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PANDEMIA DE CORONAVÍRUS
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Arriscar vidas para salvar o futebol, um sacrifício impensável no pico da pandemia

Neste momento, sob o risco de colapso dos hospitais e cemitérios em várias cidades brasileiras, falar em reinício do futebol soa como uma provocação de mau gosto

Bolsonaro volta futebol Inter
Presidente do Inter (à esq.) presenteia Bolsonaro com uma camisa colorada, em março de 2019.Divulgação

No último Dia do Trabalhador, o presidente do Internacional, Marcelo Medeiros, ameaçou demitir jogadores que se recusem a retornar às atividades em meio à pandemia de coronavírus. Após repercussão negativa, o cartola amenizou o tom, afirmando ter se tratado de um “mal-entendido”, e assegurou que o clube gaúcho seguirá “respeitando todas as orientações que preservem a saúde” dos funcionários. Nesta semana, porém, o Inter manteve a programação de retomar treinamentos quase dois meses depois da paralisação. Uma postura que minimiza a exposição a riscos de contaminação dos profissionais envolvidos nos jogos e entoa o lobby inconsequente do Governo Federal pela volta à rotina pré-quarentena, apesar dos casos da doença ainda estarem fora de controle no país.

De acordo com o Inter, jogadores e funcionários serão testados para covid-19 e o acesso ao clube contará com medidores de temperatura. O modelo é semelhante ao adotado pelo Flamengo, que investiu cerca de 100.000 reais para adquirir kits de testagem, que também contemplam as famílias dos atletas. Os dois clubes fazem parte da exceção dos grandes que ostentam condições financeiras para comprar equipamentos de proteção e garantir o cumprimento de protocolos mínimos de segurança. A maioria das equipes no Brasil, sobretudo as que disputam os campeonatos estaduais, interrompidos antes de seu desfecho, amarga uma realidade de dívidas, salários atrasados e estruturas precárias. Essas nuances precisam ser levadas em conta antes de adaptar modelos aplicados em outros países para a retomada do futebol.

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Por ora, a referência são os clubes alemães, que retornaram aos treinos há duas semanas. Ainda assim, é necessário muito cuidado ao importar práticas de atividades por grupos em território nacional. O Brasil tem índice de testes para coronavírus 30 vezes inferior ao da Alemanha, menos leitos de UTI e um ritmo acelerado de novos casos, com estatísticas subnotificadas. Enquanto a Alemanha conseguiu frear o número de infectados, a curva brasileira continua em ritmo ascendente, indicando que o pico da pandemia com mais de 7.900 mortes registradas ainda não foi alcançado no país.

Mesmo com melhores indicadores que o Brasil, a Alemanha já verifica o início de uma segunda onda do vírus após relaxar as medidas de isolamento. Entre os clubes de primeira e segunda divisões que voltaram a treinar, já são dez casos confirmados de covid-19. Por outro lado, outros países europeus optam por mais prudência e adiam prognósticos de retorno aos gramados, sendo que, na França, por determinação governamental, a liga decidiu declarar o PSG como campeão e encerrar seu torneio de pontos corridos.

Neste momento, sob o risco de colapso dos hospitais e cemitérios em várias cidades, em que dispositivos de testagem se revelam falhos, falar em reinício do futebol soa como uma provocação de mau gosto. Na linha de frente do combate à pandemia no Brasil, profissionais da saúde ainda sofrem com a falta de testes de coronavírus, ao passo que o circuito milionário e privilegiado da bola não se constrange em disponibilizar uma invejável infraestrutura de testagem para se fechar em sua bolha, onde o show tem de continuar a qualquer custo.

É compreensível que clubes e federações iniciem discussões sobre cenários para a retomada dos campeonatos e avaliem protocolos de segurança adequados a cada perspectiva. Mas fazê-lo com o intuito de jogar a partir de maio, que pode ser o mês mais dramático da pandemia, é no mínimo insensibilidade dos dirigentes, como se o esporte operasse em uma realidade paralela. Isso não significa ignorar o impacto econômico da paralisação dos torneios, que, em casos de clubes menores, representa inclusive o risco de falência se ficarem à margem do amparo emergencial da CBF. De qualquer forma, arriscar vidas para salvar o futebol deveria ser algo simplesmente impensável diante do estado de calamidade pública.

Não adianta os dirigentes afirmarem que estão preocupados com a saúde dos atletas se, ao mesmo tempo, querem reconduzi-los ao campo num período tão delicado no enfrentamento à epidemia. Além de poucos clubes terem cacife para bancar todo aparato de proteção, a complexidade de uma partida de futebol, ainda que sem público, envolve centenas de profissionais, sendo que muitos deles, a parte mais vulnerável da cadeia produtiva na indústria do esporte, estarão expostos nos deslocamento ao trabalho, convertendo-se em potenciais disseminadores do vírus a seus familiares. A essa altura, o principal debate não deveria ser a retomada dos campeonatos no curto prazo, mas sim a criação de uma força-tarefa, liderada por FIFA e CBF, que garantam, com suas confortáveis reservas financeiras, a proteção de empregos dos trabalhadores que não têm o mesmo respaldo dos atletas no topo da pirâmide.

Em sua cruzada de sabotagem dos estudos científicos, o presidente Jair Bolsonaro agora investe no futebol para forçar uma volta à normalidade desaconselhada por autoridades médicas. A retomada dos jogos passaria a mensagem —falsa— de que a pandemia está controlada. Para tanto, o presidente coagiu o Ministério da Saúde a emitir um parecer favorável ao reinício dos treinamentos, sem, no entanto, se responsabilizar por parâmetros que certifiquem a proteção dos atletas. Uma jogada irracional, comparável apenas a ditaduras como a de Belarus, que segue com seus torneios durante a pandemia, mas na contramão das recomendações de entidades amparadas pela ciência.

Contando com a subserviência de dirigentes, Bolsonaro conseguiu transformar o futebol, uma atividade não essencial, em tema de urgência entre as prioridades do momento. Sinal de que a semente plantada pela cartolagem começa a dar frutos. Marcelo Medeiros, por exemplo, encontrou uma brecha na agenda do Planalto para ser recebido pelo presidente, a quem presenteou com uma camisa colorada, em março de 2019. Um ano depois, o mandatário do Inter testou positivo para coronavírus. Após dizer que sentiu o corpo “demolido” pelos efeitos da doença, o recuperado Medeiros prefere fazer coro ao discurso presidencial, ansioso para ver a bola rolando novamente, a adotar cautela antes de defender medida que expõe seus funcionários ao vírus que o atingiu. Uma amostra do pensamento tacanho de boa parte dos cartolas, aparentemente resignados em tratar vidas como números em planilhas.

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