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A solidão é uma epidemia e um negócio. No futuro, pagaremos para ter amigos?

A pandemia acelerou o isolamento social, que afeta nossa saúde mental e nossa expectativa de vida. Com isso, nasce uma grande indústria de acompanhamento, que cria ferramentas para viver sem precisar da presença de outras pessoas

Ilusración de Portada suplemento Ideas 31/10/21. La soledad
Ilusración de Portada suplemento Ideas 31/10/21. La soledadJuárez Casanova

A banda The Velvet Underground cantava em Walk Alone: na verdade, caminhamos, sonhamos e morremos sozinhos. Mas a ascensão dos seres humanos ao topo da cadeia alimentar se deve à sua solidariedade, não à sua vida na solidão. Por isso nós nos ajudamos, acompanhamos um ao outro e vivemos em comunidade. No entanto, nos últimos anos a solidão vem atingindo níveis epidêmicos. Vemos o aumento dos lares onde vive apenas uma pessoa, o trabalho a distância e todos os dispositivos digitais que nos levam a migrar para uma realidade virtual feita sob medida para nós. Se toda transformação social leva a novas respostas comerciais, estamos diante do surgimento da economia da solidão.

Os efeitos da crise do coronavírus para o isolamento social podem ser mais bem entendidos com números: um de cada quatro cidadãos europeus se sentiu solitário nos primeiros meses da pandemia, segundo um relatório da Comissão Europeia publicado em julho. É o dobro do que se verificava em 2016. Entre os jovens, o número se multiplicou por quatro. Na Espanha, mais de 5,7 milhões de pessoas viverão sozinhas em 2035 e as famílias unipessoais representarão quase um terço do total. E a solidão, quando não é desejada, tem consequências evidentes: as pessoas socialmente isoladas têm maior risco de morte prematura e são mais propensas a sofrer problemas de saúde mental, segundo um estudo publicado no American Journal of Preventive Medicine em abril. O Japão e o Reino Unido já têm departamentos governamentais dedicados, especificamente, a lutar contra a solidão.

Em 2011, a socióloga Arlie Russell Hochschild alertou que pagar para se sentir acompanhado seria comum em um futuro não muito distante. “A indústria de acompanhamento nos fará sentir incômodos e haverá críticas, mas a tendência persistirá. A necessidade de conexão social é primordial”, afirmou Hochschild em seu livro The Commercialization of Intimate Life: Notes from Home and Work (“a comercialização da vida íntima: notas de casa e do trabalho”, ainda sem edição em português). Uma década depois, proliferam iniciativas e produtos projetados para aliviar essa solidão não procurada. Podem ser serviços de amigos de aluguel ou aluguel de parentes postiços para ― como em Segredos em Família, primeiro filme de Fernando León de Aranoa ― acompanhamento em datas especiais, como um aniversário. Há uma infinidade de aplicativos que conectam pessoas solitárias com interesses parecidos e de robôs cuidadores com os quais podemos conversar na sala de casa. E há todas essas novas moradias e centros de trabalho compartilhado (coworking) projetados com corredores estreitos que obrigam as pessoas a se cumprimentarem, com mesas grandes que forçam o compartilhamento nem que seja de um cafezinho, e que vendem como um novo santo graal aquilo que é mais comum nos seres humanos: a criação de uma comunidade.

Segundo a economista britânica Noreena Hertz, a progressiva institucionalização da vida a sós ocorre dentro de um sistema, a doutrina neoliberal, que há várias décadas vem alterando profundamente as relações trabalhistas, sociais e pessoais, levando ao isolamento. Em O Século da Solidão (Record), Hertz analisa alguns dos serviços desta nova economia, como uma empresa de aluguel de amigos com um catálogo onde se pode escolher a melhor companhia entre 60.000 pessoas. A autora britânica conta como contratou, por 120 dólares (680 reais) por hora, Brittany, uma amiga-acompanhante com quem passeou e pela qual ganhou apreço, confessa, porque, entre outras coisas, a contratada ria de suas piadas. Após um pouco de insistência, Brittany lhe falou sobre seus outros clientes, descrevendo-os como “profissionais solitários entre 30 e 40 anos, o tipo de gente que trabalha muitas horas e não parece ter tempo para fazer muitos amigos”.

Nevasca em 1981 na praia de Etretat (Alta Normandia, França).
Nevasca em 1981 na praia de Etretat (Alta Normandia, França).Jean Gaumy (Magnum Photos / ContactoPhoto)

Conexões não humanas

Nesta nova economia da solidão, Hertz destaca também o aumento da demanda por robôs sociais ― a administração municipal de Barcelona lançou no início deste ano um projeto-piloto de assistentes robóticos para idosos. A economista define os robôs sociais como “objetos mecânicos de inteligência artificial projetados especificamente para sintonizar emocionalmente com você”. Nos humanos, as conexões são tão imprescindíveis que ocorrem também com não-humanos, lembra Hertz. Por isso proliferam os animais de companhia e uma certa relação pessoal com assistentes digitais como Siri e Alexa, ou com robôs tão simples como o aspirador Roomba. Ou até com objetos inanimados, como bichinhos de pelúcia, como bem sabe quem convive com crianças. Viviana Otálvaro, engenheira colombiana especializada em design de produtos, inventou um boneco de pano com braços muito longos, para que possa abraçar uma pessoa, chamado Hugger (“abraçador”). Em 2019, vendeu 3.000 exemplares; em 2020, 10.000. Cerca de 70% das vendas foram para adultos presentearem outros adultos. Para Otálvaro, o que explica esse envolvimento emocional é o fato de que o boneco “é um símbolo e não substitui ninguém. É uma lembrança do outro, de que você não está sozinho. O boneco simboliza pessoas que você ama e que estão longe ou já não estão”, afirma por telefone de Medellín. Porque o maior castigo é a solidão forçada, como demonstram as celas de isolamento nas prisões.

