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“Para ser feminista é preciso apoiar os direitos trans, porque ambos são direitos humanos e de gênero”

Em fevereiro chega ao Brasil o primeiro livro de memórias de Rebecca Solnit, ‘Recordações da minha inexistência’. A ‘inventora’ do termo ‘mansplaining’ nos fala de cultura do cancelamento e misoginia

Ilustração: Ana Regina García
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A história já faz parte da mitologia feminista. A escritora Rebecca Solnit estava em uma festa quando começou a conversar com um homem que insistiu em explicá-la um livro que ela mesma havia escrito. O episódio, imortalizado em Os homens explicam tudo para mim, desencadeou a criação do termo mansplaining, a tendência de alguns homens de instruir as mulheres, independentemente se sabem algo sobre um assunto ou não. Falamos sobre Recordações da minha inexistência, memória sobre como encontrou sua voz como escritora e feminista em mundo onde muitos preferiam que ficasse calada.

Pergunta. Em Recordações da minha inexistência a senhora fala de como a sociedade espera que as mulheres jovens passem despercebidas, não ocupem espaço e façam barulho.

Resposta. Para as mulheres, particularmente as jovens, a própria existência é vista como uma forma de agressão, uma agressão descortês. O cortês é que apaguem a si mesmas. E isso pode significar se afastar da esfera pública, da política, da participação em diferentes âmbitos da vida, e até em uma conversa. Ou participar, mas para servir aos homens no lugar de a si mesma, a seu gênero e suas próprias ideias. Como mulher, constantemente recebe mensagens para apagar-se e ser castigada: por aparecer, por competir, por pensar que merece fazer parte.

Solnit na capa de Recordações da minha inexistência (Companhia das Letras): “Quando jovem usava muita roupa vintage. Tive blusas com as quais não podia levantar o braço e saias tão justas que não dava um passo mais largo”.
Solnit na capa de Recordações da minha inexistência (Companhia das Letras): “Quando jovem usava muita roupa vintage. Tive blusas com as quais não podia levantar o braço e saias tão justas que não dava um passo mais largo”. Cia das Letras (EL PAÍS)

P. Uma das formas mais comuns de violência de gênero é a tentativa de silenciar. Com o MeToo as represas se romperam. Espera algum tipo de reação a esse movimento?

R. Quando vejo o medo e a raiva da misoginia, vejo que estamos fazendo algo importante, que é poderoso e que, em muitos sentidos, está fazendo sucesso. Algo que sinto que as mulheres jovens não reconhecem o suficiente é que o casamento, quando eu era jovem, estava projetado essencialmente como uma relação inerentemente desigual em que a mulher entregava sua identidade e seu poder, incluindo o financeiro e a autonomia corporal, ao esposo, que adquiria poder sobre outro ser humano. Isso mudou muito nos últimos 35 anos.

P. Na Espanha estamos vivenciando um confronto dentro do movimento feminista pelas feministas trans-excludentes. Qual é sua postura?

R. É como se estivéssemos lutando contra o inimigo imaginário enquanto deixamos que o inimigo real faça dano. Podemos nos centrar no fato de que quase toda a violência de gênero, a violência sexual, vem de homens cisgênero, e deixar de nos preocupar pelas mulheres trans? A cultura queer foi libertadora e o feminismo e a libertação queer são inseparáveis. O feminismo sempre tentou redefinir o gênero porque a feminilidade se definiu como a incapacidade de ser um participante pleno no mundo. Para ser feminista é preciso apoiar os direitos trans, porque ambos são direitos de gênero e direitos humanos. Acho que nenhum ramo do feminismo é legítimo se não apoia outros ramos dos direitos humanos.

P. Outra ideia que atravessa sua obra é que há uma guerra contra as mulheres que a sociedade resiste a reconhecer como tal. A senhora insiste em nomear essa violência.

R. Uma vez que as ideias são lançadas ao mundo, são como os gênios das Mil e Uma Noites: muito difícil de voltar a entrar na garrafa. É possível tirar por lei os direitos reprodutivos das mulheres, mas não necessariamente pode convencê-las de que não merecem ter direitos reprodutivos. Para mim o feminismo é fascinante porque grande parte de seu trabalho consistiu em identificar problemas. Um problema é como uma doença: os epidemiologistas tentam entender como funciona, os pesquisadores médicos tentam identificar qual bactéria e vírus a causa. E depois é nomeada.

