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Portland demonstrou que era possível viver de outra maneira, e Trump jamais perdoará isso

Cidade é há décadas um exemplo bem-sucedido de estilo de vida alternativo. Embora haja apenas 6% de população negra, lá o movimento Black Lives Matter se tornou forte

Manifestante faz o sinal da paz com as mãos durante protesto antirracista em 2 de agosto, em Portland, Oregon.
Manifestante faz o sinal da paz com as mãos durante protesto antirracista em 2 de agosto, em Portland, Oregon.Nathan Howard (AFP)

A cidade onde se vive sem pressa e as galinhas são animais domésticos. O novo capítulo da grande crise americana se desenrola atualmente em Portland, uma urbe que se sente estranha e adora ser assim. Donald Trump enviou um verdadeiro exército para reprimir o movimento Black Lives Matter e o mundo assiste atônito a uma batalha campal estranha àquele que se tornou um dos lugares mais tranquilos e com melhor qualidade de vida dos Estados Unidos.

Em 1988, a banda espanhola Os Resentidos, de Vigo, publicou Galicia Sitio Distinto, um hino à exceção cultural galega. Era uma denúncia da frívola e impune piromania que provoca incêndios florestais, é verdade, mas também uma homenagem às mulheres “de pupilas de metal” e à Galícia eterna, terra dos feitiços, da morriña (saudade) e de dançar muiñeira. Um canto ao lugar “onde a chuva é arte e Deus se deitou para descansar”, como apregoava o grupo Siniestro Total em outra grande canção da época, Miña Terra Galega. A Galícia dos Estados Unidos se chama Oregon, terra de colinas e florestas situada, junto com o Estado de Washington, no canto noroeste do país, à beira de um grande oceano. E se há um lugar do Oregon com fama (justificada) de ser diferente, é Portland, uma cidade de 632.000 habitantes aos pés do monte Hood, entre os rios Willamette e Columbia. Uma urbe que se orgulha de sua própria estranheza e a transformou em parte essencial de sua identidade.

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Em uma dramática reviravolta nos acontecimentos, a cidade diferente está sendo agora vítima de um experimento político e social traumático e com poucos precedentes nas democracias ocidentais. Trump decidiu enviar para Portland o que os moradores chamam de “força de ocupação”, um número fora do comum de agentes do Departamento de Segurança Nacional (DHS, na sigla em inglês), vestidos com a mesma roupa de camuflagem que as unidades especiais do Exército usavam durante a guerra no Afeganistão. A imprensa começou a chamá-los de “homenzinhos de verde”. Foram enviados, nas palavras do presidente, para reprimir “uma insurreição anarquista”, promovida pelos que continuam protestando nas ruas contra o assassinato do cidadão George Floyd. Como denunciou na CNN o advogado especialista em direitos humanos Benjamin Haas, “os agentes do DHS estão prendendo manifestantes e levando-os em veículos sem insígnia”, em uma linha de atuação que segue uma lógica “paramilitar” e de legalidade “muito duvidosa”.

A escritora Froma Harrop explica em um artigo no site Real Clear Politics que a “invasão” de Portland pelo “exército clandestino” de Donald Trump nada mais é do que uma gigantesca cortina de fumaça, um ensaio geral da política de “lei e ordem” com a qual o presidente espera ser reeleito em novembro. Harrop considera que Trump parece destinado à derrota por sua gestão nefasta da crise sanitária da covid-19: “Até Barbados, uma ilha satélite que vive do turismo americano, pede-nos visto e nos impõe quarentenas porque nos vê como portadores de uma doença infecciosa que não conseguimos conter”. Neste contexto tão negativo para seus interesses, Trump aspira a mudar a tendência se apresentando como o candidato “da lei e da ordem”, o único que pode “restaurar a paz”. E para restaurar a paz, precisa declarar primeiro uma guerra que não existe.

Outro comentarista, Ryan Cooper, descreve o que Trump está fazendo em Portland como a aplicação de uma “típica tática fascista”. Aqueles que estão criando o caos com sua repressão fulminante de um protesto em geral pacífico são os mesmos que se apresentam como defensores da ordem. No entanto, Cooper reconhece que, exceto por um punhado de ruas no centro, “a cidade permanece bastante à margem desse caos induzido”. As pessoas continuam frequentando os mercados populares e os restaurantes de slow food, molhando os pés no lago artificial da Jamison Street e sentando nos terraços das cervejarias artesanais do Pearl District.

Portland, a Cidade das Rosas, resiste a Trump sem perder seu caráter de ilha de tranquilidade e boêmia, sem abrir mão de suas credenciais de lugar diferente. Cooper se pergunta também por que o presidente escolheu Portland. Por que semear o caos da “normalidade” precisamente ali e não em qualquer outro lugar. Por que aplicar tanta pressão em uma cidade onde o movimento Black Lives Matter se articulou de forma massiva, mas não violenta. Por que atacar a juventude hipster deste canto distante na Costa Oeste quando o ativismo mais radical estava concentrado em lugares como Minneapolis, Cleveland, Nova York, Los Angeles e Detroit. Talvez por ser uma cidade de esmagadora maioria branca, mas tão progressista, tão “de esquerda”, que abraçou com entusiasmo um movimento civil afro-americano? Poderia ser. Mas não parece um motivo suficiente.

