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Criptomoedas, a nova ferramenta política dos governos rebeldes da América Latina

O rápido aumento do uso de moedas virtuais levou alguns países da região a regulamentar seu uso, apesar dos riscos e da má reputação

Isabella Cota
Vista de um mural em Havana (Cuba) em 1º de setembro. O banco central anunciou recentemente a legalização das criptomoedas
Vista de um mural em Havana (Cuba) em 1º de setembro. O banco central anunciou recentemente a legalização das criptomoedasYander Zamora (EFE)
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Brian Armstrong, bilionário aos 38 anos graças ao bitcoin

Primeiro foi a Venezuela, depois El Salvador e agora Cuba. Os três governos da América Latina que adotaram as criptomoedas até agora têm algo em comum: uma relação tensa com os Estados Unidos. A ninguém é mais conveniente que as divisas virtuais cheguem às massas do que aos países que queiram os benefícios da integração econômica global sem ter de passar pelo sistema bancário dolarizado.

Na terça-feira, a Lei Bitcoin entra em vigor em El Salvador, o que tornará o país o primeiro do mundo a fazer do Bitcoin uma moeda nacional. Em Cuba, o banco central anunciou recentemente que legalizará as criptomoedas diante do aumento do uso do Bitcoin, Ethereum, Litecoin e Tether. Por seu lado, a Venezuela foi um dos primeiros países a emitir sua própria moeda virtual, o petro, embora não tenha sido tão utilizada quanto o Governo esperava.

“A inovação dessa tecnologia chegou muito rápido, mas a regulamentação não, e nos Estados Unidos ainda não a temos”, diz Amanda Wick, chefe de assuntos regulatórios da Cainalysis, empresa especialista em tecnologia blockchain (a espinha dorsal de toda criptomoeda). “A vantagem desses países é que podem ser muito ágeis, tomar decisões, acordar legislação muito rápido, um luxo que os países desenvolvidos não têm. Isto vem com grandes possibilidades e com grandes riscos”.

A Administração de Joe Biden foi crítica do papel das criptomoedas, que não respondem a uma autoridade central, nos ataques de ransomware que sequestraram a infraestrutura e os dados pessoais dos cidadãos. Em uma iniciativa recente, a Casa Branca propôs aumentar a regulamentação desses ativos digitais, argumentando que “já representam um problema de detecção significativo ao facilitar atividades ilegais em geral, incluindo a evasão fiscal”.

É por isso que a decisão do presidente salvadorenho Nayib Bukele de fazer de seu país a primeira experiência soberana do Bitcoin foi interpretada por alguns especialistas não apenas como mais um sinal de que está disposto a ir muito longe, mas também como um desafio frontal às autoridades norte-americanas. O país centro-americano está dolarizado e fazer do Bitcoin uma alternativa de moeda nacional é uma forma de “se desdolarizar” sem fazê-lo por completo.

Cuba e Venezuela operam sob sanções econômicas e financeiras norte-americanas. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, não tem acesso, por exemplo, aos ativos do Estado que se encontram no país norte-americano, por isso tem recorrido a redes informais de troca para burlar as sanções e receber recursos do exterior.

As sanções norte-americanas limitam a participação de Cuba no sistema financeiro internacional. “Mediante o uso de criptomoedas, a ilha poderia contornar, ainda que de maneira muito leve, alguns aspectos do bloqueio. Mas resta saber como usará a regulamentação”, afirma Emily Parker, autora e editora-chefe do Coindesk, um site de informações especializadas em criptomoedas. “Também há motivações internas: recentemente ficou mais difícil usar dólares em Cuba”, acrescenta. Na ilha, diz, “já existe interesse em criptomoedas e, se a indústria ficar no mercado paralelo, será muito mais difícil para o Governo arrecadar impostos ou participar dessa revolução financeira”, acrescenta Parker.

As motivações dos governos são políticas e econômicas. Em El Salvador, as criptomoedas podem ser uma ferramenta para enviar remessas de maneira mais eficiente —que contribuem com cerca de 20% do produto interno bruto do país— e o Governo espera que a nova lei atraia turismo e investimentos.

O uso de criptomoedas aumentou 880% entre 2019 e 2020 em nível mundial, de acordo com dados da Chainalysis. O impulso ocorreu especialmente nos países emergentes, onde a confiança nas autoridades e nos bancos é baixa e onde sua moeda fiduciária tende a se desvalorizar, disse a empresa. Para milhões de latino-americanos as criptomoedas representam uma maneira rápida de receber recursos enviados por parentes que trabalham no exterior, bem como uma forma de contornar o sistema. Os governos desses três países sabem disso e querem ter certeza de que também podem se beneficiar dessa tendência.

A controvérsia está nos riscos. Embora figuras conhecidas e celebridades como Jack Dorsey, fundador do Twitter, e Elon Musk, fundador da Tesla, tenham se manifestado em defesa do uso da nova tecnologia monetária, as criptomoedas continuam dividindo opiniões. A alta volatilidade faz delas um investimento muito incerto; o fato de não haver uma autoridade significa que ninguém garante o investimento; e o fato de serem usadas para fazer compras ilegais e crimes cibernéticos lhes deu uma má reputação.

“Não acredito que os governos antiocidentais estejam promovendo as criptomoedas”, argumenta Wick. “Acredito que as políticas e práticas antiocidentais ou antidemocráticas levam os cidadãos a buscar autonomia em relação ao seu dinheiro”. Assim como a Venezuela, o Governo comunista do Vietnã anunciou em julho que está preparando uma criptomoeda piloto própria, fazendo frente ao rápido aumento do uso de criptomoedas globais. A China também está desenvolvendo a sua.

“Não há uma tendência clara entre os mercados emergentes, mas definitivamente há coisas em comum entre eles”, observa Wock. “Vietnã, Nigéria, Quênia, Venezuela, todos estão acima em nosso índice de adoção e isto é, em parte, porque acontecem transações em volumes enormes. Isto não é necessariamente derivado dos governos, é mais uma consequência da falta de acesso a produtos financeiros bancários”, acrescenta.

“Quando você pensa nos casos em que essa tecnologia é mais bem aproveitada, pensamos em refugiados ou naqueles que não confiam em suas autoridades”, afirma Wick. “Em muitos casos não é uma coincidência que o Governo seja antiocidental ou que tenham tendências antidemocráticas, porque isso leva as pessoas a buscarem mecanismos para ter controle sobre seu dinheiro”.

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