-membros, os mandatários comunitários há tempos advertem de que os sócios europeus são muito pequenos para competir sozinhos num cenário de superpotências liderado pelos Estados Unidos e a China e à espera da potencial ascensão de outras como a Índia, com mais de um bilhão de habitantes.

E os intercâmbios universitários?

Os estudantes que escolherem o Reino Unido como destino para sua bolsa de intercâmbio Erasmus no próximo ano letivo (que começa em setembro) não notarão o Brexit. Embora parte do curso transcorra em 2021, quando talvez o período de transição já tenha sido encerrado, esses alunos poderão completar seus estudos normalmente, por terem começado antes durante o período transitório. Para quem quiser se matricular em 2021, a coisa muda de figura, pois dependerá do resultado da negociação futura.

O lado simbólico

A partida britânica levará à retirada da bandeira do Reino Unido do Parlamento Europeu. O momento, de grande carga simbólica, ainda não tem data e hora, segundo fontes parlamentares. Depois de descer do mastro onde permaneceu por 47 anos, o próximo destino da Union Jack será o Museu de História Europeia, situado muito perto da sede do Parlamento Europeu em Bruxelas.

O Brexit também terá um lado lúdico. Diversas festas, umas de triste despedida e outras de celebração, estão marcadas em Londres e Bruxelas para quem quiser estar acompanhado no momento do adeus. O divórcio porá fim a quase meio século de convivência e gera dúvidas sobre o futuro do bloco. “Temos que reinventar a forma de fazer política na Europa, e essa reinvenção não está conectada às velhas ideologias, e sim à capacidade dos políticos de não se desconectarem dos cidadãos”, diz Dacian Ciolos, líder do grupo Renew no Parlamento Europeu.

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