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Tribuna
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Dunga, um simpatizante dos governos militares no clube da Democracia Corinthiana

Há 35 anos, o ex-capitão da seleção defendia o Corinthians ao lado dos democratas Casagrande e Wladimir. Adepto do bolsonarismo, hoje ele tem seu nome cotado para treinar o clube

Dunga jogou Corinthians tecnico
Dunga tinha 21 anos quando foi contratado pelo Corinthians.Arquivo Pessoal

Antes de se tornar “capitão do tetra”, o gaúcho Carlos Caetano Bledorn Verri, mais conhecido pelo apelido de Dunga, iniciou a carreira como jogador no Internacional e, pelo destaque na seleção de juniores, foi contratado em 1984 para jogar no time mais popular de São Paulo. Era a reta final da Democracia Corinthiana, movimento criado dentro do clube na esteira das Diretas Já, a manifestação popular que reivindicava o direto de votar para escolher o presidente do Brasil, em plena ditadura militar. A passagem do volante pelo Parque São Jorge durou pouco, porém o suficiente para que seus caminhos voltassem a se entrelaçar recentemente.

Hoje treinador, Dunga entrou na lista de cotados para assumir o comando do Corinthians ―que neste momento está com o interino Dyego Coelho― pela ligação, ainda que breve, com o clube. Uma ironia para quem, fora do futebol desde que deixou o comando da seleção, se converteu em um antipetista fervoroso e, principalmente, como costuma dizer a amigos, um soldado sempre a postos para combater o comunismo. No fim de setembro, compartilhou em suas redes sociais uma frase de John Lennon, em reprimenda ao cristianismo, falsamente atribuída a Manuela D'Ávila, candidata a prefeita de Porto Alegre pelo PCdoB. Em mais de uma ocasião, já publicou frases imputadas a João Figueiredo, último presidente da ditadura, como “o povo clamará nas ruas pela democracia implantada por nós em 1964 [em alusão ao golpe militar]”. Ao responder seguidores, Dunga se refere com saudosismo ao período ditatorial, argumentando que, sob o comando dos militares, havia segurança nas ruas e “os professores eram respeitados”, além de afirmar que “a maioria dos que foram presos naquela época está metida em corrupção”.

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Há 35 anos, ele fez sua última partida vestindo a camisa alvinegra, uma derrota para o Comercial-SP. Não conquistou nenhum título com a chamada “seleção corintiana”, que reunia estrelas como De León, Biro-Biro, Zenon e Serginho Chulapa, mas decepcionou em campo ao cair na segunda fase do Campeonato Brasileiro e não se classificar para as semifinais do Paulista de 1985. Após a saída do ídolo Sócrates, integravam ainda a equipe Casagrande e Wladimir, líderes remanescentes do movimento de jogadores que participava da tomada de decisões no clube e lutava pela democracia.

Nessa época, o volante recém-contratado já tinha proximidade com figuras ligadas ao regime militar. Uma de suas principais influências na juventude era seu padrinho Emídio Perondi. Amigo da família de Dunga em Ijuí, interior do Rio Grande do Sul, ele foi prefeito da cidade pela Arena, partido aliado aos militares no poder. Como deputado federal, votou contra a emenda Dante de Oliveira, proposta que previa a retomada das eleições diretas no Brasil. A derrubada da emenda pelo Congresso influenciou Sócrates a deixar o Corinthians e o país, uma sentença de morte para a Democracia Corinthiana.

Perondi levava a sério o fato de apadrinhar Dunga. Foi ele quem o levou para fazer teste no Internacional, oferecendo, inclusive, moradia em Porto Alegre. Nome influente no futebol —chegou a ser presidente da Federação Gaúcha e um dos vices da CBF—, interveio diretamente no comando do Inter quando soube que o time gaúcho pretendia dispensá-lo. Dunga permaneceu. Leal aos princípios de seu padrinho, ele sempre bradou pelos ideais patrióticos de ordem e disciplina, tais quais os pregados pelo regime militar, ainda que nunca tenha servido ao Exército. No início de 1984, jogadores e comissão técnica haviam ensaiado uma espécie de democracia colorada, inspirada no movimento do Corinthians, mas o jovem volante foi um dos atletas que torceu o nariz para a iniciativa e apoiou a medida do presidente Roberto Borba de vetar manifestações políticas.

Ideais que Dunga jamais abandonou, seja como capitão do Brasil no tetracampeonato mundial, em 1994, ou como técnico, função que assumiu pela primeira vez em 2006, na própria seleção, por sugestão de Emídio Perondi a seu amigo Ricardo Teixeira, então presidente da CBF. Com regras rígidas para jogadores e imprensa, ele estabeleceu um código de conduta quase militar na preparação para a Copa da África do Sul, regido por horários de refeições conjuntas e veto a bebidas alcoólicas na concentração. “Não sou ditador”, defendeu-se o técnico antes da Copa ao justificar o estilo centralizador. “Apenas valorizo a disciplina, a ordem e a hierarquia.”