O jornalista e escritor espanhol Vicent Chilet, que conhece bem Portland porque a visitou em 2013 e lhe dedicou vários capítulos de seu livro Slow West, Crònica d’una Ruta Americana, (“Slow West, crônica de uma rota americana”), tem uma teoria: “Trump investe precisamente contra eles porque são perigosos: demonstram com seu exemplo que é possível viver de outra maneira”. Chilet descreve Portland como “a cidade para onde vão os jovens que querem ficar tranquilos, que têm um projeto de vida simples e sustentável e não buscam o sucesso material, apenas uma vida digna em uma comunidade na qual possam se sentir à vontade”.

Visto dessa forma, o que torna Portland um lugar diferente é que ela propõe uma alternativa ao sonho americano, à experiência urbana nervosa e histérica oferecida por cidades como Chicago, Boston, Nova York e Los Angeles, nas quais a vida é uma corrida frenética e até o entretenimento é competitivo e estressante. Em Portland, segundo Chilet, pode-se “viver com muito pouco dinheiro”. É por isso proliferam os negócios locais assumidamente modestos, impulsionados por jovens sem maior ambição do que fazer algo de que gostem. Hortas ecológicas, foodtrucks, feiras de artesanato, cafeterias minúsculas, sebos de livros, restaurantes de slow food... Portlandia, uma comédia dadaísta da TV que tenta captar o clima desta cidade diferente, está repleta de gags como a de um casal que, antes de comprar um frango assado em uma barraca de rua, pergunta ao vendedor sobre a vida que o pobre animal teve: se foi criado em liberdade e alimentado com ração artesanal, se era alegre ou melancólico, se foi abatido de uma forma que respeitasse sua dignidade e seus direitos. Não é que sejam veganos, mas se preocupam com o bem-estar material e espiritual dos animais que comem.

Chilet considera que a sátira amável feita em Portlandia é “bastante certeira”. Ele se lembra de Portland como uma cidade muito alternativa, “mas de forma bem genuína, com verdadeiro orgulho local e sem o ponto de afetação e esnobismo que talvez se respire em lugares como Brooklyn, San Francisco e até Seattle”. O escritor recorda uma conversa com um grupo de jovens artesãos em um dos mercados populares do centro da cidade: “Nenhum deles tinha carro, consideravam um luxo desnecessário e irresponsável. Não pensavam em se mudar de Portland porque sentiam que ali haviam criado raízes e tinham tudo de que precisavam. De qualquer forma, faziam passeios de bicicleta pelos arredores, que são magníficos, e algumas viagens de carona até a costa, que fica a uma hora de distância, no fim da rota seguida no início do século XIX por Lewis e Clark, os grandes exploradores do noroeste”.

No Pearl District, os boêmios não são agentes da gentrificação, são membros de uma comunidade solidária que resiste a ela. Para Chilet, esse distrito lembra “o ambiente de bairros rebeldes e com muito sabor local, como Sankt Pauli, em Hamburgo”. Portland tem, em sua opinião, “um curioso ar de cidade europeia nórdica, mas também uma atmosfera afrancesada, uma cultura do café e da sobremesa, das tertúlias espontâneas ao ar livre, algo que não é muito frequente nos Estados Unidos”. Em Portland se vive muito fora de casa sempre que o clima, gélido e úmido no inverno, permite. Também foi uma das primeiras cidades americanas a se equipar com uma quase universal ciclovia, “que muitas vezes tem prioridade sobre os carros”, destaca o escritor, e uma das que têm o melhor perfil ecológico.

Como jornalista esportivo, Chilet se surpreendeu a paixão sincera com que a cidade vive o esporte: “Não tem nada a ver com o sentido convencional do espetáculo americano. Não tive a oportunidade de ver o Portland Trail Blazers, uma equipe muito comprometida com a comunidade e suas causas sociais, mas vi o clube local de futebol, o Portland Timbers, enfrentar o Seattle Sounders no derby do noroeste. O ambiente nas arquibancadas era como o dos estádios europeus, mas sem a hostilidade exagerada com o rival nem o clima de violência”.

Portland é diferente por vocação, mas também como estratégia de sobrevivência. A cidade tem um passado industrial, muito ligado às explorações florestais. Foi também um importante porto fluvial e, nos anos 1950, uma cidade notável por sua vida noturna, controlada por organizações criminosas e bastante centrada na prostituição e nos jogos de azar. Queria ser a sucursal nortista de Las Vegas e já estava em clara decadência no início dos anos 1960, época em que a revista Life a descreveu como uma das cidades “mais inóspitas e corruptas” do país.