A ideia de não perder ou promover a noção de comunidade entre idosos, entre migrantes nacionais ou internacionais e também entre adolescentes jovens, está presente em muitos documentos de empresas de tecnologia, em iniciativas políticas locais e em projetos comunitários. “A necessidade de estar em coletividade está na ordem do dia. Com a pandemia, o tecido social ficou bastante afetado, e agora é que está sendo reconstruído”, reflete Liliana Arroyo, doutora em sociologia. Neste contexto, o que deixa os jovens atônitos é “o contraste brutal entre a facilidade, o ritmo e a escala das relações digitais em comparação com as pessoais”, segundo Arroyo. A boa notícia é que os jovens ― que diferenciam claramente os vínculos digitais dos reais ― têm cada vez mais consciência de que as relações realmente nutritivas são as que vinculam, não as que apenas conectam. Por isso, Arroyo foge do catastrofismo digital sobre o isolamento social. Para a socióloga, a verdade é que estamos passando por uma grande mudança social e ainda nos encontramos “na fase de começar a pensar o que fazemos em torno da tecnologia”.

Talvez a chave esteja na tese por trás da máquina. Por exemplo, em 2019 a administração municipal de Barcelona registrou que mais de 75.000 moradores acima de 65 anos viviam na solidão, e lançou um projeto que usa tablets para colocá-los em contato com familiares, pessoas com interesses comuns ou em situação parecida. Dois anos depois, mais de 3.000 usuários participam dessa iniciativa.

Vizinha, Desça sua Cadeira

Normalmente os problemas detectados pelas instituições são vivenciados primeiro na rua. Há alguns anos, no bairro de La Verneda, em Barcelona, um grupo de moradoras denominado Las Vernedas lançou o projeto Vizinha, Desça sua Cadeira, destinado a criar vínculos entre mulheres em espaços públicos de seu próprio bairro, usados majoritariamente por homens. E atualmente o grupo está preparando uma nova iniciativa para combater a solidão feminina não desejada, que consiste em “conversar ao ar livre, compartilhar situações e dar uma mãozinha”, explica María Jesús Berlana, uma das integrantes. Durante o confinamento, ela, assim como tantas pessoas que vivem sozinhas, viu-se olhando para o telefone com uma vontade enorme de conversar, mas pensando: “E agora? Para quem eu ligo?”. O grupo considera primordial manter uma rede de afeto entre as moradoras, algo que talvez não salve a vida, mas salva uma tarde. “Naquela época, ligávamos para as que estavam sozinhas e dizíamos: ‘Vou fazer compras, quer que traga alguma coisa para você? Pão, jornal?’. E de quebra conversávamos um pouco.”

Pandemia à parte, o grupo nota que em áreas como La Verneda ― um bairro de trabalhadores, com alta porcentagem de imigração nacional ― muitas mulheres perderam essa rede básica de companhia, amigas, cunhadas ou vizinhas com quem passear ou tomar algo. Pessoas que sempre acompanharam você e que, quando você chega a uma certa idade, “voltaram para o interior, foram para uma casa de repouso ou morreram”, diz Berlana enquanto toma um café no bairro. Daí a ideia de sentar e conversar sobre tudo isso na rua, porque “nesta sociedade, mostrar-se vulnerável não dá medo, dá pânico”, reflete.

O precioso mundo físico

Talvez a solidão seja um dos últimos tabus, mas cada vez mais vozes apontam a necessidade de falar sobre ela. “Solidão não significa que a pessoa fracassou, mas simplesmente que está viva”, escreve Olivia Laing em seu livro A Cidade Solitária: Aventuras na Arte de Estar Sozinho (Anfiteatro). Agora, depois da experiência forçada do confinamento, estamos vivendo um momento de reativação de laços pessoais, como explica Laing em uma conversa por correio eletrônico. E isso porque durante esses longos meses perdemos “todo o contato com o mundo físico e percebemos como ele era precioso”, assinala. “Ao mesmo tempo, acho que muita gente percebeu como o mundo digital é insatisfatório: como falar pelo Zoom faz você se sentir só, isolado e desconectado.” Talvez seja só uma miragem que queiramos ver, mas nas ruas ou nos terraços agora repletos de gente parecemos sentir esse esforço de reconexão. Depois dos momentos mais duros da pandemia, “as pessoas desejam fazer parte de um grupo, experimentar a segurança de estar cercado de gente, especialmente depois de uma experiência tão aterradora”, conclui Olivia Laing.

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