Emulando Sebastião Lazaroni, seu comandante na Copa de 1990, que descreve a ditadura como “governo militar”, Dunga relativizou publicamente os anos de chumbo no país em outra entrevista coletiva. “Como vou falar da época da ditadura se eu não vivi? Quem esteve lá e sofreu, esse, sim, pode dar opinião. Então, eu não posso dizer que a ditadura era boa, era ruim, se quero que volte... Só quem viveu pode nos dar a resposta.” Depois da convocação para o Mundial, que ignorou craques como Neymar, Adriano Imperador e Ronaldinho Gaúcho em nome dos atletas de sua confiança, o treinador recebeu críticas direcionadas ao estilo linha-dura que impunha na seleção.

Parlamentares como Chico Alencar (PSOL-RJ) cornetaram a convocação pela falta de ousadia ao não apostar em jovens promessas do futebol brasileiro. “O Dunga é um fiel representante da onda conservadora que varre o país”, criticou o ex-deputado de esquerda. Sócrates, que nos tempos de jogador se notabilizou pelo posicionamento contundente contra a ditadura e o autoritarismo, foi além, mas acabou optando pelo generalismo. Às vésperas da Copa, manifestou descontentamento com o time pouco encantador montado pelo técnico. “Dunga é gaúcho, do extremo sul do Brasil. E eles, em geral, são os brasileiros mais reacionários.” O Brasil acabou eliminado pela Holanda nas quartas de final da Copa e Dunga, demitido.

Dunga redes sociais ditadura
Nas redes sociais, Dunga endossa o general João Figueiredo, mas é crítico de movimentos feministas, políticos de esquerda e medidas de isolamento social.Reprodução

Não demoraria muito para voltar à seleção. Após o vexame do 7 a 1, em 2014, foi reconduzido ao cargo por José Maria Marin, presidente-tampão da CBF e ex-governador biônico de São Paulo, correligionário da ditadura militar. “Escolhemos o Dunga porque ele faz com que a hierarquia seja respeitada. E também a respeita”, elogiou o cartola, que, menos de um ano depois, seria preso por corrupção no Fifagate. Em seu retorno, o técnico, que já havia se recusado a condenar o apartheid na África do Sul ou a escravidão no Brasil por “não ter vivido aquela época”, cometeu gafe racista ao tentar comparar as críticas que sofria ao açoite de negros escravizados. “Eu até acho que sou afrodescendente, de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham e batem em mim.”

Diante da repercussão negativa, ele se retratou por meio de nota no site da CBF. “Quero me desculpar com todos que possam se sentir ofendidos com minha declaração sobre os afrodescendentes. A maneira como me expressei não reflete os meus sentimentos e opiniões.” Em que pese a personalidade bélica, contrária ao Dia da Consciência Negra, por defender que “a consciência deve ser humana”, Dunga diz se inspirar no lendário sul-africano Nelson Mandela, que ele conheceu em 2009 e chegou a ser citado em sua reapresentação. “Espero que eu possa ter 1% da paciência que ele teve para mudar a forma de pensar das pessoas.”

A segunda passagem pela seleção terminou em meados de 2016, frustrada pela eliminação na primeira fase da Copa América. Contudo, ao menos no campo político, Dunga comemoraria uma vitória meses depois, com a confirmação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) no Senado. Um dos principais lobistas pela queda da presidente foi o ex-deputado Darcísio Perondi (MDB-RS), irmão mais novo de seu padrinho Emídio, que, assim como Dilma, teria sido detido pelo DOPS quando estudava medicina em Porto Alegre. Ainda como treinador da seleção, manteve-se sisudo ao cumprimentar o então presidente Lula em uma visita da delegação ao Palácio da Alvorada, em 2010. Nesse caso, um rancor de caráter mais pessoal que ideológico, por ter se incomodado, dois anos antes, com críticas de Lula à seleção e elogios tecidos ao craque argentino Lionel Messi.

Dunga jogador Corinthians ditadura
Dunga em ação pelo Corinthians, no Pacaembu.SCCP

Apoiador do presidente Jair Bolsonaro, que este ano se referiu ao aniversário do golpe de 64 como “dia da liberdade”, Dunga tem criticado governadores e prefeitos que adotaram medidas de isolamento social durante a pandemia de coronavírus. O tom é semelhante ao de Darcísio Perondi, que, depois de recriminar Bolsonaro no plenário da Câmara por fazer apologia à tortura, hoje virou um fiel escudeiro do presidente, ao qual serviu como vice-líder de Governo antes de perder o mandato de deputado suplente com a volta do ex-ministro Osmar Terra ao Congresso —seu irmão Emídio, padrinho de Dunga, morreu em setembro, no dia em que completou 82 anos.

Profissionais do futebol que já trabalharam com Dunga dizem que, apesar de posturas semelhantes à de Bolsonaro, como a inclinação ao confronto com a imprensa, a rigidez militar e os clamores por patriotismo, o ex-jogador tende a ser tolerante a pontos de vista divergentes, até mesmo na própria família —sua filha mais velha, por exemplo, é crítica da condução da crise sanitária pelo presidente. Também costuma demonstrar lealdade e solidariedade ao próximo. Em Porto Alegre, ele mantém projetos sociais dedicados a famílias pobres e moradores de rua expostos à fome e ao frio, um deles batizado de Seleção do Bem. Desde o começo da pandemia, conseguiu arrecadar cerca de 100 toneladas de alimentos. Para Dunga, o trabalho de caridade ainda serve como pretexto para atacar os governos democráticos que precederam o bolsonarismo e sucederam a ditadura. “Sou mais socialista do que eles, pois tiraram do povo escola, educação e saúde.”

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