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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Ética de Weber para tempos de pandemia

Preservar vidas ou retomar a economia? As reflexões do filósofo alemão, cuja morte completa 100 anos no domingo, continuam muito vivas

Fernando Vallespín
Max Weber, de perfil e com barba, em Munique em 1919.
Max Weber, de perfil e com barba, em Munique em 1919.cordon press (Alamy Stock Photo)

No domingo 14 de junho completa-se cem anos da morte de Max Weber, provocada por uma pneumonia após infectar-se com a gripe espanhola. O ilustre professor mal poderia imaginar que comemoraríamos seu centenário em meio a uma pandemia semelhante. Porque Weber, o clássico entre os clássicos das ciências sociais, o inquieto elaborador de teorias e forjador de conceitos, nunca deixou de acreditar nos avanços das ciências e no progresso. Ainda que tenha feito à sua maneira, revelando suas muitas ambiguidades e ambivalências.

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Sua tese central sobre o desenvolvimento do mundo moderno já é ensinada no começo do curso de sociologia. Modernidade equivale à racionalização de todos os processos sociais com a finalidade de resolver da maneira mais eficiente possível questões de natureza prática. E racionalização se conjuga com industrialização, burocratização, especialização, secularização, avanço do capitalismo. Mas também com coisificação e desumanização, porque esse processo conduz à destruição do “jardim encantado” das religiões e concepções do mundo pré-modernas. Aparecem novas esferas de valor —ciências, direito, ética, estética, religião... —, cada uma com suas próprias regras, que já não podem se integrar em uma unidade e nos provocam uma espécie de estranhamento existencial.

O efeito de todos esses processos é, pois, o “desencantamento” (Entzauberung, em alemão) do mundo. O que antes se via como o resultado de poderes e forças misteriosas e ocultas é suprido agora por um saber científico-técnico sistemático. Graças à ciência e à tecnologia sabemos cada vez mais sobre o mundo que nos rodeia, este se enche de formas de organização e engenhos técnicos dos quais fazemos uso cotidiano, mas que, com exceção do caso de cada especialista, não compreendemos. Usamos o metrô e o computador, mas na verdade ignoramos como funcionam; ocupamos um alvéolo em uma imensa organização burocrática, mas sua racionalidade interna escapa de nosso entendimento. Ou seja, nos sentimos incorporados a uma ordem —um dispositivo, como diria Foucault—, que marca suas leis por toda parte, mas ao que não encontramos o “sentido”. Os avanços produzidos pela racionalização do mundo também são acompanhados por uma perda.

Vamos nos deter um momento nisso, porque é aqui que se encontra um dos aspectos mais interessantes de seu diagnóstico. Em dado momento Weber nos diz: “A imagem da ciência é a de um reino transmundano de abstrações artificiais que tentam apresar com suas mãos secas o sangue e a seiva da vida real sem chegar a apresá-la. E quando afirma que a ciência não pode dar respostas à “única pergunta importante para nós, o que devemos fazer e como devemos viver”. Todos os aspectos da vida social aparecem formatados por esse processo de racionalização que reproduz o modelo de um aparato burocrático, hierárquico, organizado por especialistas. E um mundo construído a partir de uma racionalidade instrumental abstrata e distante poderá nos garantir a eficiência, e não o sentido da vida. O resultado é a alienação do mundo, e esta nos conduz ao conformismo. Dentro desta “jaula de ferro” a liberdade perde sua dimensão de autonomia e se transforma em rotina.

Weber une essa descrição a uma importante consequência política, que acabaria se tornando profética. O perigo de sujeitos isolados e alienados em uma sociedade de massas burocratizadas e seu possível salto ao irracionalismo: “os velhos deuses se levantam de suas tumbas” e recomeça a velha luta entre eles. De acordo com a postura básica de cada qual, uns serão deuses e outros demônios. “E a pessoa deve decidir qual será Deus para ela e qual será demônio”, já não há uma instância racional com capacidade para nos orientar nesse incomensurável pluralismo de valores. E que se pretenda compensar a perda do sentido seguindo cegamente um líder. Não podemos nos esquecer que nosso autor vive no período anterior à República de Weimar em um ensurdecedor ambiente político.

É quase inevitável levar algumas dessas reflexões à sociedade tecnocrática e hipertecnológica de nossos dias. À luz de seu diagnóstico, o atual ressentimento à ciência, o ceticismo à verdade e à objetividade dos fatos, a proliferação de teorias conspiratórias, seriam nossa forma de reação frente a essa nova sociedade digital. É possível que sua melhor encarnação seja o populismo, com sua guinada ao maniqueísmo ―eu sou Deus, você o diabo— e a priorização da emoção sobre a cognição. Por isso nos é tão estimulante reler hoje seus textos de caráter mais marcadamente político, tão inclinados a abrir um caminho racional, “científico”, a esse mundo tão propenso à irracionalidade ideológica, e introduzir uma ordem conceitual no ainda precário âmbito dos partidos, líderes e processos parlamentares, o cenário do poder. E pode ser que resida aqui o mais importante, suas reflexões sobre os atributos que deveriam acompanhar a liderança e ética em que esta deve se apoiar. Definitivamente, o que encontramos nessa joia que é sua conferência sobre a política como profissão/vocação.

A distinção que ele introduz aí entre ética da convicção e ética da responsabilidade já é bem conhecida, mas é difícil imaginar outra que capte melhor a natureza dilemática da ação política, como o decisor político se vê sempre preso entre os mandatos da moral e as demandas de uma realidade sempre sujeita a contingências. Sua opção pela ética da responsabilidade, a de levar sempre em consideração as consequências de nossas ações —a outra, a da convicção, seria uma ética “extramundana”, não suporta a “irracionalidade ética do mundo”— já se transformou no paradigma em que, pelo menos em teoria, se inspiram os grandes políticos. Mas algumas vezes, nos lembra o professor, não podemos ignorar os mandatos morais absolutos, o “eu estou aqui, não posso fazer outra coisa” de Lutero. As duas éticas não estão em oposição absoluta, devem tentar se conjugar, e “somente juntas fazem o autêntico homem, esse homem que pode ter ‘vocação para a política’”.

Nisso Weber não estava desorientado. Pudemos experimentar no momento de precisar tomar decisões difíceis durante a pandemia, preservar vidas e restringir direitos em troca de reduzir nosso bem-estar econômico. Às vezes o que são consequências “desejáveis” se chocam com a aplicação de meios aceitáveis. Por isso Weber se preocupava tanto com “o tipo especial de ser humano” a quem entregamos o exercício do poder, o tipo de homem “que se deve ser para colocar suas mãos nos raios da roda da história”. Temo que já nos esquecemos desse último ponto.

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