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A sociologia do vazio esportivo em tempos de coronavírus

Filósofos, historiadores, psicólogos e torcedores examinam os efeitos de uma interrupção que nem mesmo os piores conflitos do século XX causaram

Bilheterias fechadas no estádio do Atlético de Madri.
Bilheterias fechadas no estádio do Atlético de Madri.Oscar J. Barroso / AFP7 / Europa Press (Europa Press)

Na sexta-feira, 20 de março de 2020, se apagou a última luz na constelação de uma indústria que parecia não ter limites. A suspensão do Campeonato Turco de futebol deixou a agenda mundial de competições em uma penumbra inconcebível há somente duas semanas, quando o ritmo dos torneios de futebol, basquete, futebol americano, beisebol, rúgbi, tênis, críquete, Fórmula 1, motos, rali, vela, ginástica, golfe, natação e esqui alpino cobriam as telas que simbolizam o mais apreciado e inefável que possui o ser humano: seu tempo.

Há uma semana a oferta que abastecia os consumidores de espetáculos esportivos era de tal magnitude que um indivíduo que se dedicasse as 24 horas dos 365 dias do ano a pular de canal em canal sem dormir e comer morreria de inanição antes de ver tudo: Campeonato Espanhol, Champions, Campeonato Inglês, NBA, NFL, torneios de tênis, Eurocopa, Copa América, Olimpíadas... o coronavírus quebrou a roda do esporte profissional com o mesmo golpe com o qual acabou com o esporte do torcedor. O que a Segunda Guerra Mundial não conseguiu após seis anos de destruição um vírus o fez em dois meses.

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Naples (Italy).- (FILE) - Operators of 'Napoli Servizi' sanitize the San Paolo stadium in Naples to prevent the dangers of contagion of Coronavirus, Naples, Italy, 04 March 2020 (reissued on 18 April 2020). According to Italian media reports the 'Artemio Franchi' in Florence could be one of the stadiums to host the rest of Serie A season if and when the Italian soccer league will get the green light to re-start after the suspension for the coronavirus COVID-19 pandemic. (Italia, Florencia, Nápoles) EFE/EPA/CIRO FUSCO *** Local Caption *** 55926858
Coronavírus provoca apagão mundial no esporte

“É previsível que se viva com uma grande inquietação, mas não me atreveria a ser pessimista e otimista porque a sociedade tem uma grande capacidade de adaptação”, diz David Moscoso, professor de Sociologia do Esporte na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha. “É como quando se está vendo um canal de televisão, a transmissão é cortada e imediatamente parece que você entra em pânico. A sensação dura alguns segundos. Aparentemente o que as pessoas veem tem um efeito muito importante em sua vida, mas se de uma hora para a outra lhes dão outra coisa se adaptam rápido. Os espectadores precisam preencher seu mundo com as sensações que o esporte proporciona, mas se vêm de outra parte também as consomem. Hoje essa audiência dos espetáculos esportivos preencheu o vazio vendo notícias do coronavírus. Podemos pensar que uma indústria que movimenta dezenas de bilhões se fundamenta em impulsos muito superficiais”.

Acabar os campeonatos, sim ou sim

Imune à crise financeira de 2008, a indústria do esporte de competição engordou em todo o planeta. De acordo com o economista Victor Mathesson, da Universidade de Massachusetts, em 2018 os sete esportes de equipe mais populares (futebol, futebol americano, basquete, beisebol, hóquei no gelo, rúgbi e críquete) geraram 80 bilhões de euros (432 bilhões de reais) anuais, basicamente derivados da venda de direitos televisivos. Na força da indústria estava sua fraqueza. Christian Seifert, vice-presidente da Bundesliga, reconheceu tal fato nessa semana, após uma só rodada de paralisação pela epidemia de coronavírus: “Havíamos criado uma bolha; agora há clubes que podem quebrar”.

“Parece que se não há impacto comercial imediato o esporte-espetáculo não pode funcionar”, diz Moscoso. “É um modelo baseado na previsibilidade e não em circunstâncias fortuitas como as atuais, que questionam a prioridade do negócio frente aos interesses da população”.

Os donos de La Liga (Campeonato Espanhol), Premier (Inglês), Bundesliga (Alemão) e Serie A (Italiano) dizem a mesma coisa: os campeonatos iniciados devem acabar não importa como. Outro fim significaria enfrentar a ruína diante de um acontecimento para o qual não existem precedentes na Espanha, Inglaterra, Itália, França e Alemanha. “Há um caso”, diz Xavier Pujadas, professor de História do Esporte na Universidade Ramón Llull, em Barcelona; “o campeonato de futebol na Polônia foi interrompido sem volta na temporada 1939-1940, pela ocupação alemã. No momento da invasão do exército do III Reich, a equipe que liderava a competição era o Ruch de Chorzów”.

A epidemia não gera somente lucro cessante. Fernando Aguiar, membro do Instituto de Filosofia do CESIC, e especialista em ética experimental e identidade social, acredita que sem futebol a comunidade perde uma referência ética muito importante. “As pessoas que lotam um estádio aos domingos e torcem por seu time, voltam para casa felizes se ele ganha e cabisbaixas se perde, são as mesmas que estão lidando solidariamente com essa crise”, diz Aguiar. “Quem há duas semanas gritava porque haviam marcado um pênalti injusto contra sua equipe, são os mesmos que estão hoje trabalhando em um hospital, distribuindo comida nos supermercados e patrulhando as ruas. Não é verdade que sem futebol aparecerá nosso melhor lado”.

