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Gabriel Zucman: “Os impostos que os ‘youtubers’ não pagam todos nós acabamos pagando”

O jovem economista francês, discípulo de Thomas Piketty, afirma que a injustiça fiscal é um dos grandes fracassos políticos do nosso tempo

Gabriel Zucman, fotografado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 5 de fevereiro.
Gabriel Zucman, fotografado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 5 de fevereiro.Ian Tuttle
Pablo Guimón
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Duas experiências precoces condicionaram a carreira de Gabriel Zucman, economista nascido em Paris há 34 anos. A primeira foi um evento político traumático que aconteceu em sua adolescência: o ultradireitista Jean-Marie Le Pen derrotou o socialista Lionel Jospin e foi para o segundo turno das eleições presidenciais na França. Zucman se juntou às manifestações de protesto e, desde então, diz, seu pensamento se concentrou em como evitar que o desastre se repetisse. Começou a compreender que a crença de que a globalização e a justiça são incompatíveis joga os cidadãos nos braços de líderes ultranacionalistas e xenófobos.

A segunda foi o colapso do Lehman Brothers em 2008. Recém-formado em Economia pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS), em Paris, onde foi aluno de Thomas Piketty, Zucman começou seu primeiro emprego na segunda-feira posterior à queda do gigante. Tinha de contar aos clientes de uma firma de investimentos o que estava acontecendo na economia global. Algo que ninguém sabia. Cético em relação às teorias dominantes, incapazes de explicar o que estava acontecendo lá fora, seu trabalho o levou a estudar os enormes fluxos de dinheiro das grandes economias para os pequenos paraísos fiscais. Descobriu um mundo oculto, o da extrema riqueza e sua relação com a desigualdade.

Hoje Zucman é professor em Berkeley. Suas pesquisas sobre a desigualdade com Emmanuel Saez, também francês e colega na universidade californiana, inspirou as propostas da nova esquerda norte-americana, personificada por Bernie Sanders e Elizabeth Warren, que não venceram as primárias democratas, mas aproximaram o centro de gravidade do debate do lugar onde, segundo as pesquisas, está situada a opinião pública. O último livro de Zucman e Saez, The Triumph of Injustice (O triunfo da injustiça, ainda sem tradução em português), já é um título fundamental para compreender as sociedades formadas pela revolução conservadora dos anos oitenta. Se o trabalho de Piketty, Saez e Zucman é entendido como uma obra coletiva, The Triumph of Injustice é um novo passo. Depois de definir o efeito da extrema concentração da riqueza nas desigualdades globais, eles propõem agora uma solução: a volta a um sistema tributário progressivo como o que existia nos Estados Unidos até os anos oitenta, mas mais robusto e adaptado ao século XXI.

Zucman é o mais jovem da dupla (ou do trio, se incluirmos Piketty) e é quem assumiu o papel de vendedor. O encarregado de transcender a academia e se sujar nos debates públicos e nos jardins do Twitter. As decisões sobre impostos são as mais importantes em uma sociedade democrática, argumenta ele, pois dão forma a todo o resto. Mas o dramático declínio da progressividade fiscal foi um processo opaco. Pela primeira vez na história moderna, demonstram, os rendimentos da riqueza são menos tributados do que os rendimentos do trabalho: os norte-americanos mais ricos pagam menos impostos do que um professor primário.

PERGUNTA. Como se chegou até aqui?

RESPOSTA. Um fator é a concorrência fiscal: os países tentam atrair investimento, capital, fábricas, e reduzem a alíquota dos impostos sobre as empresas um atrás do outro. Outro fator é o auge da evasão e da elisão fiscal, que se deve ao boom da indústria que ajuda os ricos e as empresas multinacionais a eludir e às vezes evadir impostos. E o que quero enfatizar é que nem a concorrência fiscal nem a elisão fiscal são leis naturais. São opções políticas. Na UE, por exemplo, avançamos muito em termos de harmonização de políticas em muitas áreas, como o comércio ou a moeda comum. Poderíamos ter optado por fazer o mesmo com os impostos.

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P. De onde vem a resistência à mudança?

R. Existem pessoas que realmente acreditam que alíquotas de impostos mais baixas para os ricos e para o capital são boas. Assim os ricos poupam mais, criam mais negócios e isso beneficiará o resto. Isso é conhecido como teoria do gotejamento ou do efeito derrame. Como todas as teorias econômicas, tem algo de plausibilidade. Mas é preciso estudar os dados empíricos para avaliar se são corretas. E os dados não corroboram essas teorias. Outro aspecto é que existe algum controle da política por interesses privados. A concentração da riqueza foi acompanhada por um crescente poder dos muito ricos para influenciar as decisões políticas. É outra das razões pelas quais essas políticas fiscais persistem.

