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FMI esfria entusiasmo mundial e culpa inflação e acesso desigual a vacinas por fraca recuperação

Economias avançadas retornarão a seus níveis pré-pandêmicos em 2022, mas países emergentes e em vias de desenvolvimento ficarão para trás ao menos até 2024

Pedestres na região de Shibuya, principal centro comercial e financeiro de Tóquio, nesta quarta.
Pedestres na região de Shibuya, principal centro comercial e financeiro de Tóquio, nesta quarta.Kiichiro Sato (AP)
María Antonia Sánchez-Vallejo

O coronavírus acentuou as disparidades globais, e o acesso desigual às vacinas ampliou a diferença no ritmo da recuperação entre o mundo rico e os países em vias de desenvolvimento. Nenhuma nação terá condições de superar a pandemia sozinha, principalmente diante da variante delta, extremamente contagiosa e ainda não controlada, por isso a interdependência e a colaboração entre as economias avançadas e emergentes é o único itinerário seguro para superar a crise sanitária, que conflui com outra de alcance desconhecido, a climática e suas múltiplas sequelas, entre elas a insegurança alimentar.

O impacto dos sucessivos surtos do vírus em elos críticos das cadeias globais de suprimentos provocou interrupções mais acentuadas que o esperado, alimentando a inflação em muitos países e lançando sombras sobre a recuperação. Estas são as principais conclusões do relatório Perspectivas Econômicas Globais, apresentado nesta terça-feira em Washington pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em meio à sua sessão trimestral conjunta com o Banco Mundial. A economia mundial está entrando numa fase de risco inflacionário, advertiu o fundo, aconselhando os bancos centrais a redobrarem a cautela e endureceram a política monetária se a pressão sobre os preços persistir, embora se espere que diminua na maioria dos países em 2022.

Junto a isso, a previsão de crescimento global sofreu um ligeiro reajuste para baixo em 2021 (dos 6% previstos em julho para 5,9% agora). Nos EUA, a correção foi de um ponto percentual inteiro, de 7% para 6% este ano, um resultado bem menos notável que o de economias com a indiana (9,5%) e chinesa (8%). Os países de renda média e baixa ficam muito para trás do caminho de expansão que trilhavam antes da pandemia. Para 2022, a previsão de crescimento global não muda: 4,9%. Mas é a divergência entre os dois grandes blocos o principal motivo de preocupação para especialistas. Enquanto se espera que o grupo de economias fortes recupere sua base anterior a partir de 2022, superando-a em quase um ponto (0,9%) em 2024, dentro de três anos os mercados emergentes e em vias de desenvolvimento (com a exceção da China) se manterão ainda 5,5% abaixo de onde estavam antes da pandemia, o que provocará um acentuado revés para as melhorias de suas condições de vida nos últimos anos. Reunir esse retrocesso com a recomendação do FMI de investir majoritariamente em saúde para superar a emergência é uma receita difícil de aplicar para as economias do pelotão retardatário.

O abismo entre as duas realidades econômicas —ou um mundo a duas velocidades— é o resultado da grande disparidade vacinal e das diferenças de magnitude nas políticas de estímulo adotadas para manter vivas as economias durante a emergência sanitária. As cifras são eloquentes: enquanto pelo menos 60% da população já recebeu a pauta completa de imunização nos países de economia avançada, e alguns, como EUA e Israel, já partiram para as doses de reforço, nos países de mais baixa renda 96% dos cidadãos ainda nem começaram a ser vacinados. Muitos emergentes, por sua vez, estão estacionando seus planos de estímulo por causa das condições de financiamento mais rigorosas que vêm encontrando.

