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Ausência da camisa 24 na seleção brasileira na Copa América perpetua um “símbolo de intolerância”

Justiça arquiva processo que cobrava a CBF a explicar o motivo de o Brasil ser o único país do torneio sem um jogador vestindo o número historicamente associado de forma pejorativa à homossexualidade. Coletivos LGBTQIA+ lamentam “falta de coragem” dos jogadores em quebrar o tabu

Douglas Luiz, o 24º jogador da seleção brasileira, usa a camisa 25 na Copa América na disputa de bola com Enner Valencia, do Equador.
Douglas Luiz, o 24º jogador da seleção brasileira, usa a camisa 25 na Copa América na disputa de bola com Enner Valencia, do Equador.Alberto Valdés (EFE)
Diogo Magri
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Entre as 10 seleções sul-americanas que competiram a Copa América 2021, o Brasil é o único que não tem um jogador utilizando a camisa de número 24 em seu elenco, apesar de ter 24 atletas inscritos. A opção por não adotar o número historicamente associado de maneira pejorativa à homossexualidade, destacada pela primeira vez pelo UOL, levantou críticas de coletivos LGBTQIA+ e motivou um processo na Justiça do Rio de Janeiro, que obrigou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a justificar a ausência do 24 por uma “decisão desportiva”. Na visão de Marianna Rodrigues, torcedora do Grêmio e militante LGBTQIA+ do coletivo tricolor Tribuna 77, a escolha da CBF “alimenta violências e reforça o histórico de que o futebol é um lugar apenas para homens héteros”.

A regra em competições de seleções chanceladas pela FIFA, como a Copa América, é de que cada país possa inscrever até 23 jogadores. O limite é o que impedia, em situações anteriores, que a discussão da camisa 24 chegasse à seleção brasileira, uma vez que os números iam de 1 a 23. Mas, por conta da pandemia de covid-19, o número foi aumentado para 28 nesta edição do torneio, o que abriu margem para que jogadores usem até o número 28. No caso do Brasil, foram selecionados 24 atletas que seguem a ordem exata dos números do 1 (Alisson) ao 23 (Ederson). Mas Douglas Luiz, que é o 24º jogador na ordem numérica, usa a camisa 25. “A numeração utilizada pelos atletas tem relação com questões desportivas apenas. Para esse jogador [Douglas Luiz], em razão de sua posição (meio-campo) e por mera liberalidade, optou-se pelo número 25. Como poderia ter sido 24, 26, 27 ou 28”, justificou a CBF em processo movido na Justiça do Rio de Janeiro que pedia explicações à entidade. Depois da explicação, a Justiça arquivou o caso. O Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT, no entanto, que havia apresentado a petição no tribunal carioca, não comprou a justificativa e acionou a FIFA para que mais cobranças sejam feitas a CBF.

A lógica adotada pela CBF não se repete nas outras seleções. Na Argentina, rival dos brasileiros na final, a camisa 24 é usada por Papu Gomez, um dos atacantes que, apesar de não ser frequentemente titular, é peça importante na equipe de Lionel Scaloni. A escolha não significa que as outras seleções combatam a LGBTfobia —a Federação argentina, inclusive, já foi multada pela FIFA por homofobia praticada pela torcida de sua seleção. No entanto, o Brasil é o único país do continente onde o número 24 é associado diretamente aos gays por remeter ao animal veado no Jogo do Bicho.

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“O número 24 é uma piada conhecida no meio do futebol brasileiro, e um símbolo de intolerância ao gay. É muito ruim a seleção reproduzir esse comportamento a essa altura do campeonato”, afirma Rodrigues. A torcedora gremista de 28 anos faz parte da Tribuna 77, um movimento tricolor em Porto Alegre que levanta bandeiras de várias causas sociais, como o combate à homofobia, ao racismo e ao fascismo. “Eu não acho que é necessário obrigar o jogador a usar a 24, mas retirá-la da ordem lógica entre os atletas é uma ação homofóbica e, além disso, uma infantilidade”, corrobora Rafael Lucas, 25 anos, vascaíno e fundador da torcida Vasco LGBTQ+.

