O medo da inflação nos EUA põe em xeque a rápida recuperação dos mercados emergentes

Os fluxos de investimento regressam em tempo recorde para os países em desenvolvimento, no calor das medidas ultraexpansionistas do Fed. Mudança na política monetária teria, no entanto, impactos fatais

Trabalhador caminha sobre pilhas de contêineres no porto de Tanjung Priok, em Jacarta, Indonésia.
Trabalhador caminha sobre pilhas de contêineres no porto de Tanjung Priok, em Jacarta, Indonésia.Ajeng Dinar Ulfiana (Reuters)
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Há apenas um ano todas as apostas apontavam uma longa temporada dos emergentes no inferno econômico. Tudo sinalizava nessa direção: a pandemia se alastrava para além da Europa e dos Estados Unidos, ao Brasil, Índia e México, três países-chave do bloco em desenvolvimento; e a América Latina tinha o que perder: as matérias-primas, das quais continua a depender tanto, tinham entrado em parafuso. Tudo, em suma, jogava contra. Mas esse diagnóstico não levou em consideração uma variável essencial: que, em um mundo hiperglobalizado, o que os demais atores fazem importa tanto ou mais do que o que você fizer. A artilharia pesada com que os grandes bancos centrais do planeta saíram da crise não só funcionou como uma barreira contra incêndio nos países ricos, como também permitiu que os emergentes se recuperassem em tempo recorde da fuga inicial de dinheiro que o abalo na saúde produziu. E, no entanto, essa globalização ao cubo também se aplica na direção oposta: se os grandes órgãos emissores titubearem e derem minimamente marcha-à-ré em seu roteiro, o mundo em desenvolvimento terá a perder.

Quando os alicerces tremem, os emergentes são sempre o andar mais frágil do edifício econômico mundial. E o terremoto da pandemia não tem precedentes: em um único mês, março de 2020, a fuga de capitais investidos em dívidas e ações de emergentes beirou 100 bilhões de dólares (cerca de 560 bilhões de reais), segundo dados do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, espécie de associação mundial da banca). O dinheiro, sempre medroso e em grande parte procedente de países ricos, empreendia o caminho de volta em uma única tacada, a uma velocidade que invalidava qualquer comparação com algum episódio anterior: tanto a crise financeira global de 2008 como o taper tantrum de 2013 —quando o Federal Reserve (Fed), o Banco Central norte-americano, indicou que começaria a retirar os estímulos mais cedo do que o esperado, causando um efeito dominó— estavam muito distantes.

A recuperação dessa abrupta debandada de investidores, porém, foi igualmente rápida. Em junho, o sangramento havia parado e as entradas de dinheiro nos mercados emergentes já igualavam as saídas. E antes do final do ano já haviam retornado aos níveis pré-crise, um marco que levou anos para ser alcançado após a crise financeira global. A fuga inicial de investidores foi “realmente violenta; como uma espécie de chicotada”, nas palavras de Jonathan Fortun, economista do IIF, enquanto na Grande Recessão foi “como apertar um botão em câmera lenta”. “Mas o interessante”, acrescenta por telefone, “é que o retorno foi tão ou mais forte”.

Há menos de um ano, reconhece Fortun, “todos nós pensávamos que os países emergentes teriam muito mais problemas, que as remessas [o dinheiro que os emigrantes enviam para suas famílias] e as matérias-primas iriam afundar”. As primeiras, porém, têm resistido de forma surpreendente —fenômeno para o qual muitos analistas ainda buscam uma explicação para além das políticas de manutenção de receitas em seus países de destino— e as matérias-primas se recuperaram a uma velocidade que poucos foram capazes de prever. “Temíamos os quatro cavaleiros do apocalipse e se tornou muito menos”, admite.

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Qual é a razão para essa mudança radical no padrão em comparação com episódios anteriores de volatilidade? Tanto o economista do IIF como José Pérez Gorozpe, chefe de pesquisa e análise para mercados emergentes da agência de classificação de riscos S&P, fazem alusão à resposta muito diferente dada desta vez pelos dois bancos centrais do planeta —o Federal Reserve e o Banco Central Europeu (BCE)—, com um interminável balcão de liquidez livre e a promessa de que não vão levantar o pé do acelerador antes do tempo. Com as taxas de juros da dívida dos países ricos em mínimos históricos, senão diretamente negativas, e os mercados de ações em altas históricas, tanto a renda fixa como a renda variável do bloco em desenvolvimento brilharam com luz própria, levando de volta aos mesmos investidores que lhes deram as costas no início da crise sanitária. “Durante meses, foram o único lugar onde os investidores encontraram retorno”, enfatiza Pérez Gorozpe.

Nuvens no horizonte

O jogo está bem encaminhado, muito melhor do que qualquer um poderia ter imaginado, mas não está de forma alguma ganho. Em fevereiro, o regresso do capital desacelerou, depois que o retorno oferecido pelo título de 10 anos nos EUA disparou 60%. E nesses níveis, para muitos, não é mais tão atraente assumir o risco adicional que vem com o investimento em países de renda média. Não só isso: com o trilionário plano Biden já aprovado, cresceu exponencialmente o coro daqueles que alertam para um potencial superaquecimento que traria inflação e forçaria uma normalização antecipada da política monetária. Algo que mudaria por completo o roteiro.

“A mera existência de um debate sobre a inflação é ruim para todo o bloco e já há quem esteja alertando para um taper tantrum 2.0. Ao contrário de poucos meses atrás, alguns riscos começam a ser percebidos e o frenesi da liquidez diminuiu um pouco nos mercados, mas acho que o Fed aprendeu com seus erros passados e não voltará a cair”, enfatiza Fortun. “O crucial agora é evitar erros não forçados”, conclui, valendo-se da retórica do tênis.

Quer a lição tenha sido aprendida ou não pelo condutor da política monetária dos EUA, cujo poder de atração ainda é incomparavelmente maior do que o do BCE, tanto o economista do IIF como o especialista da agência de classificação de risco S&P acreditam que a partir de agora se abre um caminho de diferenciação no qual os países de renda média não serão tratados como um bloco monolítico, mas sua situação individual será valorizada “muito mais”. Nem todos estariam igualmente vulneráveis a um aumento nas taxas: aqueles com uma balança de pagamentos mais desequilibrada, como a Argentina ou a Turquia, seriam bucha de canhão. E também aqueles que mantinham “desafios fiscais importantes” já antes da pandemia, como o Brasil e a África do Sul. Mas em quase todos os casos, conclui Pérez Gorozpe, “os desequilíbrios são muito menores do que nas crises anteriores”. Nas capitais do bloco, de Johanesburgo a Jacarta, cruzam-se os dedos para que assim seja considerado. E para que a inflação não corra desenfreada a milhares de quilômetros de distância.

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