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O salto do feminismo sobre a trincheira da bola

Além da luta por valorização das mulheres atletas, movimentos feministas ganham influência dentro e fora dos clubes, colhendo avanços ao enfrentar o machismo no futebol

Feministas futebol
Mulheres protestam contra goleiro Bruno no Mato Grosso.

No último ano, as mulheres celebraram importantes conquistas em sua jornada pelo circuito da bola para ocupar espaços historicamente reservados ao protagonismo dos homens. A Copa do Mundo feminina, disputada na França, bateu recordes de audiência e faturamento. Pela primeira vez, os times da Série A mantiveram, por obrigação imposta pela CBF e Conmebol, equipes profissionais femininas. O Brasileirão masculino voltou a ter, após um hiato de 14 anos, uma mulher (Edina Alves) como árbitra principal em seus jogos. Não bastasse a reivindicação por mais investimentos na modalidade, os movimentos feministas também começam a influenciar decisões, contratações e campanhas institucionais dos clubes.

Em janeiro, um grupo de mulheres mato-grossenses se mobilizou em oposição à chegada do goleiro Bruno Fernandes de Souza, que havia sido contratado pelo Operário de Várzea Grande. Encabeçado por integrantes do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e torcedoras do Núcleo Feminino da Força Jovem Operário, o movimento organizou um protesto em frente ao estádio do clube e manifestou repúdio pela reinserção futebolística do atleta, que cumpre pena em regime semiaberto pelo assassinato da modelo Eliza Samudio. “Não somos contra a ressocialização, mas entendemos que, pela banalização do feminicídio no país, o retorno à condição de ídolo é incompatível com a gravidade do crime que ele cometeu”, explica a procuradora Glaucia Amaral, presidente do Conselho da Mulher do Mato Grosso.

Depois de se reunir com torcedoras e medir a repercussão dos protestos, a diretoria do Operário resolveu desistir de contratar Bruno por temer um possível boicote de patrocinadores e da população de Várzea Grande a suas partidas. “A medida dos dirigentes foi um sinal de respeito às mulheres e à sociedade. Vários homens também participaram dos atos”, conta Glaucia. “O suporte da torcida ao nosso manifesto foi fundamental para o clube voltar atrás.” Também no início deste ano, a figura de outro goleiro motivou ação conjunta de mulheres contra a violência doméstica.

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Assim que chegou a Goiânia, Jean virou alvo de protestos liderados pelo Coletivo de Mulheres Goianas. Em dezembro, ele havia agredido a mulher Milena Bemfica em um hotel enquanto passava férias com a família nos Estados Unidos. Afastado do São Paulo e contratado pelo Atlético-GO, o goleiro despertou a indignação das mulheres por, além da agressão, não ter se desculpado com a esposa e as filhas pelo ato após pagar fiança para responder ao processo em liberdade. “Entendemos que o Atlético Clube Goianiense, que se coloca como o ‘time da família’, está se contradizendo ao fazer a contratação de um homem que se tornou exemplo da brutalidade contra a sua própria família”, sinalizava a nota de repúdio do grupo.

A diretoria do clube, então, convidou representantes do Coletivo para uma reunião, em que se comprometeu a condicionar a oficialização do novo reforço a uma retratação pública, elaborar campanhas de conscientização sobre a violência contra a mulher e investir no recém-lançado time feminino. “Desde o começo da conversa, mostramos que a retratação do Jean era uma pauta inegociável. Felizmente, o clube concordou com todas as nossas sugestões”, diz Mariana Lopes, do movimento Feminista Independente. Integrantes compareceram à apresentação do goleiro, que, finalmente, pediu desculpas por ter espancado a esposa. “Toda história tem dois lados, mas nada justifica a agressão. Fiquei totalmente errado e estou arrependido do que fiz”, disse Jean. Adson Batista, presidente do Atlético, que estava ao lado do atleta, avaliou positivamente o encontro com as mulheres. “Elas se manifestaram com educação e civilidade. E nós nos atentamos para uma causa que é justa e será abraçada pelo clube.”

Homônimo mineiro, o Atlético-MG constrangeu suas próprias jogadoras durante a apresentação do time feminino, em fevereiro. O mascote Galo Doido pediu à zagueira Vitoria Calhau para dar uma voltinha e, em seguida, esfregou as mãos em gesto de cunho machista. Após a atitude repercutir negativamente nas redes sociais, o clube publicou um vídeo em que o funcionário fantasiado escreveu e entregou uma carta se desculpando com a jogadora. “Eu te perdoo, mas, tanto aqui como em outro clube, isso não pode acontecer mais”, disse Calhau. A Grupa, um coletivo de torcedoras atleticanas que combate o machismo e a discriminação, demonstrou apoio à zagueira, cobrando medidas mais efetivas da diretoria. “Não são ações pontuais que trazem resultado. O clube tem que se tornar agente de mudança. É imprescindível que o Atlético se mostre cada vez mais aberto a rever posições. Estamos dispostas a contribuir.”

O coletivo surgiu em 2016, depois de o Atlético organizar um desfile para lançar seu novo uniforme que apresentava mulheres de biquíni. Em 2017, as torcedoras criticaram o clube por distribuir rosas no Dia Internacional da Mulher, sem ações paralelas para combater o machismo, e por omissão no caso Robinho, que defendia o time alvinegro na época em que foi condenado em primeira instância a nove anos de prisão por estupro. As cobranças surtiram efeito. No ano seguinte, o Atlético levou Maria da Penha, que empresta o nome à lei que criminalizou a violência doméstica e familiar sofrida por mulheres, ao Independência para divulgar o serviço de denúncia Ligue 180 às vésperas do Dia da Mulher.

Reivindicações que, além de abrir caminho para a valorização de atletas e equipes femininas, também se convertem, aos poucos, em medidas práticas para torcedoras. Com base em queixas registradas por mulheres tricolores, o Bahia desenvolveu um site para facilitar denúncias de assédio e uma parceria com a Polícia Militar instituindo a Ronda Maria da Penha, composta por oficiais do sexo feminino, que atende exclusivamente às torcedoras no estádio da Fonte Nova. Em Porto Alegre, o Internacional tem a diretoria de Inclusão Social comandada por uma mulher, Najla Diniz. Uma de suas atribuições é promover eventos com temáticas feministas e estimular a participação de mulheres no quadro social. Atualmente com 25% de sócias coloradas, o Inter se orgulha de ser o clube de maior representatividade feminina no país.

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