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Narendra Modi, um líder divisionista na Índia

O primeiro-ministro enfrenta riscos de conflito com a China e o Paquistão, além da epidemia fora de controle

Narendra Modi, por Luis Grañena
Narendra Modi, por Luis Grañena
María Antonia Sánchez-Vallejo

Ser o primeiro líder indiano nascido após a independência do país (1947) permitiu a Narendra Modi enfrentar, livre de amarras, os fantasmas indeléveis da partição do subcontinente indiano, resquícios de um passado que retorna com frequência na Caxemira e hoje parece a pronto de arrebentar com o Paquistão e a China, com os quais a Índia compartilha fronteiras no exuberante e explosivo Himalaia. O enésimo choque foi a batalha sangrenta entre soldados indianos e chineses na linha de demarcação. Dois colossos nucleares e uma volátil fronteira em disputa, com um homem forte e sem complexos em Nova Délhi.

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U.S. President Donald Trump and Indian Prime Minister Narendra Modi wave to the crowd at Sardar Patel Stadium in Ahmedabad, India, Monday, Feb. 24, 2020. India poured on the pageantry with a joyful, colorful welcome for President Donald Trump on Monday that kicked off a whirlwind 36-hour visit meant to reaffirm U.S.-India ties while providing enviable overseas imagery for a president in a re-election year. (AP Photo/Aijaz Rahi)
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Mas Narendra Namodardas Modi (Vadnagar, Gujarat, 1950), poderoso primeiro-ministro da Índia ―ele revalidou seu mandato no ano passado, de goleada, massacrando a oposição― não se caracteriza somente por sua política externa assertiva, nem por um programa de governo nacionalista e protecionista (“India first”, Índia primeiro). Nem por seus tiques populistas: ele já era um protopopulista quando governou seu Estado natal, entre 2001 e 2014.

Filho de um modesto vendedor de chá gujarati, Modi se tornou proselitista no RSS, o movimento radical de direita que promove o Hindutva (supremacia hindu), e se projetou no ativismo político durante a emergência decretada por Indira Gandhi entre 1975 e 1977, um dos períodos mais sombrios da história recente do país. Isso lhe permitiu escalar degraus e desembocar em 1980 no Bharatiya Janata Party (BJP, na sigla em inglês), uma formação nacionalista hindu à frente da qual em 2001 ele se tornou ministro-chefe de Gujarat, um Estado com maioria hindu e 10% de muçulmanos.

Em 2002 emergiu a pior onda de violência sectária na Índia desde os eventos de Ayodhya (1992). Os distúrbios causados pelos pogroms de muçulmanos em todo o país custaram entre 2.000 e 3.000 vidas, em uma orgia de atrocidades. A tibieza de Modi com os desmandos de seus correligionários hindus, que muitos qualificaram como condescendência e alguns, aquiescência, rendeu-lhe boicotes da União Europeia, do Reino Unido e dos Estados Unidos, que também lhe negaram visto. Vinte anos depois, Modi frequenta a Casa Branca e o Fórum de Davos, como convidado galáctico.

A lembrança do terror sectário não interferiu em sua ascensão ao topo. Em 2014, foi coroado primeiro-ministro da Índia. O BJP ratificou sua almejada vingança contra o monopólio de poder do partido do Congresso, dos Gandhi, graças a essa figura divisionista, com nítidos tons autocráticos, e ao mesmo tempo envolta em tal halo de beatitude que entre seus atos de campanha está o de retirar-se para uma caverna para meditar.

Deve-se à faceta mais esotérica de Modi a instituição do Dia Internacional do Yoga (21 de junho), adotado pela ONU em 2014 a seu pedido. E também a incerteza quanto ao seu estado civil: segundo as fontes, é solteiro, divorciado ou mesmo viúvo, como uma sucessão de hologramas dele próprio. A versão mais plausível é que ele se casou aos 18 anos, um matrimônio arranjado que durou quatro anos. O próprio Modi, desde então celibatário confesso, reconheceu esse parêntese muito depois.

Graças a Modi, o BJP alcançou seu objetivo, e vice-versa: “Redefinir a identidade indiana ao vinculá-la a um passado hindu transformado em mito e, ao mesmo tempo, transformá-la em um movimento político enérgico e moderno”, segundo a aguda definição de Patrick French no livro India: a Portrait. Mas seus opositores ―o bastião secular da intelectualidade de Nova Delhi e Calcutá; as minorias convertidas em alvos― destacam a conta a pagar: a insidiosa agenda sectária e a crescente intolerância religiosa, com leis discriminatórias como a da Cidadania, a concentração de poder em suas mãos, a ponto de deslocar o eixo de gravidade do Legislativo ―o DNA da maior democracia do mundo― para sua figura quase presidencial, o fraco desempenho econômico, apesar de suas promessas bombásticas, e com medidas como a desmonetização (retirada de circulação de certas notas) que aprofundaram o abundante setor informal indiano.

Sua gestão bem-sucedida em Gujarat (crescimento, mas sem desenvolvimento) não tem valido para a vastidão do país, e o manual Modinomics desperta cada vez mais receios, visivelmente reforçados pela desaceleração econômica e, agora, pelo impacto da pandemia: a Índia é o terceiro país do mundo em novos contágios, segundo o monitoramento da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. A Índia conta, nesta quarta, um total de 2.329.638 infectados pelo coronavírus.

“Para governar bem é preciso envolver e mobilizar as pessoas, caso contrário, o líder se torna um autocrata. Hoje todo o poder está concentrado no gabinete do primeiro-ministro”, lamentou em 2019 Arun Kumar, professor emérito da combativa Universidade Jawaharlal Nehru, em Délhi. Mas o que seus críticos menos lhe perdoam é que está erodindo os princípios fundadores da Índia independente, aquela Índia para todos os indianos que permitiu a um intocável como BR Ambedkar ser um dos pais da Constituição de 1950. O mesmo ano que viu nascer aquele que se tornaria o timoneiro da Índia no século 21, finalmente livre das amarras de 1947.

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