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Copa América envergonhada: ofuscada pela covid-19, jogos encolhem ainda mais com escândalos políticos

Descrédito da seleção brasileira e gravidade da pandemia ofuscam torneio. “Alienação não acontece de forma tão banal. Competição não é capaz de distrair a população de problemas tão relevantes”

Foto postada na última vez que Bolsonaro tuítou sobre a Copa América, no dia 13 de junho.
Foto postada na última vez que Bolsonaro tuítou sobre a Copa América, no dia 13 de junho.REPRODUÇÃO TWITTER
Diogo Magri
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Desviar o foco das atenções. Essa foi, para muitos, a motivação do Governo Bolsonaro ao confirmar a realização emergencial da Copa América 2021 no Brasil. Em meio à terceira onda da covid-19, as revelações da CPI da Pandemia e a perda de popularidade, autorizar o torneio no país poderia ofuscar as crises vividas pelo presidente. Passados 30 dias, é seguro dizer que não deu certo. Os jogos aconteceram, o Brasil goleou, Messi deu show mas os principais assuntos do país são dominados por novas acusações de corrupção na compra de vacinas ao invés do torneio sul-americano ―até o campeonato disputado em outro continente, a Eurocopa, tem tido melhor repercussão e audiência. Segundo José Paulo Florenzano, antropólogo do esporte e professor da PUC-SP, o “tiro na água” é explicado por uma seleção descredibilizada e por uma interpretação bolsonarista simplista que classifica o futebol como “ópio do povo”. Para piorar, já foram confirmados 198 casos de covid-19 ligados à realização da competição, segundo o último balanço da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sendo 57 deles entre atletas e membros de comissão técnicas.

“Eu concordo que Bolsonaro quis usar a Copa América como uma cortina de fumaça. Com essa atitude, ele reedita a estratégia do Governo militar de considerar o futebol o ‘ópio do povo’. Mas é um delírio achar que o esporte tem esse poder mágico de anestesiar a sociedade da forma que o Governo pensa”, opina Florenzano. Na visão do pesquisador, um torneio entre seleções sul-americanas não é capaz de abafar as simultâneas crises sanitária, econômica e política do país, ainda mais com tantas denúncias de corrupção surgindo toda semana através da CPI. “O futebol é uma trincheira política importante para o regime em questão, mas a alienação não acontece de forma tão banal. A Copa América não é capaz de distrair a população de problemas tão relevantes”, afirma ele.

Essa incapacidade de “entorpecer” a sociedade, na visão dele, fica ainda mais clara quando se trata de uma seleção descredibilizada jogando um torneio que acontece pela quarta vez nos últimos seis anos. “Em 1970, por exemplo [quando a ditadura usou o tricampeonato mundial como propaganda], você tinha uma equipe no auge do prestígio nacional e internacional em campo por uma Copa do Mundo. Agora, há uma seleção que perdeu a centralidade que tinha na vida cultural e social do brasileiro, especialmente depois do 7 a 1”, observa Florenzano. “Por isso, atrai menos atenção, o que piora numa competição banalizada como a Copa América”, conclui.

A opinião de Florenzano é acompanhada pelos números observados durante a primeira fase da Copa América, que mostram a falta de engajamento no torneio por meio de televisão, internet e presença física. Na tv aberta, a competição transmitida pelo SBT ficou atrás em audiência da Globo na maioria das praças do país em todos os jogos do Brasil, seja competindo contra o Domingão do Faustão ou contra reprises de novela. Já na tv fechada, a transmissão através da ESPN e FOX Sports ficou atrás da Eurocopa mostrada pelo SporTV que, com jogos melhores e estádios com torcida por conta da vacinação adiantada, teve 47 das 50 maiores audiências da televisão paga durante o mês de junho.

Já na internet, o termômetro de redes sociais como o Twitter mostram CPI da Pandemia, Eurocopa e campeonato brasileiro como trending topics diários mais comentados pelos internautas do que a Copa América. Da mesma forma, o Google Trends do Brasil registrou a Euro como quatro vezes mais pesquisada que o campeonato sul-americano no mês de junho. Desde o início das duas competições, que são simultâneas, a Copa América é apenas o 11º tema esportivo mais buscado, atrás de Brasileirão, Eurocopa e série B, entre outros. O cenário virtual é repetido na presença física quase invisível de torcedores brasileiros nos entornos dos estádios onde o Brasil joga, já que o público nas arquibancadas está vetado. Ainda que as aglomerações sejam desencorajadas pela pandemia de covid-19, no dia 23 de junho, quando Flamengo e Fortaleza se enfrentaram pelo Brasileirão no Maracanã e o Brasil recebeu a Colômbia também no Rio de Janeiro, no estádio Nilton Santos, mais torcedores se juntaram para receber o ônibus rubro-negro do que se reuniram para prestigiar a seleção de Tite e Neymar.