A subcultura hippie veio em seu socorro. Jovens universitários de ideias contraculturais começaram a se estabelecer nas casas baratas do centro, em bairros, como o hoje fascinante Pearl District, nos quais a insegurança e o tráfico de drogas tinham afugentado a classe média. Os novos inquilinos transformaram a cidade até convertê-la na prova de que outra forma de viver, mais tranquila, amável e solidária, era perfeitamente possível. Nos anos 1990, começaram a proliferar por toda a cidade grafites com o lema “Keep Portland Weird” (“mantenha Portland estranha”). O slogan já havia sido adotado por Austin, a cidade universitária que é uma ilhota de juventude e progressismo no altamente conservador Estado do Texas.

Em poucos anos, Portland tinha levado sua aposta na estranheza muito mais longe que seus irmãos de Austin. A nova boêmia hipster substituiu os beatniks e os hippies, e se consolidou uma fértil cena musical alternativa, com bandas como Modest Mouse, The Decemberists, She & Him, The Shins e Chromatics tocando em lugares como o Crystal Ballroom e sua sala anexa, Lola’s Room. Portland se transformou em uma cidade verde, acolhedora e culturalmente estimulante. Essa nova prosperidade e esse novo modelo urbano baseado no crescimento sustentável serviram também para que a cidade recuperasse espaços de interesse turístico que tinham se deteriorado, como o jardim japonês com suas espetaculares cascatas, a histórica mansão Pittock e até o modesto e charmoso zoológico local, com seus “estranhos” elefantes.

Chilet nos fala de uma Portland onde os moradores “transformaram as galinhas em animais domésticos, levando-as para passear com coleira e recolhendo seus excrementos”, onde as cervejas comerciais não podem competir “com as dezenas de cervejarias tradicionais de elaboração local, em consonância com o que está ocorrendo no Brooklyn, mas também na Alemanha e na Bélgica”, onde as pessoas “sentem uma amável curiosidade pelos estrangeiros e parecem ter todo o tempo do mundo para falar com você”.

Convidado a escolher lugares que captem a essência da Portland mais excêntrica e estimulante, nosso interlocutor cita a Powell’s City of Books, “a maior livraria independente e de segunda mão do mundo”, um templo da letra impressa que ocupa um quarteirão inteiro de edifícios no Pearl District. Aponta também a Voodoo Doughtnut, a lendária loja de rosquinhas artesanais cujo lema é “The Magic Is in the Hole” (“a magia está no buraco”): “É uma instituição local. A loja é minúscula e as pessoas se dispõem a ficar horas na fila para visitá-la e explorar seu incrível cardápio, repleto de donuts de todos os tipos. Nós esperamos pacientemente, curtindo um show improvisado ao lado de um grupo de bombeiros que tinham estacionado seu caminhão na esquina”.

Os guias da cidade recomendam também uma visita à velha Chinatown, com seu Saturday Market (o mais próximo de um mercado tradicional oriental que pode ser encontrado nesta margem do Pacífico), as omeletes de ostras e os ovos mexidos com tofu oferecidos pelo encantador Bijou Café. Ou os passeios de bonde pelo Nob Hill, o bairro das receitas veganas, da gastronomia local biossustentável, da cozinha efêmera dos famosos foodtrucks, dos frutos do mar e do sushi. Em seguida, vale a pena fazer compras nesse fascinante bazar que é o Pearl District e molhar os pés na Jamison Square, não muito longe do lugar em que o Willamette desemboca no Columbia. Os arredores são bons para excursões, como uma visita à estação de esqui do monte Hood, às praias de Astoria, à rota do vinho do vale do Willamette ou à espetacular garganta do Columbia.

Nos últimos anos, o tradicional “Keep Portland Weird” começou a ser substituído por um novo lema: “Make Portland Weird Again” (“faça Portland grande de novo”). Trata-se de uma resposta ao “Make America Great Again” de Trump, mas também do nostálgico reconhecimento de que a cidade está se tornando burguesa e começa a perder parte de seus ares excêntricos e alternativos. O site do movimento de moradores com esse lema lembra glórias locais hoje desaparecidas, como “a igreja de Elvis, a stripper que se transformou em romancista e o guitarrista dos cem piercings”, tão saudosos como “os cabarés abertos a noite inteira, os antros de hackers abertos o dia inteiro, as festas clandestinas em lugares secretos, o teatro de guerrilha, os artistas punk de rua e as danças dos moradores em seus quintais”.

Para os puristas da Portland distinta, o desaparecimento de todos esses exemplos de excentricidade e loucura fértil prova que “os EUA declararam guerra à estranheza e nós, os estranhos, perdemos”. Se isso fosse verdade, se a cidade diferente estivesse desistindo de ser assim, Portland já não seria uma ameaça e Trump e seus homenzinhos de verde estariam se enganando de inimigo.

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