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Mundo pós-pandemia impulsiona alta global de impostos em guinada histórica por Estado mais forte

Acordo do G7, que aprovou uma alíquota mínima global de 15% sobre as multinacionais , e plano bilionário de Biden para recuperar a economia norte-americana prenunciam mudança de ares na economia mundial. “Os políticos deixaram de lado velhos dogmas impelidos pela necessidade”

A Secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, e o ministro das Finanças do Reino Unido, Rishi Sunak, na cúpula do G7 em Londres no fim de semana.
A Secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, e o ministro das Finanças do Reino Unido, Rishi Sunak, na cúpula do G7 em Londres no fim de semana.HOLLIE ADAMS / POOL (EFE)
Claudi Pérez
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Esta história começa na década de setenta. No final de 1974, dois assessores republicanos se encontram em Washington com um economista semidesconhecido procedente de uma escola de negócios de segunda linha, Arthur Laffer. O professor desenha um gráfico no guardanapo e os convence de que o Governo arrecadará mais impostos se reduzir as alíquotas: a curva de Laffer se tornará a ideia mais influente que já veio ao mundo rabiscada em um guardanapo de coquetel. Pouco depois, a filha do dono de uma mercearia, formada em Oxford com uma bolsa de estudos, ganha a eleição no Reino Unido, e um tipo que se autodenomina “um Errol Flynn de filme B” assume o poder nos Estados Unidos: Margaret Thatcher e Ronald Reagan protagonizarão a chamada revolução conservadora, um novo contrato social baseado na fé nos mercados autorregulados, na globalização e no receio de tudo aquilo que soe a Estado, inclusive os impostos. A direita adere a esse credo e obtém resultados econômicos relativamente bons, embora as desigualdades e outros excessos comecem a aumentar. Até a esquerda abraça essa ortodoxia: Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schröder aplicam esse receituário. O pêndulo permanece quatro décadas nesse lado, até que em 2008 o sistema ultrapassa seus limites. A conclusão chega agora, com o mundo virado de cabeça para baixo pela covid-19: um moderado de quase 80 anos, Joe Biden —filho de um vendedor de carros usados—, comanda uma mudança de ares na política econômica. A nova pele do capitalismo chega inclusive ao sistema tributário: reduzir impostos já não é de esquerda. E talvez nos próximos tempos nem sequer seja de direita.

Resumindo: os impostos estão de volta, como costuma acontecer depois dos grandes choques, e já são dois em apenas uma década. Após a Grande Recessão (2008) houve promessas de refundação do capitalismo, um dos grandes gatos por lebre da história; ainda nem começamos a sair da crise associada ao coronavírus, mas as políticas de estímulo se generalizaram diante do temor de que o mal-estar acabe tirando velhos demônios do armário. A ortodoxia foi pelos ares. O maior temor das organizações multilaterais hoje é que os estímulos sejam retirados prematuramente. Diante da sucessão de crises, com a incerteza radical típica destes tempos e dos níveis corrosivos de desigualdade, o pêndulo oscila de menos para mais Estado, de menos para mais redes públicas de segurança, de menos para mais impostos. Porque tudo isso tem de ser pago: a crise do euro e a covid-19 dificultam —por um tempo— a via dos ajustes dos gastos e, diante do elevado endividamento abrem caminho os aumentos de impostos, por pura necessidade e porque o ethos está mudando.

O brusco aumento de impostos é liderado por Biden e penetrou nas organizações internacionais, do FMI à OCDE, pouco suspeitas de serem social-comunistas. O G7 acaba de acordar uma alíquota mínima de imposto sobre as empresas. A União Europeia aperta os dentes em matéria de fiscalidade ambiental. Uma vitória dos Verdes em Berlim poderia mudar muitas coisas. Alguns não terão escolha: a Espanha está condenada a aumentar os impostos.

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As democracias liberais são intrinsecamente assépticas, exceto em alguns poucos assuntos. Um deles são os impostos: “Um roubo diário”, como os definia Reagan, que os odiava com o fígado. “Os impostos são o preço que pagamos por viver em uma sociedade civilizada”, dizia um juiz da Suprema Corte dos EUA; “e, no entanto, muita gente quer uma civilização com desconto”, rugia Franklin Roosevelt em plena Grande Depressão (1929), antes de estabelecer taxas de 90% sobre os ricos. Esses números —que, longe de lastrear a economia, coincidem com três décadas de crescimento bem distribuído— não vão voltar. Mas a corrida para a baixa dos últimos 40 anos (em 2018 os 400 norte-americanos mais ricos pagavam alíquotas menores do que a classe trabalhadora) está começando a dar uma guinada. O apoio popular ao aumento do gasto financiado por impostos está crescendo, de acordo com as pesquisas citadas pelo FMI: sobe até 15 pontos se o entrevistado tiver um membro da família doente ou desempregado.

