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Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Tropa da bola torceu contra Manu Gavassi por odiar futebol e acabou caindo no rótulo machista

Boleiros e torcedores tentaram derrubar cantora por crítica ao futebol, mas ela saiu vencedora no paredão mais comentado da história do Big Brother

Manu Gavassi Prior BBB
Manu venceu Prior no paredão mais votado do BBB.

Em tempos de quarentena, o Big Brother Brasil se tornou a atração de maior apelo popular no entretenimento de TV, ocupando o vácuo deixado por novelas adiadas, programas de auditório interrompidos e competições esportivas paralisadas. Nesta terça-feira, o reality show da Globo bateu recorde de interações, com mais de 1,5 bilhão de votos, num país de 210 milhões de pessoas e um paredão polarizado que atiçou militâncias a ponto de lembrar a última eleição presidencial. De um lado, a cantora Manu Gavassi, amiga de celebridades e integrante da cota de (quase) famosos selecionados para o programa. Do outro, o arquiteto Felipe Prior, que, por gostar de futebol, ganhou a torcida de craques como Neymar e Gabigol. Quando se esperava que a boleiragem pudesse decidir o jogo a favor do paulistano, o tiro acabou saindo pela culatra, já que o apreço pelo esporte mais popular do país não é uma unanimidade nem requisito fundamental para determinar a escolha do público.

Assim que o paredão foi anunciado, a “tropa do Prior” resgatou uma antiga postagem de Manu Gavassi, de 10 anos atrás, em que ela desdenhava da paixão nacional: “Pensa numa pessoa que odeia futebol. Sou eu.” Jogadores recorreram à crítica para tentar desqualificá-la, em tom de brincadeira. Atacantes da seleção, Gabigol, Richarlison e Vinicius Junior prometeram sortear camisas caso Prior ficasse. Outros, liderados por Neymar, pregavam “fogo no parquinho”. Em sua visão, Prior apimentava o jogo com suas provocações ao expor as incoerências do grupo de mulheres feministas que, em determinadas circunstâncias, peca por não levar o discurso pela igualdade à prática fora da bolha. A maioria, porém, justificou que a torcida em peso no paredão sinalizava, na realidade, apoio indireto ao ator Babu Santana, único homem negro da casa e amigo de Prior. Antes de Neymar se posicionar, Bruna Marquezine, ex-namorada do craque, já fazia torcida a favor de Manu, sua amiga, e contra Prior, o que elevou o tempero da peleja virtual.

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Independentemente da motivação de cada um, a tropa pró-Prior errou o cálculo ao presumir que uma manifestação antipática ao esporte fosse suficiente para derrubar a cantora. Como analista de futebol, praticante e frequentador de estádios, reconheço os impactos cultural, social e político do jogo (muito mais que um jogo). Mas também reconheço que o pacote por vezes passional e violento que envolve a modalidade restringe seu potencial de alcance. Apesar de avanços nos últimos anos, o futebol ainda é um ambiente tóxico, extremamente machista e pouco receptivo à diversidade. Em geral, suas dinâmicas são pautadas por fanatismo ou adesão incondicional a um time em nome da vitória, elementos que, paradoxalmente, forjam mentalidades destrutivas e desagregadoras.

Nesse sentido, é mais que compreensível que mulheres como Manu Gavassi não se sintam representadas pelo futebol. Para elas, praticar a modalidade feminina chegou a ser algo proibido por quase quatro décadas no Brasil. Há quem inclusive aprecie o jogo, mas despreze todo o ambiente a seu redor, a exemplo de muitas pessoas LGBTs, que se veem ofendidas, entre outros motivos, pela banalização dos cânticos homofóbicos nas arquibancadas. Não é de se estranhar, portanto, que uma parcela considerável da tropa do Prior tenha cerrado fileiras com ele não pelo gosto em comum por futebol, mas por se identificar com suas atitudes machistas. Carismático, o brother conquistou uma torcida respeitável, que não viu como defeito sua arrogância disfarçada de teimosia e a pose de brucutu, que, no fundo, não passa de subterfúgio para propalar grosserias em forma de sinceridade.

Quando o apresentador Tiago Leifert vaticinou que Prior havia sido eliminado, muitos de seus seguidores disseram que não acompanhariam mais o programa. Ou que, sem o arquiteto, o BBB teria perdido a graça. Neymar foi um deles. Seus parças entraram na mesma onda. Os que diziam defendê-lo por ser parceiro de Babu sumiram. O ator, por sinal, se desculpou com Prior, sentindo-se culpado pela eliminação. Na verdade, Babu era quem deveria ter recebido um pedido de desculpas. Por medo de sair, Prior tentou envenenar o amigo, que, dignamente, se recusou a votar em Rafa e, sobretudo, em Thelma, as mulheres que mais tentaram se aproximar dele na casa. Ainda acusou Babu de vitimismo por sempre ressaltar as barreiras que enfrenta por ser um homem negro, cria da favela do Vidigal.

A parcela de torcedores antifeministas, que desejavam a derrota de Manu e do discurso que ela quer representar, abriu espaço para uma torcida oportunista de Eduardo Bolsonaro, cuja família diz boicotar a Globo. Mesmo admitindo que não assistia ao programa, o filho do presidente instou tropas virtuais da extrema direita a apoiá-lo: “Tem uma militante de esquerda concorrendo com um cara que é politicamente incorreto e ganhou apoio de quem odeia mimimi, muitos jogadores de futebol, por exemplo. Então, boa sorte Prior.” O deputado pode ganhar fama de ser o novo Mick Jagger depois da derrota do arquiteto...

Manu Gavassi, por outro lado, se declara feminista. Tem discurso combativo, embora soe forçada e contraditória em vários momentos. Deixou gravações em que interpreta hinos de Corinthians e Flamengo engatilhadas antes de entrar em confinamento, já calculando a necessidade de afagar os fandoms da bola. Comprometedor, de fato, foi o deslize racista que cometeu ao longo desta edição ao dizer que o casal loiro e branco formado por Marcela e Daniel é “esteticamente agradável” porque “a cor combina”. Fechou-se no casulo da 'comunidade hippie” e mostrou falta de empatia com diversas pessoas. A cantora pode aproveitar a experiência no BBB para rever comportamentos, evitando cair no estereótipo pejorativo de “fada sensata” que só enxerga o preconceito dos outros.

Fora do programa, Prior também tem a chance de se reconstruir. Na casa, mostrou-se aberto à autocrítica, mas pecou por se orgulhar em excesso de ser cabeça-dura. Ninguém merece o “cancelamento” sumário dos justiceiros de rede social por vacilar sob superexposição num experimento feito para entreter, assim como Manu tem todo o direito de não gostar de futebol. Seus milhões de votos foram angariados por comunidades completamente alheias ao universo de jogadores e torcedores, dos próprios fã-clubes a personalidades como Bruna Marquezine, Iza e Felipe Neto. A tropa da bola perdeu essa batalha, mas ainda pode virar o jogo se repetir a mobilização maciça em torno de Prior a favor de Babu. E, antes disso, evitar reagir à derrota com espírito de mau perdedor.

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