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Gritos no quarto 1219: o julgamento midiático que mudou os rumos de Hollywood

Há cem anos, o astro de cinema Fatty Arbuckle foi acusado de estuprar e matar a atriz Virginia Rappe. Embora tenha sido declarado inocente, o caso provocou uma mudança sísmica na indústria cinematográfica e acabou com a carreira do ator mais bem pago do mundo

Retrato de Virginia Rappe, a atriz que morreu em uma festa em 1921 e de cuja morte o astro Fatty Arbuckle foi acusado sem provas.
Retrato de Virginia Rappe, a atriz que morreu em uma festa em 1921 e de cuja morte o astro Fatty Arbuckle foi acusado sem provas.Bettmann (Bettmann Archive)
Eva Güimil
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Em 5 de setembro de 1921, a modelo e atriz Virginia Rappe dançava no Westin St. Francis Hotel, em São Francisco, como mais uma convidada da festa em homenagem a Roscoe Fatty Arbuckle. O ator tinha reservado três quartos do hotel para comemorar que seu novo contrato com a Paramount o tornaria a primeira estrela a ganhar um milhão de dólares. Quatro dias depois, Rappe morria em um hospital da cidade e Arbuckle se sentava na Sala de Justiça de São Francisco acusado de assassinato, algemado e sem direito a fiança. Começava um julgamento legal e midiático que arruinou a carreira do ator, estimulou o crescimento da imprensa marrom e mudou as regras de Hollywood durante quatro décadas.

Os protagonistas da história não tinham uma origem muito diferente. Virginia Rappe, nascida Rapp em Illinois em 1895, era filha de uma corista alcoólatra que morreu quando ela tinha 11 anos. Aos 16 anos já havia feito alguns abortos. Quando, aos 25 (ou isso era o que dizia, na verdade tinha 26), chegou à última festa de sua vida, já havia sofrido seis. Tinha mudado de São Francisco para Hollywood para trabalhar como modelo e atriz, mas depois de uma breve carreira publicitária, definhava esperando por um grande papel que não chegava.

Arbuckle também sabia o que era viver uma infância muito pobre e sem amor. Os quase oito quilos que pesou ao nascer, no Kansas em 1887, deixaram sequelas em sua mãe que jamais superou e quando ela morreu, o pai o culpou pela morte e se afastou dele. Aos cinco anos começou a atuar no vaudeville e acabou monopolizando o protagonismo de todos os números de que participava. Aos 20 anos, pesava 120 quilos, mas era extremamente ágil. “Era um grande bailarino, dançar com ele era como flutuar nos braços de um enorme donut”, disse sobre ele a atriz Louise Brooks.

Esse contraste, somado ao seu ar bonachão, abriu-lhe as portas do cinema e fez dele o favorito das crianças. “Foi o cara que descobriu Buster Keaton, o que ensinou Charlie Chaplin”, escreveu seu biógrafo Stuart Oderman. “Teve um momento cômico mágico. Foi um dos maiores de todos os tempos”. As origens de ambos eram semelhantes e, embora o caminho para o sucesso os tivesse levado a um ponto muito diferente, aquela noite no St Francis iria unir seus destinos para sempre.

O comediante Roscoe (Fatty) Arbuckle (1887-1933) em uma fotografia publicitária em sua era de glória, nos anos dez.
O comediante Roscoe (Fatty) Arbuckle (1887-1933) em uma fotografia publicitária em sua era de glória, nos anos dez. Hulton Deutsch (Corbis via Getty Images)

“Fatty fez isso”

A festa havia começado dois dias antes, aproveitando que era feriado prolongado do Dia do Trabalho norte-americano. Depois de 48 horas de dança, drogas e álcool —a Lei Seca só valia para os pobres— gritos vindos do quarto 1219 silenciaram a música. Os convidados que ainda estavam em pé se aglomeraram na porta. Rappe e Arbuckle estavam ali havia muito tempo e agora ela estava caída no chão, uivando de dor. O médico determinou que seu mal-estar era resultado da bebedeira, ela foi levada para outro quarto e esperaram que passasse. Quatro dias depois morreu no Wakefield Sanatorium. Segundo relatórios do hospital, em decorrência de uma peritonite provocada por uma bexiga rompida.

Os médicos não encontraram nenhuma evidência de violência física nem de agressão sexual, mas uma mulher que tinha acompanhado Rappe à festa, Maurent Delmont, disse a quem quisesse ouvir que a atriz lhe havia sussurrado “Fatty fez isso”. Foi o suficiente para que a polícia prendesse o ator e começasse uma série de julgamentos legais e de midiáticos. Antes de aguardar o veredito, os cinemas retiraram seus filmes de cartaz e a Paramount rompeu seu contrato.

