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Sir Ludwig Guttmann, o pai do movimento paralímpico

Neurologista britânico de origem judaica aplicou o esporte à recuperação dos pacientes com lesões medulares e foi o artífice dos Jogos Paralímpicos, cuja edição de Tóquio começa nesta terça

Ludwig Guttmann
Neurologista britânico de origem judaica aplicou o esporte à recuperação dos pacientes com lesões medulares e foi o artífice dos Jogos Paralímpicos.Denver Post (vía Getty Images)
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Tokyo (Japan), 08/08/2021.- Silver Medalist Beatriz Ferreira of Brazil holds up her medal during the Victory Ceremony for the Women's Light (57-60kg) at the Boxing events of the Tokyo 2020 Olympic Games at the Ryogoku Kokugikan Arena in Tokyo, Japan, 08 August 2021. (Brasil, Japón, Tokio) EFE/EPA/VALDRIN XHEMAJ
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O médico Ludwig Guttmann dedicou toda a sua vida à pesquisa e tratamento dos doentes com lesões medulares. Ao longo de sua carreira, sempre soube que o sucesso de um tratamento e a recuperação de um paciente não dependiam apenas dos remédios, mas sobretudo da sua reação psicológica e da qualidade de vida que pudesse obter. Seus estudos sobre a recuperação das lesões de coluna e a descoberta do esporte como ferramenta para melhorar a expectativa de vida dos pacientes fazem que atualmente ele seja recordado como o pai do movimento paralímpico.

“Se alguém puder ter o tratamento apropriado desde o início, não só será possível prolongar sua expectativa de vida como também será possível ter uma vida tão normal como a de uma pessoa sem deficiência”, costumava dizer Guttmann, pioneiro em demonstrar que o esporte para pessoas com deficiência pode ser tão competitivo e emocionante como o esporte para pessoas sem deficiências.

Ludwig Guttmann, conhecido como Poppa (papai) Guttmann, nasceu em Tost (hoje na Polônia, mas então parte da Alemanha) em 3 de julho de 1899. Foi o mais velho de quatro irmãos numa família judaica. Depois de concluir o ensino médio, começou a trabalhar aos 18 anos no hospital de Königshütte. Lá se deparou pela primeira vez com pacientes paraplégicos por lesões medulares, uma experiência que sem dúvida marcou sua vocação.

Um ano depois, o jovem Ludwig começou a estudar Medicina na Universidade de Breslau (atual Wrocław, na Polônia), após ser recusado no Exército por motivos médicos. Prosseguiu seus estudos em Würzburg e em Friburgo, onde se doutorou em 1924 com uma tese sobre os tumores de traqueia.

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Começou a trabalhar com o neurologista europeu mais importante da época, o professor Otfrid Foerster, com quem esteve durante nove anos, com exceção de um hiato para criar uma unidade de neurocirurgia em Hamburgo. Em 1933, embora já fosse considerado o neurologista mais importante da Alemanha, foi alvo da Lei de Nuremberg, pela qual os nazistas obrigavam todos os judeus a deixarem a prática médica nos hospitais arianos. Sob essa opressão, Guttmann se tornou neurologista do Hospital Judaico de Breslau e foi nomeado diretor-médico da instituição em 1937.

Desde o início da perseguição nazista aos judeus, Guttmann recebeu diversas ofertas para emigrar, já que seu pai havia morrido um campo de concentração, e sua irmã numa câmara de gás. Entretanto, rejeitou as propostas porque considerava que aquele regime não duraria. Em setembro de 1938, a Gestapo lhe ordenou que deixasse de atender pessoas não judias no hospital. Depois dos ataques antissemitas da chamada Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, Guttmann ordenou ao pessoal do hospital que admitisse qualquer pessoa sem fazer perguntas. No dia seguinte, precisou justificar sua decisão, caso por caso, perante as SS e a Gestapo. De 64 pessoas internadas, 60 se salvaram da detenção e da deportação para campos de concentração. Foi a partir desses fatos que Guttmann admitiu a necessidade de ir embora da Alemanha.

Mas Guttmann, como os outros judeus, tinha o passaporte confiscado e não podia viajar; entretanto, em dezembro de 1938, o ministro alemão de Relações Exteriores, Von Ribbentrop, mandou que ele viajasse a Lisboa para tratar de um amigo do ditador António Salazar. Em sua viagem de volta, recebeu autorização para passar dois dias na Inglaterra, e como já estava em contato com a Sociedade Britânica para a Defesa da Ciência e da Aprendizagem recebeu uma bolsa como refugiado e ficou por lá com sua esposa e seus dois filhos.

A família encontrou em Oxford uma pequena casa para morar. Guttmann começou a trabalhar no Hospital Militar St. Hugh’s College, especializado em lesões na cabeça, e seus filhos também receberam bolsas. Em 1943 o Governo britânico lhe pediu que assumisse a direção do novo Centro Nacional de Lesões Espinhais, no Hospital de Serviços Médicos de Emergência de Stoke Mandeville. Aceitou o cargo com a condição de poder tratar os pacientes à sua maneira, sem interferências.