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Joe Biden na cúpula do G-7 realizada neste fim de semana na Cornualha (Reino Unido).
Joe Biden na cúpula do G-7 realizada neste fim de semana na Cornualha (Reino Unido). KEVIN LAMARQUE (AP)

Os EUA anunciaram um pacote bilionário de estímulos para fortalecer a infraestrutura e as maltratadas políticas sociais, associados, pela primeira vez em muito tempo, a aumentos de impostos sobre as empresas multinacionais e sobre aqueles que ganham mais de 400.000 dólares (cerca de 2,05 milhões de reais) por ano. Além disso, Biden pressiona para globalizar esse aumento de impostos. O G7 fechou um acordo que os otimistas qualificam de histórico: uma alíquota mínima global de 15% sobre as empresas e a obrigação de que as multinacionais paguem uma parte dos impostos onde operam. Os EUA são o principal beneficiário, mas outras grandes economias, a Espanha está entre elas, também saem ganhando: esse imposto defensivo fará aflorar até 80 bilhões por ano; a OCDE estima que a evasão fiscal faz desaparecer cerca de 240 bilhões por ano. O G20 deve endossar o pacto dentro de algumas semanas; a OCDE terá uma proposta pronta para 139 países no verão [no hemisfério norte], e a UE tem outras medidas em andamento.

Uma alíquota mínima de 15% sobre as multinacionais não significa que todos os países tenham de fixar esse limite. Se uma empresa espanhola paga 5% na Irlanda, a Fazenda reclamará os 10% restantes; se paga excelente índice de 0% nas Bermudas, a Espanha a tributará em 15%. Daí o adjetivo histórico: pela primeira vez os paraísos fiscais são desincentivados. Além disso, o Reino Unido (com vários paraísos fiscais sob sua bandeira), os EUA (que abriga várias jurisdições não cooperativas) e a UE (com cinco piratas no euro: Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Chipre e Malta) são a favor.

Mas cuidado: a história recente está repleta de novos amanheceres fiscais abortados pela miríade de assessores fiscais que trabalham para as multinacionais. “Apesar das limitações, é um passo importante”, destaca Daron Acemoglu, do MIT. “Se há cooperação, os ministérios da Fazenda poderão aumentar sua arrecadação sem punir as empresas menores, estreitando o rombo gerado por Luxemburgo, Irlanda ou as ilhas do Canal da Mancha”, complementa. “Mas sem exagerar: se continuarmos como agora, o mal-estar seguirá aumentando; mas se taxarmos demasiado, o investimento e o crescimento se ressentirão”, esclarece. “É um pouco cedo para falar em revolução fiscal”, avisa Alan Auerbach, da Universidade de Berkeley; “mas nos EUA há uma mudança de guarda: os democratas foram para a esquerda em relação a Obama e Clinton.” John Cochrane, de Chicago, coloca o dedo em uma das feridas: “Quando os norte-americanos perceberem que, para financiar um Estado de bem-estar como o europeu, são necessários impostos europeus e aceitar o crescimento esclerosado da Europa, talvez repensem tudo isso.” Desmond Lachman, do neoliberal American Enterprise Institute, prevê “um retorno à doença dos anos setenta: a inflação.”

Europa, menos agressiva

Talvez o aumento de impostos europeu seja menos agressivo; afinal, o Estado de bem-estar é mais poderoso do que o dos EUA. Mas a pandemia afetou os cofres públicos e um grande grupo de países já aprovou aumentos de impostos ou está considerando fazê-lo, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Econômico (OCDE). Até a Itália de Draghi planeja uma reforma tributária com mais progressividade, mas com um efeito global neutro. Os Verdes, que lideram as pesquisas na Alemanha, anunciam “aumentos substanciais”.

A Europa, em suma, será menos ousada que os Estados Unidos, mas também entra em uma nova era fiscal: Bruxelas espera realizar neste mês a primeira emissão de dívida conjunta para financiar o fundo de recuperação, passo que assinala um antes e um depois na concepção e na execução do orçamento comum. A UE lançou este mês o primeiro Ministério Público europeu, encarregado de perseguir os crimes contra os interesses financeiros do clube. E o Parlamento Europeu está finalizando a aprovação de uma diretriz que obrigará as grandes empresas a detalhar sua fatura fiscal país por país.

“Na Europa a carga tributária já é alta: o objetivo não é um aumento geral de impostos, mas focar em quem paga menos do que deveria: as multinacionais que usam paraísos fiscais e os ricos que evitam pagar imposto de renda”, explica Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Mark Blyth, da Universidade Brown, aponta que, juntamente com o debate tributário, é fundamental reformar as regras fiscais europeias: “A UE está ciente de que a austeridade foi um desastre; se voltar a fazer a mesma coisa é provável que o euro salte pelos ares.”

Em última análise, a força do impulso fiscal na União Europeia ainda está por ser vista. “Mas é verdade que os políticos deixaram de lado velhos dogmas impelidos pela necessidade”, diz Paul de Grauwe, da London School. Mas não demorarão a vociferar aqueles que preferem ajustes de gastos a aumentos de impostos. “Mas a covid-19 muda as coisas, é difícil que os eleitores aprovem cortes na saúde depois do que aconteceu. E acredito que há algo novo flutuando no ar: é possível ganhar eleições dizendo que é preciso tributar mais os ultrarricos”, enfatiza de Grauwe.

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