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Deve-se censurar as cenas racistas do cinema infantil?

Chegada da plataforma Disney+ reabre o debate sobre o que fazer com os clássicos que, vistos hoje, são controversos ou incorretos. Devem ser excluídos?

Bobby Driscoll (esquerda) e Glenn Leedy, em cena de 'A Canção do Sul' (1946).
Bobby Driscoll (esquerda) e Glenn Leedy, em cena de 'A Canção do Sul' (1946).

Os espectadores norte-americanos que entraram em novembro na nova plataforma de streaming da Disney+ e escolheram ver Fantasia, Mogli – O Menino Lobo, Dumbo ou Peter Pan descobriram que esses filmes são precedidos de um alerta que diz: “O programa é mostrado como criado originalmente. Pode conter retratos culturais antiquados”. A mensagem se refere, por exemplo, à centaura negra de Fantasia, que aparece lixando os cascos de um cavalo, ao orangotango King Louie em Mogli, que canta para o menino em ritmo do jazz: “Oh du-bi-du, quero ser como você” (isto é, humano, civilizado), o corvo de Dumbo, cujo nome é Jim Crow, como as leis que segregavam negros e brancos no sul dos Estados Unidos, e a música Por Que Ele Diz Au, que aparece em Peter Pan e exibe todos os clichês possíveis sobre os nativos norte-americanos.

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Dos 57 clássicos da Disney, apenas 11 têm roteiro original. Só há uma coisa que a fábrica dos sonhos gosta mais do que de adaptar histórias clássicas: inventar praticamente tudo. Para além das canções, dos animais falantes e das longas cabeleiras, as versões da Disney criam deslizes conservadores que aderem imediatamente ao cânone da cultura popular: hoje o mundo inteiro continua acreditando que Pocahontas e John Smith se apaixonaram dando corridinhas daqui para lá e ouvindo um lobo uivar para a lua azul. É o momento de revelar a mentira que temos ouvido a vida toda: uma mentira muito bonita, mas mentira e ponto. Na imagem, um dos casos, ‘Aladdin’.
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Até o próprio lançamento do Disney+, que deve chegar ao Brasil em novembro e dará acesso a um catálogo que inclui clássicos da animação, o universo Marvel e a saga Star Wars, havia especulações sobre outra possibilidade mais radical: colocar esses filmes na plataforma, mas com as polêmicas cenas censuradas.

Por fim, só ficaram de fora do menu um filme infantil de 1981 de Bill Cosby (preso por vários casos de abuso sexual), um episódio de 1991 de Os Simpsons no qual Michael Jackson aparece como dublador convidado e o filme maldito da Disney, A Canção do Sul, musical de 1946 que mostra uma visão idílica da vida dos trabalhadores negros nas plantações e relativiza, ou ignora diretamente, o drama da escravidão. Este é o único título clássico que nunca foi comercializado em qualquer formato de vídeo caseiro nem é exibido nos canais da Disney.

A criação da plataforma de streaming reabriu o debate sobre como devemos revisitar determinados filmes. Devemos parar de mostrar clássicos porque agora são inadequados?

A historiadora de cinema Karina Longworth dedicou ao filme A Canção do Sul a última temporada completa de seu bem-sucedido podcast You Must Remember This. Uma de suas conclusões é que a desgraça da película não se deve somente ao revisionismo cultural, a olhar o passado com os olhos do presente. Na verdade, o filme provocou protestos antes e depois de sua estreia nos anos 40. A revista New Yorker e o jornal The New York Times lhe dedicaram críticas duras por seu conteúdo estereotipado e racista. No entanto, quando foi relançado em 1956, nada disso aconteceu. Em 1972, houve uma rejeição tímida. Nos 80 de Reagan, o filme agradou tanto que a Disney o levou ao cinema duas vezes e se baseou nele para projetar a atração Splash Mountain de seus parques. “Foi quase reposicionado como um filme sobre tolerância racial”, diz Longworth.

