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Retomada às pressas do futebol no Rio ignora jogadores infectados e projeta abertura a torcedores

Pela segunda vez durante a pandemia, Carioca é reiniciado, sob protestos de Botafogo e Fluminense. Prefeito despreza alertas e planeja volta de público aos estádios em 10 dias

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Jogadores do Botafogo protestam contra a volta do futebol no Rio de Janeiro.VITOR SILVA (AFP)

Primeiro torneio profissional a retomar jogos em meio à pandemia de covid-19 na América do Sul, o Campeonato Carioca mantém o curso de sua própria normalidade ainda que as condições ao redor teimem em alertar que não há nada normal na volta precoce do futebol. Neste domingo, a competição promoveu mais quatro partidas, com portões fechados, sob protestos de dois de seus principais clubes, questionamentos ao protocolo de saúde batizado de “Jogo Seguro” e três jogadores cortados após testarem positivo para o novo coronavírus.

O recomeço acelerado do Carioca não encontra precedentes no continente nem nas ligas europeias de países que também autorizaram a volta do futebol, mas em etapas bastante distintas da pandemia. Na Itália, um dos primeiros epicentros globais da doença, as competições só voltaram 76 dias depois do pico de mortes por coronavírus registradas no país. Na Espanha e no Reino Unido, esse intervalo foi de 69 dias, enquanto a França resolveu dar por encerrado o campeonato local. No Rio, por sua vez, Flamengo e Bangu entraram em campo 15 dias depois do pico de mortes (324) confirmadas no Estado. No dia da partida, em 18 de junho, 279 óbitos foram registrados pela secretaria estadual de saúde, sendo dois deles no hospital de campanha do Maracanã, palco do duelo vencido pelo clube rubro-negro.

Neste domingo, Botafogo e Fluminense, que desde o início das discussões sobre a continuidade do Carioca se posicionaram contrários ao reinício apressado, entraram em campo com apenas uma semana completa de treinamentos e mensagens críticas à Federação de Futebol do Rio de Janeiro (FERJ). Antes de golear a Cabofriense, atletas da equipe alvinegra exibiram uma faixa ironizando as normas de segurança e prevenção do coronavírus estipuladas pelos dirigentes do Estado: “Protocolo bom é o que respeita vidas”.

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Já o Fluminense reverenciou médicos e enfermeiros ao subir ao gramado do estádio Nilton Santos. “Obrigado aos profissionais de saúde”, dizia a faixa estendida pelos jogadores. “Hoje, pela primeira vez, saio de casa triste para ver meu tricolor”, escreveu o presidente do clube, Mario Bittencourt, em suas redes sociais. “Jogadores de máscara, estádio sem público e um campeonato que volta às pressas, sem sabermos que interesses querem atender. Milhares de pessoas ainda morrem no Brasil, enquanto somos obrigados a jogar futebol sem nenhuma segurança. Mais uma triste página da história do futebol do Rio de Janeiro, já tão combalido e defasado. Que tudo dê certo e que todos possamos sair dessa insanidade totalmente ilesos.” O dirigente tricolor ainda aproveitou o desabafo para alfinetar o protocolo da FERJ. “‘Jogo seguro’ é ficar em casa. O resto não tem nenhum sentido no momento.”

Adversário que derrotou o Fluminense por 3 a 0 neste domingo, o Volta Redonda precisou vetar três jogadores que testaram positivo para covid-19 horas antes da partida. Os outros integrantes da delegação que deram negativo no teste foram considerados aptos para participar do jogo — embora tivessem treinado com os atletas infectados no dia anterior. Segundo o departamento médico do clube, os jogadores cortados estão assintomáticos e foram orientados a cumprir isolamento domiciliar.