Os fãs de Arbuckle, que dias antes lotavam os cinemas para ver seus filmes, começaram a apedrejar suas fotos nas marquises. Os grupos de defesa da moralidade exigiram que ele fosse condenado à morte, Hollywood lhe deu as costas. Todos os seus amigos (exceto Buster Keaton) desapareceram.

Três julgamentos foram realizados. Os dois primeiros foram declarados nulos. No terceiro, Arbuckle montou (pagando por ela seus últimos centavos) sua defesa. Segundo os laudos médicos, os ferimentos internos de Rappe eram compatíveis com o aborto realizado apenas três dias antes da festa no mesmo hospital em que tinha morrido, algo que, por ser ilegal, fora ocultado. Também fora ocultado que Rappe sofria de gonorreia avançada e que sua saúde estava muito deteriorada pelo abuso de álcool.

Roscoe “Fatty” Arbuckle com sua equipe de advogados de defesa durante o julgamento, o primeiro que a imprensa acompanhou de perto e transformou em evento sensacionalista.
Roscoe “Fatty” Arbuckle com sua equipe de advogados de defesa durante o julgamento, o primeiro que a imprensa acompanhou de perto e transformou em evento sensacionalista. Bettmann (Bettmann Archive)

A principal testemunha de acusação, Maurent Delmont, não compareceu no depoimento. A defesa descobriu que ela não era a grande amiga de Rappe que fingira ser. Elas tinham se conhecido alguns dias antes e na noite do acontecimento não tinha podido ver nada porque estava em outra sala, cochilando por causa do álcool. Ela acabou se revelando uma extorsionária profissional que usava garotas para enganar homens ricos e depois chantageá-los. Ela mostrou inclusive um telegrama que havia escrito para um amigo: “Temos Roscoe Arbuckle preso aqui. Oportunidade de ganhar algum dinheiro”.

O promotor do caso estava ciente da escassa credibilidade de sua testemunha principal, mas era ano eleitoral e suas aspirações políticas o levaram a colocar lenha na fogueira nas palavras de Delmont (e, como se soube mais tarde, a pressionar outras testemunhas a incriminar Arbuckle, algo simples considerando que todos estavam em uma festa ilegal).

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Livre de toda culpa

Depois dessas provas no terceiro julgamento, a deliberação do júri durou apenas os seis minutos que levaram para escrever um comunicado para tentar reparar o dano que havia sido infligido ao ator. “Uma absolvição não é suficiente para Roscoe Arbuckle. Sentimos que uma grave injustiça foi cometida e não havia a menor prova que o relacionasse de alguma forma à prática de qualquer crime. Desejamos a ele sucesso e esperamos que o povo norte-americano considere o julgamento de 14 homens e mulheres de que Roscoe Arbuckle é completamente inocente e livre de toda culpa”.

Os jornais não deram importância. Como conta a pesquisadora Joan Myers, autora de The Search for Virginia Rappe in Film History: “A maioria dos editores de jornais parecia relutante em publicar detalhes médicos; ou não os entendiam ou consideravam todo o assunto vulgar e impróprio para sua publicação”. Aquela história que combinava celebridades, álcool, sexo, uma garota bonita e morte era ouro puro e a realidade não arruinaria uma notícia de capa.

William Randolph Hearst, o magnata da imprensa que inspirou Cidadão Kane (1941), usou seus quase 30 jornais para animar os detalhes mais truculentos da história e de passagem jogar terra sobre sua relação adúltera com a aspirante a estrela Marion Davies. Graças a manchetes como “O estuprador dança enquanto sua vítima morre” ou “A orgia de Arbuckle” venderam mais jornais do que depois do naufrágio do Lusitania (o fator que levou à entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial). O que corrobora as palavras da atriz Gloria Swanson em sua biografia, Swanson on Swanson: “Os jornais haviam demonstrado em menos de uma semana que o público se emocionava muito mais ao ver cair as estrelas do que ao vê-las brilhar. Um dia Fatty Arbuckle era o comediante mais querido e no dia seguinte estavam pedindo sua cabeça”.

Retrato da modelo e atriz Virginia Rappe (1891-1921), cuja triste morte serviu para alimentar a imprensa sensacionalista e criar um clima de censura em Hollywood.
Retrato da modelo e atriz Virginia Rappe (1891-1921), cuja triste morte serviu para alimentar a imprensa sensacionalista e criar um clima de censura em Hollywood. Photo 12 (Universal Images Group via Getty)

Apesar do que foi dito em cada sessão do julgamento, o que foi noticiado na imprensa é que o ator, em um ato de depravação sem precedentes, estuprou Rappe com uma garrafa de champanhe ou de Coca Cola, dependendo de quem contasse. Uma imagem que cem anos depois permanece no imaginário coletivo e é motivo de piadas em livros, filmes e séries que vão desde Os Simpsons a Lei & Ordem. Os enfadonhos detalhes médicos da história real foram substituídos pela infame versão contada anos depois por Kenneth Anger em seu sensacional Hollywood Babilonia.

