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Proibido há 80 anos por “prejudicar maternidade”, futebol feminino estreia Brasileirão histórico

Depois de ser relegado à clandestinidade por 38 anos, o futebol feminino começa neste sábado um Campeonato Brasileiro transmitido pelo YouTube e pelos canais esportivos mais vistos do país

Jogadoras do Corinthians comemoram título brasileiro em 2020. Ao fundo, faixa de apoio ao futebol feminino
Jogadoras do Corinthians comemoram título brasileiro em 2020. Ao fundo, faixa de apoio ao futebol femininorodrigo coca (Corinthians)
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Na linha do tempo do futebol feminino brasileiro, ele passou tanto tempo proibido quanto regulamentado: 38 anos. De 1941 a 1979, a lei nacional não permitia a prática do esporte por mulheres devido às “condições da sua natureza”. Já o regulamento da modalidade, que permanece válido até 2021, só foi feito em 1983. Neste último período, chama a atenção a evolução na qualidade, popularização e investimento, com um marco importante na semana em que a proibição faz aniversário. Oitenta anos depois de ter sido colocado na clandestinidade, o futebol feminino estreia neste sábado um Campeonato Brasileiro transmitido pelo YouTube e pelos canais esportivos mais vistos do país, cheio de times conhecidos e prometendo avanços cada vez maiores no combate ao preconceito.

A 9ª edição do Brasileirão feminino chega com nove times considerados grandes na disputa masculina entre os 16 participantes, um número recorde para o torneio: Botafogo, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Santos e São Paulo; fora aqueles com mais tradição no feminino, como a bicampeã da Libertadores, Ferroviária, e o atual vice-campeão brasileiro, Avaí/Kindermann. A quantidade dos times considerados relevantes para o brasileiro na elite do futebol feminino, que triplicou nos últimos três anos, é explicada pela exigência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que, a partir de 2019, passou a obrigar os clubes que disputassem suas competições a formarem um time profissional feminino.

“Vemos agora a importância dessa regulamentação, que enfim inseriu as mulheres dentro do futebol. O Brasileirão de 2021 demonstra algo sólido, com o futebol feminino sendo um pilar estratégico a curto, médio e longo prazo”, analisa Aline Pellegrino, ex-jogadora e coordenadora de competições femininas da CBF, que organiza o torneio. “Ter o futebol feminino se consolidando dentro de um cenário tão complexo mostra que estamos enraizando ele no Brasil. Não podemos perder o foco, mas estamos no caminho certo”, acredita.

Pellegrino foi capitã da seleção brasileira que conseguiu o melhor resultado em uma Copa do Mundo, o vice de 2007. Depois, foi por quatro anos diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol (FPF), posição que deixou em setembro do ano passado para assumir o cargo na CBF. A dirigente chegou no meio do que classifica como “cenário complexo”, onde o futebol precisou se readaptar com protocolos sanitários para continuar no meio da pandemia de covid-19. Em 2020, a Confederação chegou a enviar um auxílio financeiro destinado ao pagamento dos salários das jogadoras para times da série A1 e A2 do Brasileirão, de 120.000 reais e 50.000 reais por clube, respectivamente, e forneceu testes RT-PCR realizados nas atletas três dias antes de cada partida. Além disso, adotou medidas de distanciamento social, higienização e veto ao público nos estádios.

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Com o agravamento da pandemia durante as últimas semanas, Pellegrino promete que a competição em 2021 terá um protocolo “ainda mais rígido”, com a CBF bancando toda a operação das partidas, mas sem repetir o auxílio financeiro do ano passado. “Estamos sólidos estruturalmente para cumprir esses protocolos. Ano passado buscávamos a manutenção, por causa das dificuldades, do ano anterior, mas já conseguimos evoluir com o VAR, com jogos nos principais estádios do país. A ideia em 2021 é manter o que fizemos em 2020″, explica a coordenadora. “Mas o principal impacto será quando tivermos a liberação do público. Aí sim, veremos a concretização de uma mudança de percepção, que tenta superar o machismo da sociedade, com o futebol feminino cumprindo seu papel nesse processo”.

Na mesma semana da rodada inaugural do Brasileirão feminino 2021, completaram-se 80 anos do decreto-lei que proibiu o futebol jogado por mulheres no país. Apesar da distância, Pellegrino enxerga consequências do veto, feito no Governo Getúlio Vargas, que perduram até hoje no desenvolvimento do esporte. “Sem a proibição, o Brasil já teria uma Copa do Mundo ou um ouro olímpico no futebol feminino”, opina ela. “Estaríamos num lugar melhor, com mais Martas e mais Formigas”.