Começou com pouquíssimos recursos e apenas 24 leitos, mas em seis meses Guttmann tinha quase 50 pacientes, a maioria ex-combatentes de guerra que foram passar ali seus últimos meses, já que a expectativa de vida dos paraplégicos antes de chegar ao centro de Guttmann era de apenas dois anos a partir do momento da lesão. Entretanto, o médico se negava a aceitar que uma lesão na coluna vertebral fosse uma sentença de morte, e seus avanços no tratamento da paraplegia foram revolucionários, a tal ponto que ensinou seus métodos a toda uma geração de médicos e inspirou a criação de instituições mundo afora, incluindo as que levam seu nome em Barcelona, Heidelberg e Israel.

Parte importante do tratamento foi assegurar que os pacientes mantivessem alguma esperança de progredir e retomar sua vida anterior. Os pacientes participavam de atividades de reabilitação social e médica, evitando o sedentarismo. No hospital foram instaladas oficinas onde podiam trabalhar com madeira e consertar relógios, por exemplo, mas foi o fomento das atividades esportivas que teve o maior impacto.

O primeiro esporte foi o polo em cadeira de rodas com tacos e um disco, mas logo foi substituído pelo basquete em cadeira de rodas. O arco e flecha também se tornou popular, porque se baseava na força da parte superior do corpo, o que significava que os paraplégicos podiam competir com pessoas sem deficiência. Desta forma, o tiro com arco se tornou o primeiro esporte competitivo na primeira edição dos Jogos de Stoke Mandeville, em 1948. Esse embrião de paralimpíada, realizado paralelamente aos Jogos Olímpicos de Londres daquele ano, teve a participação de 16 atletas, sendo 14 homens e duas mulheres.

A segunda edição dos Jogos de Stoke Mandeville aconteceu exatamente um ano depois, em 1949. A competição foi ampliada para 37 atletas de seis hospitais. Nessa edição, Guttmann anunciou sua intenção de avançar na direção de um movimento equivalente ao olímpico, mas dedicado aos esportistas com deficiência. Em 1951 os jogos já incluíram quatro esportes e 126 participantes de 11 hospitais de todo o Reino Unido.

A primeira edição com participação internacional foi a de 1952, quando houve uma representação do hospital de veteranos de Aardenburg (Países Baixos). Em 1953 a declaração de intenções dos Jogos Internacionais já era uma realidade, depois exposta no novo estádio esportivo inaugurado em 1969, e também na sala de tiro com arco do hospital: “O objetivo dos Jogos de Stoke Mandeville é unir homens e mulheres paralíticos de todas as partes do mundo em um movimento esportivo internacional, e seu espírito de verdadeira esportividade hoje dará esperança e inspiração a milhares de pessoas paralíticas”.

Nos Jogos de 1956, o Comitê Olímpico Internacional (COI) concedeu a Guttmann a Taça Sir Thomas Fearnley por seu serviço ao movimento olímpico. Três anos depois, em 1959, os jogos tinham crescido para 360 competidores de 20 países, e um ano depois, em 1960, os então denominados Jogos Internacionais de Stoke Mandeville foram realizados de forma oficial junto com os Jogos Olímpicos de Roma, por isso são considerados os primeiros Jogos Paralímpicos da história, embora o termo só tenha sido adotado em 1984.

Depois de se aposentar do Centro de Lesões Espinhais, em 1966, Guttmann continuou muito envolvido com os Jogos e sua organização nacional e internacional. Naquele ano foi nomeado cavaleiro pela rainha Elizabeth II, tornando-se o sir Ludwig Guttmann.

Em 1969, a própria soberana inaugurou um novo centro esportivo nas dependências do Hospital de Stoke Mandeville, hoje chamado Centro Esportivo Ludwig Guttmann para Deficientes.

Além da organização dos Jogos Internacionais, Guttmann continuou viajando e dando palestras sobre lesões de coluna em todo o mundo, educando e influenciando outros médicos com suas teorias e métodos. Entretanto, foi sua liderança nas organizações esportivas para pessoas com deficiência o que o ocupou até o final da década de 1970. Foi nesse período que Guttmann encabeçou as conversações com o Comitê Olímpico Internacional sobre o uso do termo “olímpico”, a fim de estabelecer o Comitê Paralímpico Internacional.

Sir Ludwig Guttmann morreu em 18 de março de 1980, aos 80 anos, de uma insuficiência cardíaca produzida por um enfarte ocorrido meses antes. Não viveu para ver sua visão ser integralmente realizada, mas seu trabalho continua vivo através das atuais organizações esportivas para pessoas com deficiência e do Centro Nacional de Lesões Espinhais de Stoke Mandeville, que continua sendo uma referência mundial no tratamento de lesões espinhais.

Os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro em 2016 se tornaram o terceiro evento esportivo mais importante do mundo, com a participação de 170 países e mais de 4.000 atletas.

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