Um júri o tinha declarado inocente, mas o público se preocupava mais com o julgamento da mídia em que o ator era claramente culpado e Fatty foi condenado ao ostracismo. Como disse a historiadora Cari Beauchamp à BBC: “Este foi o primeiro escândalo de Hollywood com implicações de bilheteria. Todos tinham acreditado que as estrelas estavam cobertas de pó de fadas. Então essa ilusão ficou em pedaços e os chefes dos estúdios temiam que aquilo destruísse Hollywood”.

Um verdadeiro controle censório

Com medo da intervenção do Governo e da perda de público, a indústria, como explica o historiador do cinema Adrián Esbilla, buscou uma solução: “Os próprios estúdios tentaram limpar sua imagem e, ao mesmo tempo, escapar de um verdadeiro controle censório criando um código sob medida e que eles próprios controlavam. A pedido dos cinco majors, foi criado um escritório pelo qual deviam passar não os filmes, mas os projetos. Para dirigi-lo, o Senado enviou Will H. Hays, um republicano presbiteriano”.

A liberdade que se havia respirado em Hollywood recebeu um golpe mortal que inaugurou uma nova era. “É a época do crime que não compensa e dos casais que dormem em camas separadas. É o fim do cinema de mulheres divorciadas e do poliamor e o momento em que os homossexuais voltam ao celuloide secreto”, acrescenta Esbilla. E nessa involução os mais afetados foram, paradoxalmente para Virginia Rappe, os personagens femininos.

“Na era anterior ao Código Hays, as mulheres eram inteligentes, profissionais, ambiciosas, diretas, opacas, enganosas e até criminosas. Chantagearam chefes, tinham bebês fora do casamento ou seduziam outras mulheres”, aponta Andi Zeisler em We Were Feminists Once: From Riot Grrrl to CoverGirl® (Uma Vez Fomos Feministas: de Rebeldes a Garotas da Capa). “As mulheres eram tão humanas na tela quanto os homens, cheias de apetite, humor e teimosia”. O Código Hays as relegou às cozinhas.

Paradoxalmente, afirma Esbilla, essa época de restrições morais significou também “o momento da criação da verdadeira Hollywood mítica, a do glamour, das estrelas inalcançáveis e do ouropel. Hollywood, de certa forma obrigada, se reinventa como um território imaginário, fantasioso, uma fábrica de sonhos. Tudo isso, claro, obriga a uma série de reformulações da linguagem visual, outros códigos que sirvam para sugerir o que naquela época pré-código se dizia frontalmente”.

“A tragédia é que nenhum filme sem a chancela do censor podia ser relançado ou distribuído. Isto levou à mutilação de filmes como A Companheira de Tarzan ou King Kong e ao esquecimento de muitos deles e inclusive à perda irreparável dos mesmos”, acrescenta Esbilla. Uma tragédia que afetou os filmes de Arbuckle. Naquele festival do ouropel, ele já não era um convidado de luxo. O antigo luminar acabou trabalhando como diretor sob pseudônimo e, paradoxalmente, dirigindo algum subproduto para a glória menor de Marion Davies, amante de Hearst, o homem que tinha contribuído para o seu linchamento midiático.

Depois de uma década de esquecimento, a revista Motion Picture publicou um artigo intitulado “Fatty Arbuckle não merece um descanso?”, que provocou uma renascida simpatia pelo ator. Como contou sua última mulher, Addie Sheldon, ao jornal britânico The Guardian, um dia Arbuckle finalmente recebeu a ligação que havia esperado durante 11 anos. O todo-poderoso Jack Warner oferecia a oportunidade de atuar em frente às câmeras novamente com seu nome verdadeiro. Poucas horas depois ele morria de ataque cardíaco nos braços de Addie. Tinha 46 anos.

Cem anos depois daquela festa selvagem, o código Hays é apenas uma má lembrança, mas os rumores que ceifam carreiras continuam mais atuais do que nunca. E agora já não existe um William Randolph Hearst, mas mais de 3,6 bilhões de usuários de redes sociais. Como escreveu o crítico do Los Angeles Times, Kenneth Turan: “Ao menos Arbuckle não teve de lidar com o Twitter”.

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