P. Então por que ainda existe tanta resistência a reconhecer a misoginia?

R. Em parte é porque muita violência contra as mulheres é ódio que se parece com o amor: é sexual, íntima. Quando as coisas estão bem, fazer amor, ter uma relação romântica, estar casado e em uma família é bom. Mas essas coisas podem se tornar violentas, coercitivas. E isso é mais difícil de identificar, ocorre no privado. Mas sobretudo porque a maioria das sociedades do mundo consideraram que os homens têm direito a dominar as mulheres. Uma parte dessa dominação é educada e matizada. Ocorre na sala de aula, na universidade, no parlamento e na lei; outra parte, sobretudo quando essas outras formas de dominação falham, é violenta.

P. Como se sente por ter contribuído com o termo mansplaining ao vocabulário feminista?

R. Não criei a palavra, mas o ensaio que publiquei na primavera de 2008 inspirou uma blogueira a criá-la. Admito que nos primeiros anos não estava certa de como me sentia sobre isso porque é utilizada de modo muito amplo e de maneiras que nem sempre sinto que são precisas. Acho que me preocupava muito com a fragilidade masculina. Mas depois uma jovem estudante de pós-doutorado na Universidade de Berkeley me disse: “Até termos essa palavra, não pudemos identificar uma experiência que todas tivemos. E até conseguirmos identificar essa experiência, não pudemos repudiá-la e responder de maneira significativa. Precisávamos dessa palavra”. Desde então, a aceitei plenamente.

P. Como acha que deveríamos lidar, como sociedade, com nossa relação com a arte deliberadamente sexista e com o legado de artistas ‘cancelados’ que aterrorizaram as mulheres?

R. É possível ver todo o projeto do patriarcado como 5.000 anos de cancelamento das mulheres. Pessoas que estão muito felizes em atacar e tentar silenciar os outros se tornam muito frágeis quando cabe aos outros ter opiniões. Isso se remonta ao padrão de que algumas pessoas importam mais do que as outras, portanto, o patriarcado, o tentar cancelar as mulheres, não é um cancelamento e não é um problema: as mulheres que tentam cancelar os misóginos são. Sequer estão tentando cancelar alguém e queimar livros e filmes. Só estão dizendo: “Essa é uma obra de arte de merda porque tem valores de merda”. E: “É de uma pessoa que fez coisas de merda”.

P. Lembro a confusão quando a senhora criticou Lolita de Nabokov.

R. A arte não é trivial e irrelevante. E se ver assassinado repetidamente, degradado e simplesmente fora da história teve um grande impacto. Temos pessoas de cor, pessoas queer, mulheres etc., que falam sobre como o que viram nos filmes, o que leram nos livros que lhes deram, o que escutam na música pop moldou seu sentido de si mesmos. A arte importa. Nos define. Podemos avançar sendo muito conscientes de como queremos ser definidos e quem é o ‘nós’ que o definirá.

É um projeto emocionante. Não é uma tragédia essa merda sobre o cancelamento dos homens. E um ponto feito pela feminista Rebecca Traister em 2017 foi o de não pensar nesses homens cuja arte talvez não vejamos tanto. Pense em todas as mulheres cuja arte nunca vimos pelo que esses homens lhes fizeram, impedindo que sua obra circulasse, o que certamente aconteceu comigo.

P. A senhora escreve que a feminilidade é “um ato de desaparecimento constante, uma eliminação e um silenciamento para deixar mais espaço aos homens”. A moda pode resistir aos mandatos machistas e se transformar em ferramenta à igualdade?

R. Algo que sempre foi um problema para mim é o que chamo de incapacidade voluntária: saltos altos, roupa justa, coisas que não permitem que as mulheres se movam livremente. Como seria uma moda que de nenhuma maneira incapacitasse quem a usa, que não a aperte e a comprima, que não obstaculize sua liberdade de movimento?

P. Quais são as consequências do patriarcado aos homens?

R. Há uma passagem linda da feminista negra bell hooks que diz que o primeiro ato de violência que o patriarcado requer dos homens é contra eles mesmos. Ser homem requer repressão. Há tantas coisas que não podem dizer, que se espera que não devem sentir e desejar. Vejo a masculinidade como uma renúncia monástica: você sequer pode gostar de certas cores. Os homens são tremendamente oprimidos e às vezes as feministas são culpadas de não libertá-los. Não acho que seja trabalho de uma mulher libertar os homens, mas acho que o feminismo tem tudo para oferecer aos homens já que, ao redefinir os papéis das mulheres, necessariamente redefine os papéis de homens e os abre.

Esta entrevista foi editada e abreviada para maior clareza.

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