“A necessidade” dos torcedores “existe”

Nossa identidade moral”, conclui Aguiar, “o conjunto de valores que nos constituem (o senso de justiça, o coleguismo e a solidariedade, a fraternidade, a cooperação, o compromisso, o valor do esforço, o mérito) também se forja vendo esporte, vendo futebol, por sua natureza exemplar e seu caráter de jogo global. Ninguém entende que um jogador não jogue a bola para fora quando um adversário se machuca; seria incompreensível para nós que no lugar de Messi jogasse o filho de um diretor do Barcelona (a menos que fosse um Leo Messi), o que é mais comum em outros âmbitos, em outras empresas, em muitos negócios; os esportistas costumam ser exemplo de brio, de esforço, de superação; e o público muitas vezes aplaude a equipe adversária que ganha com justiça. Além disso, o futebol se transformou em um aliado do feminismo”.

Sem futebol, os torcedores mais disciplinados descrevem algo parecido à orfandade. “Nós íamos a cada duas semanas ao Bernabéu e organizávamos excursões quando o time jogava fora”, diz José Emilio, membro da Peña Cinco Estrellas do Real Madrid. “Agora o futebol é secundário, porque a família e a saúde vêm primeiro, mas isso muda seus hábitos”.

“A necessidade existe”, reconhece Pablo, sócio do Real Madrid desde que nasceu, em 1998, e ardoroso consumidor de esportes através de diversas plataformas. “Você tenta compensar lendo a imprensa esportiva na Internet, entrando no Twitter e jogando FIFA, e outro dia me entretive vendo na televisão um especial das Champions de Zidane”.

Moscoso fala sobre uma multidão que permanece em segundo plano. “Talvez o problema mais profundo da quarentena”, observa o sociólogo, “não seja experimentado pelas grandes audiências do esporte de alto rendimento tanto como a maioria social que na Espanha, de acordo com a pesquisa do INE (o Instituto Nacional de Estatística da Espanha) de 2018, são os aproximadamente 19 milhões que praticam um esporte sem as consequências econômicas que derivam do espetáculo. Somente 1% dos pesquisados responde que faz esporte para competir”.

Ver esporte, praticar esporte

“40% da população afirma que pratica esporte”, diz Moscoso, “desses, somente 3,9 milhões são federados; e unicamente competem de 2% a 5% do total. Quantos deles são esportistas de alto nível? 400 fazem parte do plano de financiamento de atletas olímpico. Entre a Primeira e a Segunda Divisão existem 2.000 jogadores. Falamos, talvez, de 0,01 da população esportiva. E é curioso que as federações e os órgãos oficiais não se manifestem sobre a imensa maioria da população, somente sobre as grandes competições”.

Pela natureza do negócio, os que na Espanha empregavam seu tempo livre em ver esporte – 22% da população de acordo com o INE – fazem tanto barulho que parecem tão prejudicados pela quarentena quanto os praticantes – 29% -. Moscoso se espanta: “Muitos dizem: ‘Eu vejo esporte na televisão, mas não me interesso por esporte”.

“A competição de alto nível”, diz o sociólogo, “não dá respostas sociais além do entretenimento. E isso age contra porque não retorna esportistas tanto como consumidores. 75% das infraestruturas esportivas foram feitas antes de 1995. Após a Lei do Esporte de 1990 foram construídos 16 Centros de Alto Rendimento. Mas entre 1995 e 2015 a Espanha não aumentou o número de esportistas apesar de aumentar em um terço a população”.

O repentino vazio no calendário de competições obriga a refletir sobre o papel do esporte em uma sociedade que parecia obcecada diante do carrossel de grandes estrelas. O coronavírus ameaça arrebentar um modelo que parecia inesgotável.

“Durante a Guerra Mundial as competições foram mantidas”

“A pandemia do Covid-19 não tem precedentes históricos do ponto de vista de seu impacto e possível efeito no esporte em geral”, diz Xavier Pujadas, professor da Universidade Ramón Llull e autor de Histórica Social do Esporte na Espanha.

“Os Estados e as federações nacionais tenderam historicamente a manter as competições por diferentes causas”, observa Pujadas, evocando os grandes conflitos do século XX. “Em primeiro lugar por uma questão puramente econômica e de sobrevivência. Durante os primeiros dias da Guerra Civil Espanhola, em julho de 1936, a imprensa do país chamou a situação esportiva do primeiro fim de semana como ‘o deserto do Saara’. Esse foi um debate muito importante na retaguarda catalã.

A competição do campeonato da Catalunha deveria ser mantida? Era ético levando em consideração a situação na frente de batalha? O fechamento das competições, que por fim ocorreria com o conflito já avançado, afetava a sobrevivência dos clubes e da federação. Durante a Segunda Guerra Mundial em muitos países como a França, Inglaterra, Alemanha, Itália e os Estados Unidos, a competição doméstica foi mantida até ser humana e materialmente possível”.

“Prosseguir com as competições”, conclui o historiador, “ajuda a manter uma aparência de normalidade entre a população e permite desenvolver um cenário de ócio controlado com um efeito balsâmico indubitável. Em períodos de crise como durante o crack de 1929 nos Estados Unidos, a continuação do esporte espetáculo não diminuiu apesar da situação social e trabalhista”.

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