Como escreve a economista-chefa do FMI, Gita Gopinath, no prefácio do relatório, a história da recuperação pós-pandemia é a narrativa de dois mundos, em que as economias avançadas são as únicas a retomarem seus níveis pré-pandêmicos já no ano que vem. A tendência global mostra, enquanto isso, uma atividade econômica ainda 2,3% abaixo dos níveis prévios, sendo que os mercados emergentes e em vias de desenvolvimento, com exceção da China (2,1% abaixo), apresentam em seu conjunto uma cifra negativa de 5,5%, chegando nos países com renda mais baixa a quase 7% a menos que o nível de 2019.

O desabastecimento de componentes como os semicondutores, que está afetando as cadeias de produção em setores como o automotivo, junto com a recuperação no preço das commodities, provocou um rápido aumento da inflação nos EUA, na Alemanha e em muitos países emergentes e em vias de desenvolvimento. A teoria de que se trata de um reaquecimento temporário, como mero repique depois da contração econômica pela pandemia, goza de tantos partidários quanto adversários. Mas o aumento dos preços dos alimentos fica especialmente claro nos países de mais baixa renda, que são justamente os mais expostos à insegurança alimentar, o que compromete a viabilidade econômica das famílias e conduz ao risco de uma das incontáveis revoltas do pão que periodicamente agitam muitos países pobres.

Dívida pública recorde

Como nenhum país —nem sequer os mais ricos— tem condições de sair sozinho da pandemia, salienta o relatório, a solidariedade vacinal é imprescindível para alcançar o objetivo de imunizar pelo menos 40% da população mundial até o final deste ano, e 70% até meados de 2022. Isso supõe a doação de doses por parte do mundo rico ao fundo global Covax, mas também uma coordenação mais fluente com os fabricantes para priorizar o fornecimento imediato a essa plataforma liderada pela ONU, assim como a eliminação das restrições comerciais à circulação de vacinas (patentes e tarifas). Além disso, o mundo desenvolvido deve contribuir para reduzir um déficit de financiamento de 20 bilhões de dólares (110 bilhões de reais) para exames de diagnóstico, terapias e pesquisa. O que equivale, também, a incentivar a produção de vacinas nos países em vias de desenvolvimento através de transferência financeira e tecnológica. A grande disparidade vacinal, seja pelo fracasso na divisão e entrega das vacinas ou pelas dúvidas sobre sua eficácia —ainda muito perceptíveis em países como os EUA—, poderia reduzir o PIB global acumulado em 5,3 trilhões de dólares (quase quatro anos de PIB brasileiro) ao longo de meia década.

O relatório do FMI também envia um claro recado à próxima cúpula global do clima (COP26), marcada para novembro em Glasgow. A instituição insiste num maior compromisso pela redução das emissões de gases do efeito estufa, e para isso propõe medidas como um preço mínimo para o carvão, ajustado às características de cada país —China e Índia sofrem atualmente as consequências do preço livre— e investimentos das Administrações em energias limpas. E outra mensagem vai para as economias avançadas: cumprir suas promessas de financiar com 100 bilhões de dólares (553 bilhões de reais) por ano a conversão ou transição energética das economias retardatárias.

Com relação à dívida pública, em níveis recordes após um ano e meio de medidas de sustentação a economias exauridas pela pandemia, a instituição presidida por Kristalina Georgieva propõe soluções de médio prazo para torná-la sustentável e cita como exemplo a injeção de reservas de 650 bilhões de dólares (3,6 trilhões de reais) realizada mediante os direitos especiais de saque do FMI, essenciais para os países de renda baixa e média. Novamente, a situação dos países de baixa renda é a mais preocupante: a dívida disparou 12%, chegando ao recorde de 860 bilhões de dólares no ano passado, aponta um relatório do Banco Mundial divulgado nesta segunda-feira.

Abordar este problema é urgente, salientou David Malpass, presidente do Banco Mundial, já que no final deste ano expira a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida, lançada pelo G-20 em abril de 2020, o que permite aos Governos adiar parcelas de suas dívidas para priorizar o combate à pandemia. “O risco de que muitos deles saiam da pandemia com um endividamento excessivo, que levaria anos para administrar, é óbvio”, alertou Malpass.

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