‘Pocahontas’ (1995), filme da Disney baseado nos diários do marinheiro e explorador John Smith, por volta de 1610.
‘Pocahontas’ (1995), filme da Disney baseado nos diários do marinheiro e explorador John Smith, por volta de 1610.Foto: Alamy

A solução encontrada pela Disney+ de incluir alertas em alguns títulos não contentou a todo mundo. Para começar, o texto é considerado asséptico demais e menos detalhado que o inserido pela Warner Brothers em alguns de seus desenhos clássicos, como Tom & Jerry, no iTunes e na Amazon Prime, os quais deploram os “preconceitos étnicos” de alguns episódios, sublinhando que eram “Errados na época e errados hoje” e explicando que se optou por não censurar os desenhos "porque isso seria como fazer ver que esses preconceitos nunca existiram”.

Há também a questão de quais filmes merecem os alertas explicativos. No momento, a Disney os coloca apenas nas produções feitas até os anos 70, e por razões de discriminação racial e cultural. “Deveriam pôr também em filmes mais recentes, como Aladdin e Pocahontas, e dar um passo além, adicionar palestras e material educativo que explique os problemas do filme e a história por trás dele”, avalia Aramide Tinubu, jornalista e crítica que costuma escrever sobre representatividade no cinema. Tinubu endossa os argumentos de associações que trabalham pela defesa da imagem de asiáticos, árabes e nativos norte-americanos, as quais exigem a revisão dos títulos dos anos 90, época inaugurada com A Pequena Sereia (1989) e conhecida como o “Renascimento da Disney”. Aladdin (1993) começava com uma canção que diz que o malvado Agrabah “vem de uma terra onde cortam a sua orelha se não vão com a sua cara” e em Pocahontas (1995) todos os males do colonialismo se diluem com um romance entre um capitão inglês e uma nativa norte-americana.

“Os alertas são curtos. Esses filmes são sexistas, racistas e, em alguns casos, capacitistas [discriminam pessoas com deficiência]. Portanto, os textos deveriam ser mais claros sobre a natureza problemática desses filmes”, acrescenta Psyche Williams-Forson, professora de Estudos Americanos da Universidade de Maryland. Você permitiria que seus filhos vissem Mogli – O Menino Lobo sem supervisão? “Não, eu não deixei minha filha ler o livro sem eu mesma lhe explicar antes certos aspectos, e farei o mesmo com o filme”. A gestão do passado não apresenta dilemas só para a Disney. Desde a estreia de Frozen, em 2014, a casa fundada por Walt Disney, um furioso anticomunista e acusado de antissemita e racista, entrou em uma era progressista ou politicamente correta, dependendo de como se vê. Basta ver os remakes em ação real de Dumbo, A Bela e a Fera, Mogli – O Menino Lobo e O Rei Leão. A videoensaísta Lindsay Ellis se refere a esta época como “Woke Disney”, usando o termo da moda que se aplica ao ativismo identitário. “A tendência de questionar e corrigir em excesso a moralidade questionável dos filmes originais está em toda parte nesses remakes”, diz Ellis em um de seus vídeos. Mas fazem isso, diz, ignorando os aspectos mais espinhosos, como o racismo, e se concentrando em outros mais digeríveis (e exportáveis), como o empoderamento feminino ou os direitos dos animais. O Dumbo de Tim Burton (2019) termina com a libertação dos animais do circo, um gesto pouco crível em 2010, que é quando se situa a ação, e opta por eliminar os polêmicos corvos.

Frozen 2, lançado em novembro, deveria ter sido o ápice dessa Disney progressiva e multicultural se Elsa tivesse conseguido a namorada que milhares de tuiteiros pediam. Como não parece que a China e outros mercados estejam prontos para uma princesa lésbica, os produtores optaram por fincar pé em sua solteirice e independência. Alguns, como o professor de Estudos Queer da Universidade Estadual de San Diego, Angel Daniel Matos, o primeiro a falar da homossexualidade de Elsa em um contexto acadêmico, duvidam que a Disney possa estender no tempo a sua ambiguidade. “A viagem de Elsa para se tornar ela mesma, sua resistência às exigências de seus pais e da sociedade, a celebração dos elementos que a tornam rara e diferente são muito semelhantes aos das pessoas queer." Por enquanto, temos de nos contentar com as duas cenas em que aparece Honeymaren, uma nativa de Northuldra com quem Elsa começa uma amizade inspiradora.

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