Não ficou claro se Douglas Luiz escolheu não usar a 24 ou se a CBF não a ofereceu ao jogador ―que publicamente nunca se manifestou sobre isso―, mas o fato de Douglas ter começado a carreira no Vasco trouxe uma proximidade do caso a Lucas. “Mesmo que seja uma decisão involuntária, faltou ali a coragem de quebrar o tabu. O meio do futebol é muito homofóbico, então os jogadores também são reflexo disso”, pontuou o vascaíno. Marianna Rodrigues também questiona a resposta da CBF, que considera “uma balela”. “Ser involuntária não torna a posição justificável. Uma vez conhecendo a realidade homofóbica no país e não se posicionando ativamente contra isso, você contribui para que ela continue. A seleção brasileira contribui indiretamente com o preconceito”, diz ela. Na Eurocopa, que acontece simultaneamente à Copa América, foram vistos exemplos contrários, como jogadores de seleções alemã e inglesa utilizando faixas de capitão nas cores do arco-íris em protestos contra a homofobia.

Clubes brasileiros se posicionam contra homofobia no Dia do Orgulho LGBTQIA+

O dia 28 de junho, marcado por ser Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, teve 18 dos 20 clubes da série A do Brasileirão se posicionando contra a homofobia nas redes sociais. Alguns se limitaram a postar mensagens na cor do arco-íris, enquanto outros tiveram ações mais concretas: o Fluminense deu a camisa 24 ao zagueiro Nino, um dos destaques do time, que a usou em partida do campeonato —um ato semelhante ao que Gabigol, que está na seleção brasileira, já fez no Flamengo. O Vasco lançou uma edição especial de seu uniforme, trocando a tradicional faixa preta por uma faixa arco-íris, e a utilizou na vitória contra o Brusque. No jogo, o artilheiro Germán Cano marcou um gol e foi até a bandeirinha de escanteio, que também estava nas cores do arco-íris, e a levantou em comemoração. “Foi algo do momento e isso o torna mais bonito. Quando fiz o gol, quis correr até ela, tirá-la e levantá-la, dando uma mensagem de respeito, paz e amor”, disse depois o atacante argentino.

Rafael Lucas e o seu coletivo participaram ativamente da campanha vascaína, sendo modelos do uniforme e escolhendo a instituição para a qual o valor arrecadado com a venda das camisas foi destinado. Lucas criou o coletivo há um ano, junto com a amiga Beatriz, “para que todos os vascaínos LGBT possam se sentir acolhidos na nossa torcida, para que o Vasco seja um ambiente mais inclusivo”. “Eu tenho um noivo, nós íamos a São Januário [antes da pandemia] mas sem demonstrar nenhum afeto. Era como se fossemos dois irmãos”, conta ele. “Então, eu ainda não estaria confortável para ir ao estádio e demarcar um lugar para gays na arquibancada com uma bandeira, por exemplo. Mas tenho muito orgulho desse pioneirismo. Está longe de estar perfeito, não tem que se posicionar só nas datas comemorativas, mas tudo é um processo”, ressalta o torcedor.

Na mesma data, o goleiro vascaíno Halls pediu para usar a camisa 24 no clube. “Muitas pessoas se sentiam constrangidas em usar a 24, e a gente veio quebrando os tabus. Hoje me sinto honrado, inclusive por estar ajudando numa causa muito bonita”, disse o goleiro de 22 anos. No Grêmio, o goleiro Brenno, que virou xodó da torcida ao assumir a titularidade e ser convocado para a seleção brasileira olímpica, também usa a 24. O avanço fica claro com a lembrança de que, no ano passado, o diretor do Corinthians (hoje presidente), Duílio Monteiro Alves, negou o pedido do jogador colombiano Victor Cantillo de usar o número símbolo. “24 aqui não”, disse o corinthiano no momento em que entregava a camisa 8 a Cantillo. A repercussão negativa terminou com um pedido de desculpas do dirigente e com o volante assumindo a 24. “Os clubes demonstram um progresso. É positivo conseguir popularizar esse tema num contexto onde não se fala sobre isso. Só precisa acontecer além das datas, ir além da política de mercado em torno da diversidade”, conclui Marianna Rodrigues.

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