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Hospital improvisado e ambulâncias atrasadas, os riscos do futebol que continua em meio ao colapso sanitário

Em São Paulo e Pernambuco, clubes vão atrás de hospitais que não recebem pacientes com covid-19 para atender jogadores. No PR, ambulância municipal atrasou jogo por conta de uma emergência

Geovani, da Portuguesa, rompeu os ligamentos na partida contra o Água Santa, em 10 de março.
Geovani, da Portuguesa, rompeu os ligamentos na partida contra o Água Santa, em 10 de março.Dorival Rosa (Portuguesa)
Diogo Magri
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Geovani jogou só metade da partida no ataque da Portuguesa no dia 10 de março, contra o Água Santa, em São Paulo, pela série A2 do Paulistão —cinco dias antes da paralisação do torneio pelo agravamento da pandemia da covid-19. Com dores no joelho esquerdo após uma pancada, foi substituído no intervalo. Depois, o diagnóstico: ruptura do ligamento cruzado anterior e necessidade de cirurgia. Além de impossibilitá-lo de atuar pelo resto da temporada, o caso de um atleta que precisa de um leito médico a curto prazo por uma lesão esportiva joga luz sobre riscos do futebol que teima em continuar num momento de colapso sanitário em todo o país.

Do dia da lesão até a cirurgia de Geovani, realizada na última terça-feira, se passaram 20 dias. Segundo Marcial Pereira, médico da Portuguesa, o tempo foi necessário para “fazer todos os exames, diminuir a reação inflamatória local, desinchar o edema e facilitar o ato cirúrgico”, e nada tem a ver com a dificuldade em encontrar leitos de enfermaria ou UTI na capital paulista. Neste sábado, a Grande São Paulo teve 91% de ocupação em seus leitos de UTI. O médico confessa, no entanto, que o clube precisou alterar sua logística e fazer a cirurgia no Hospital Ruben Berta, zona sul de São Paulo, cuja especialidade é otorrinolaringologia e cirurgia plástica, que não seria a primeira opção em uma situação de normalidade no sistema de saúde. Em contato com a reportagem, a diretoria do hospital admitiu que não conta com corpo clínico para esse tipo de cirurgia e que não receberia pedidos para agendar procedimentos desse tipo. Ao ser perguntado especificamente sobre o caso de Geovani, o hospital garantiu que fará “todas as cirurgias já agendadas, mas não agendará novas”.

“De fato, encontramos uma dificuldade maior para cirurgias eletivas, ainda que não tenha impactado na espera para o Geovani”, disse Pereira. O procedimento do jogador correu normalmente no hospital improvisado, e a expectativa de recuperação é entre seis e nove meses. Para o doutor, no entanto, a continuidade do futebol precisa estar ligada à disponibilidade de um centro de saúde para o atendimento de lesões sérias de atletas, alheio ao novo coronavírus. “Isso deveria ser pensado regionalmente, um lugar para esse tipo de ocorrência que não misturasse [com casos de covid-19]. Até porque o jogador pode ser infectado quando levado a um hospital e colocar mais gente em risco”, opina ele. “Sei que isso é uma guerra política, mas traumas como o de Geovani estão aí para nos alertar sobre esse risco. Não há protocolo sanitário no esporte que previna lesões sérias”, conclui o médico.

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Por “guerra política”, o médico se refere à disputa da Federação Paulista de Futebol (FPF) contra o Governo de São Paulo pela continuidade do Paulistão. Desde que o governador João Doria decretou a paralisação do futebol no Estado por conta da fase emergencial, a partir de 15 de março, seguindo a recomendação do Ministério Público de SP, a FPF tenta convencer Governo e MP de que seus protocolos são seguros o suficiente para que os torneios não sejam interrompidos. A Federação chegou a levar jogos do campeonato paulista para o interior do Rio de Janeiro. Com a extensão da etapa mais dura da quarentena paulista por mais 15 dias em abril, o objetivo da FPF se tornou melhorar seu protocolo para argumentar com o Governo paulista e não atrasar mais partidas do seu campeonato.

As atualizações das medidas de proteção sanitária ainda não foram divulgadas, mas a FPF já disse em nota que a renovação da fase emergencial “gera um enorme retrocesso no controle de saúde dos atletas e comissões técnicas, além de um prejuízo técnico inestimável”, reiterando que “o futebol não comporta mais qualquer adiamento do retorno da competição”. Nesta semana, foi divulgado um estudo da USP revelando que a incidência de casos do novo coronavírus entre atletas do futebol paulista em 2020 foi de 11,7%, uma quantidade equivalente ao de profissionais de saúde na linha de frente da pandemia. Foram analisados testes em mais de 4.000 jogadores de oito torneios da FPF e a taxa foi até 24 vezes superior a de outros campeonatos de futebol no exterior, como na Alemanha e na Dinamarca, que mantiveram seus jogos durante a segunda onda na Europa.

A pesquisa aponta que o protocolo da FPF, ao menos por enquanto, não é tão seguro quanto a Federação defende. “Embora nossos dados sinalizem que os atletas tendem a desenvolver apenas sintomas leves ou mesmo serem assintomáticos, eles podem atuar como vetor de transmissão para a comunidade”, comentou sobre a pesquisa Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da USP. “Enquanto a transmissão da covid-19 não for mitigada, qualquer setor que reabra representa um risco elevado de contágio”.

Casos fora de São Paulo

Não é só em São Paulo que os jogadores precisam de atendimento hospitalar em meio a um colapso sanitário. Até esta semana, 13 Estados não paralisaram seus campeonatos regionais, além da Copa do Brasil, o que possibilita lesões sérias em atletas de todas as regiões. Em Pernambuco, no último domingo (28), o goleiro Carlos Eduardo, do Sport Recife, levou uma cabeçada no rosto em uma dividida pelo alto com o zagueiro do próprio time, no jogo contra o Central de Caruaru. Caiu no chão se contorcendo de dor e foi imediatamente levado de ambulância, com a coluna cervical imobilizada, para um hospital na capital pernambucana que, segundo o clube, não atende casos de covid-19. O diagnóstico foi concussão leve e fratura do osso zigomático, acima da bochecha.

Dois dias depois, Eduardo soube que seu caso precisa de intervenção cirúrgica. De acordo com dados do Governo de Pernambuco, os leitos da rede privada estão com 93% de ocupação média em UTI e 71% em enfermaria, enquanto os da rede estadual tem 97% de ocupação nas UTIs e 87% nos leitos de enfermaria. Em Recife, 82,6% dos leitos municipais estão ocupados. O Sport divulgou que o procedimento será feito em um hospital que só trata de cirurgias ortopédicas na próxima semana, mas não divulgou o nome do local.

Se o jogo do Sport continuou após o transporte de Carlos Eduardo por ter uma ambulância extra no estádio, o mesmo não aconteceu na partida entre Cianorte x Paraná, em Cianorte, no interior do Paraná, pela Copa do Brasil, em 10 de março. Na oportunidade, o início da partida atrasou porque a ambulância municipal, designada para estar à disposição no jogo, estava levando um paciente em emergência para Maringá, a 82 quilômetros do local do jogo. A Prefeitura não informou se o transporte estava sendo feito para atender pessoas infectadas pelo novo coronavírus mas, na data do jogo, a cidade de Cianorte estava com 100% de suas UTIs ocupadas.

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