Recortes de jornais da década de 40 na exposição "Contra-ataque!", do Museu do Futebol, em 2019.
Recortes de jornais da década de 40 na exposição "Contra-ataque!", do Museu do Futebol, em 2019.Museu do Futebol

“Esporte violento que prejudica a maternidade”

Com a frase “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, o artigo 54 do decreto-lei 3.199 foi publicado em 14 de abril de 1941 e formulado pelo Conselho Nacional de Desportos, um precursor do Ministério do Esporte que, criado no mesmo decreto, foi até 1993 a última instância de regulamentação do esporte nacional. “Se existiu a proibição, é porque tinham mulheres jogando. O futebol não era ofertado para elas, mas elas foram afetadas por ele”, explica Aira Bonfim, historiadora e pesquisadora. Aira trabalhou por sete anos no Museu do Futebol, em São Paulo, e foi uma das curadoras da exposição Contra-ataque! As mulheres do futebol, de 2019. Ela conta que, principalmente na cena amadora e suburbana do Rio de Janeiro, foram conhecidas ao menos 15 equipes femininas de futebol na primeira metade do século XX.

O aumento da popularidade entre as décadas de 30 e 40, como conta Aira, acabou encontrando a resistência na sociedade da época que motivou a proibição. “Depois que mulheres jogam no dia de inauguração do estádio do Pacaembu, em São Paulo, e times cariocas começam a receber convites para representar o Brasil no exterior, isso torna o debate público muito maior”, relata ela. Soma-se a isso a criação de um órgão governamental que buscava centralizar as regras do desporto nacional e uma carta escrita por um cidadão comum, José Fuzeira, que, sem qualquer embasamento científico, endereçou a Getúlio Vargas suas críticas ao futebol feminino. Para ele, o “movimento entusiasta que empolgava centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol” não levava em conta que a mulher “não poderia praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a ser mãe”.

“Fuzeira era um escritor de livros sobre moralidade das mulheres. E, para a nossa surpresa, descobrimos que essa carta foi de fato levada a sério pelo Governo na formulação do decreto”, diz a historiadora. “Essas mulheres que jogavam, pretas, pobres e suburbanas, estavam de fato quebrando vários paradigmas. Mas, a partir de então, o discurso público legitimado pelo Governo era de devolver a mulher ao ambiente doméstico, não de alçar voos tão grandes no ambiente público”.

O esporte das mulheres —e não só o futebol, mas também esportes considerados mais duros, como qualquer tipo de luta— foi jogado na clandestinidade, mas não parou. De 1941 a 1979 aconteceram incontáveis jogos amadores femininos em diversas regiões do país. “Durante a proibição, só esbarrava na legislação quem almejasse o crescimento, tentasse alugar um estádio decente para jogar ou se atrelar a um clube existente”, explica Bonfim. A lei só se tornou de amplo conhecimento público em 2015.

Apesar da revogação em 1979, o futebol feminino só viria a ser devidamente regulamentado em 1983. No mesmo ano, o Radar, equipe carioca que foi a primeira potência no esporte brasileiro, venceu a Taça Brasil, o primeiro torneio nacional jogado entre as mulheres após a liberação do esporte —o Radar repetiria o feito cinco vezes, até 1988. Naquele mesmo ano entrou em campo também a primeira seleção brasileira feminina, que jogou a primeira Copa do Mundo três anos depois, em 1991, e chegou ao primeiro pódio no Mundial de 1999. Já o Campeonato Brasileiro, nos moldes como é disputado hoje, só surgiria em 2013, cinco anos depois da última medalha olímpica conquistada pelas brasileiras no futebol.

Aira Bonfim considera que esse último salto na evolução da modalidade tem como objetivo “levar o futebol feminino para um lugar diferente do masculino”. “Não é só sobre pagar o mesmo para o Neymar e para a Marta, sobre ser profissional. É também sobre fomentar o acesso para a menina que quer jogar, ter mais transparência, jogadoras saindo do armário, possibilidades de diálogo, além da qualificação dos campeonatos e calendários”, opina. “Não dá para pensar que o futebol masculino é bem-sucedido porque você sai rico e famoso. A jogadora tem que se comprometer com a história do futebol feminino”, completa. Mas, ao contrário de Pellegrino, ela não tem a certeza de que a história seria diferente sem o decreto-lei. “Talvez nós tivéssemos uma consciência maior em pensar nesse esporte de forma libertadora, com uma clareza de que o espaço conquistado pelas jogadoras hoje existe por conta de muita luta”, comenta, “mas a história do futebol de mulher é de resistência e, mesmo sem uma legislação que proibisse, ainda seria um processo de muita transgressão”.

O Brasileirão feminino 2021 terá a transmissão da Band na televisão aberta e do SporTV, na fechada. O canal Desimpedidos, no YouTube, também transmitirá os jogos —a começar por São Paulo x Grêmio, neste sábado (17), às 20h. Também no sábado às 20h, jogam Internacional x Santos e Corinthians x Napoli. Já no domingo (18), fecham a primeira rodada Flamengo x Minas, Botafogo x Bahia (ambos às 15h), Cruzeiro x Real Brasília (17h), Palmeiras x Ferroviária e São José x Kindermann (os dois às 20h).

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