O Governo federal tampouco embarcou na divulgação da Copa América durante sua realização. Depois de uma intensa campanha nas redes sociais e em palanques para defender a vinda do torneio de última hora —numa discussão que envolveu até o STF—, membros do alto escalão do Governo Bolsonaro se pronunciaram publicamente sobre a competição pela última vez no dia que o Brasil estreou, em 13 de junho. O presidente Jair Bolsonaro, seu filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro, e o ministro da Casa Civil Luiz Eduardo Ramos publicaram mensagens no Twitter elogiando a transmissão do SBT e com fotos da televisão durante a partida contra a Venezuela. Desde então, não tocaram mais no assunto. O presidente também não compareceu aos jogos da seleção brasileira, que aconteceram em Brasília, Rio de Janeiro e Goiânia até o momento.

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Na avaliação de Florenzano, no entanto, o uso político da Copa América pelo Governo Bolsonaro “não foi um fiasco” pela aproximação que o Planalto teve com SBT, CBF e Conmebol através do torneio. “Eu acho que o movimento se encaixa numa estratégia ampla do Governo de diminuir a audiência da Globo”, pontua o especialista, jogando luz sobre a disputa dos direitos de transmissão da competição vencida pelo SBT contra a Globo, com apoio de Bolsonaro. “Não houve compensação especificamente na Copa América”, lembra ele, uma vez que a audiência da emissora de Silvio Santos não superou os números globais nacionalmente, “mas se escalonar essa ação dentro de um processo que vem desde a posse de Bolsonaro, incentivando clubes de futebol a romperem com a Globo e apoiando transmissões de jogos em outras emissoras, você vê um ataque à audiência que a Globo sempre monopolizou”.

Além disso, com a autorização para sediar a competição a duas semanas do seu início, depois do recuo das sedes originais em Argentina e Colômbia, o Governo brasileiro salvou a Conmebol de um prejuízo na ordem dos 122,2 milhões de dólares, valor do investimento feito pela entidade para a competição, e permitiu à CBF (e a todas as outras federações envolvidas) receber 4 milhões de dólares, o prêmio básico de participação de cada seleção —se o Brasil for campeão, a CBF embolsa mais 10 milhões de dólares. Como não foram necessárias obras de infraestrutura nas cidades-sedes, não foi divulgado nenhum gasto público para sediar a Copa América, a exemplo do que aconteceu na edição de 2019. A Conmebol afirma que todo a receita com o torneio é reinvestida na organização do próprio. Em 2019, foram 109 milhões de dólares investidos na Copa América no Brasil, que rendeu 118,2 milhões de dólares em receita (um lucro de 9,2 milhões de dólares para a Conmebol). Por conta da pandemia, a entidade sul-americana espera ter prejuízos em 2021, mas arrecadará o suficiente para agradecer ao Governo brasileiro por viabilizar a competição.

Ao concluir, Florenzano classifica a tentativa de Bolsonaro de desviar as atenções com a cortina de fumaça como “malsucedida”, mas lembra que a Copa América deve atrair mais atenção em sua fase decisiva, que começa com as quartas de final nesta sexta-feira (2 de julho). “E tudo que a equipe de Bolsonaro puder explorar, ela vai. Principalmente pelas redes sociais, onde eles têm domínio”, opina o antropólogo. Ele não acredita, no entanto, que o presidente vá se exibir em público mesmo em caso de título do Brasil, como fez em 2019, quando entrou no gramado para posar com a taça de campeão ao lado dos jogadores. “Não tem público para ele se exibir, e mesmo que tivesse eu acho que a mudança de cenário [com os crescentes protestos contra o Governo] oferece um risco a ele. Não vejo o Bolsonaro extraindo muito mais da Copa América além das tentativas de enfraquecer a Globo”, finaliza.

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