Nos testes executados quando boa parte dos clubes retomou os treinos, no início de junho, 20% dos jogadores receberam resultado positivo para o coronavírus. Ainda assim, a FERJ garantia ter um protocolo de segurança para a volta da competição, que precisou ser ajustado após uma denúncia do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj). O órgão solicitava providências ao Ministério Público contra o Flamengo por ter deixado de cumprir a recomendação de concentrar seu elenco 48 horas antes de enfrentar o Bangu, jogo que marcou o retorno do campeonato, em 18 de junho. Para se blindar, a federação dispensou a necessidade de concentração prévia, justificando a mudança pela inclusão de testes rápidos, com resultados imediatos, na véspera de cada partida.

Após Flamengo x Bangu, Portuguesa e Boavista empataram sem gols, e o campeonato foi novamente paralisado, por intervenção do prefeito Marcelo Crivella, que publicou decreto suspendendo o torneio por mais cinco dias para que houvesse inspeções dos órgãos de saúde nos estádios e, por tabela, evitar um imbróglio judicial com Botafogo e Fluminense. Ambos os clubes entraram com ações na Justiça esportiva para não jogar na data que havia sido estabelecida pela FERJ, na última segunda-feira, 22. As diretorias alvinegra e tricolor acusam a federação de favorecimento ao Flamengo, que capitaneou o movimento de retomada do futebol no Estado e voltou a treinar ainda em maio, antes mesmo do aval das autoridades locais. Para fazer valer sua vontade, o clube rubro-negro contou com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, entusiasta do retorno dos campeonatos em solo nacional, e dos outros 13 clubes participantes da primeira divisão do Carioca.

Indiferente aos protestos de Botafogo e Fluminense, a FERJ ratificou a continuidade do campeonato nesta semana, com jogos da última rodada da fase de grupos da Taça Rio marcados para quarta e quinta-feira. Em maio, o Ministério Público abriu inquérito e recomendou o adiamento da retomada, preocupado com eventuais aglomerações no entorno dos estádios em dias de jogos, que, em sua interpretação, pode gerar “risco à vida e à saúde dos torcedores”. No entanto, a prefeitura não só desprezou a orientação, como prevê que os estádios possam voltar a receber público com um terço da capacidade a partir de 10 de julho (o Maracanã, por exemplo, poderia reunir até 22.000 pessoas). Nas ligas mais tradicionais da Europa, em países onde a curva de mortos e infectados do coronavírus já se achatou, ao contrário do Brasil, ainda não há previsão de reabertura para jogos com torcida.

“Não tem nexo cumprir nenhum protocolo de saúde a partir do momento em que 15.000 pessoas puderem frequentar um estádio”, criticou Carlos Augusto Montenegro, membro do conselho gestor do Botafogo, em entrevista ao SporTV. “Vai ser inusitado, pois não tem nenhum país do mundo fazendo isso. Sugiro a quem for [aos jogos] levar um terço e rezar muito para não acontecer nada.”

Na goleada de 6 a 2 sobre a Cabofriense, o time do Botafogo foi comandado pelo auxiliar Renê Weber, no lugar de Paulo Autuori. O técnico botafoguense recebeu uma suspensão preventiva da FERJ após afirmar que a entidade é a “federação dos espertos”, entre outras críticas por apressar a volta do futebol. O clube recorreu ao STJD e conseguiu uma liminar liberando o treinador para a partida, mas ele preferiu não atuar à beira do campo em sinal de protesto. Criticado por Autuori, o presidente da FERJ, Rubens Lopes, publicou um vídeo na sexta-feira explicando o porquê dos esforços para retomar o campeonato. “O que o Rio de Janeiro fez serve como exemplo para a cidade, para o país e para o mundo de que é possível desenvolver esta atividade [o futebol] de forma segura tanto para aqueles que a praticam quanto para a população.”

Nessa nova rodada de reabertura, os grandes clubes aderiram a manifestações antirracistas, com jogadores se ajoelhando no gramado no início das partidas. Enquanto isso, na contagem da pandemia, o Estado fluminense, com a maior taxa de letalidade da doença no país, acumula 10.000 mortes —quase 1.000 a mais que toda a Alemanha, onde o campeonato nacional foi encerrado sem torcida nos estádios— e 110.000 infectados pelo coronavírus.

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