P. E persistirão?

R. Podemos já estar no início de uma nova etapa. Essas políticas de baixa tributação dos ricos vêm sendo aplicadas desde a década de oitenta e, embora pudessem ser defendidas a priori em um plano teórico, muitos anos se passaram e podemos observar o que aconteceu. A desigualdade cresceu muito, mas não é que a renda de todos cresceu e a dos ricos ainda mais. Para metade da população, a classe trabalhadora, houve quase um crescimento zero em 40 anos, enquanto na renda dos mais ricos houve um aumento enorme. Agora que esses dados estão claros, que quatro décadas se passaram e não vemos que essas teorias do gotejamento funcionaram como estava previsto, é hora de compreender que as coisas têm de mudar.

P. Os dados e as ferramentas estão aí, vocês dizem no livro, mas é preciso mudar as mentalidades. Como se faz isso?

R. A resposta curta é: vejam o que aconteceu quando os EUA tinham um sistema tributário progressivo. Vejam o que aconteceu nas três décadas posteriores à II Guerra Mundial. Vejam o crescimento econômico, a inovação, a desigualdade. Desde os anos oitenta, a renda média por adulto cresceu a uma taxa média anual de 1,4%. Nos 30 anos anteriores, de 1950 a 1980, o crescimento médio foi de 2% ao ano. Portanto, houve mais crescimento. Mas, principalmente, esse crescimento foi distribuído de maneira mais equitativa. Todas as rendas cresceram 2% nesses anos. O crescimento nessas décadas foi como uma maré que sobe e levanta todos os navios. Desde 1980, essa média de 1,4% esconde que o crescimento da classe trabalhadora é de 0% e, por outro lado, há taxas de crescimento de 5% ou 6% para o 1% de cima. Não é uma evidência perfeita. Não podemos fazer uma experiência de controle aleatorizado em que você só muda os impostos e vê como a economia evolui. Mas é a melhor evidência que temos. A única. E à luz dessa evidência dizer que impostos baixos para os ricos são bons para o crescimento e para a classe trabalhadora, simplesmente não vale. Não há uma maneira razoável de ver os dados e chegar a essa conclusão.

P. Recentemente, houve um debate na Espanha por causa de alguns youtubers que defenderam publicamente que, como pagam muitos impostos, iriam para Andorra. O curioso é que parecem ter tido muito apoio entre seus seguidores jovens, e foram os mais velhos que destacaram a injustiça. Não é muito alentador para a mudança de mentalidade que vocês promovem...

R. Não acredito que seja algo geracional. Tem mais a ver, me parece, com o fato de haver gente que pensa que a única fonte de progresso é o indivíduo maximizando sua própria riqueza e os impostos são um obstáculo. Essa ideologia existe, mas não é tão difundida entre as gerações jovens. Pelo menos aqui nos EUA, nas pesquisas os jovens apoiam de maneira esmagadora as políticas fiscais progressivas. Mais preocupante para mim é que muita gente acredite que não há nada que possa ser feito; se esses youtubers forem para Andorra, o que se vai fazer? Por isso é muito importante explicar que no final as consequências são graves porque os impostos que esses muito ricos não pagam, ou todos nós acabamos pagando, ou o Governo tem de cortar na educação, na saúde ou na infraestrutura.

P. Ideias como um teto para a renda, que hoje parecem radicais, chegaram a existir de fato nos Estados Unidos durante décadas.

R. Franklin Roosevelt discursou no Congresso em 1942 e disse: “Vejam, acredito que nenhum norte-americano deveria ter uma renda, depois de pagar impostos, superior a 25.000 dólares”, o que equivale a um milhão de dólares atuais. Portanto, ele disse: “Proponho uma alíquota fiscal de 100% acima dos 25.000 dólares”. Os congressistas aceitaram uma taxa máxima de 93%, que não está muito longe dos 100%. Essa política quase confiscatória continuou em vigor até os anos sessenta. A ideia era que os rendimentos extremamente altos deveriam ser desencorajados. Que a concentração extrema de riqueza é corrosiva para a sociedade porque significa uma concentração extrema de poder, e isso é um perigo para a democracia. Este é um ponto de vista antigo nos EUA, você o encontra até mesmo em James Madison, pai fundador e um herói para os conservadores.

P. Essa noção de que os impostos são antiamericanos é produto de uma espécie de amnésia coletiva?

R. Muita gente se esqueceu do que aconteceu antes de Reagan. O sistema tributário, durante anos, foi usado para gerar renda, mas também para regular as desigualdades. No livro, quisemos que os norte-americanos se reconectassem com sua própria história.

P. Vocês defendem que essa mudança para um sistema regressivo não foi exatamente uma escolha democrática informada, mas mais uma assimilação passiva por parte da sociedade.

R. Não reflete a vontade dos eleitores. Isso se vê claramente nas pesquisas. Durante as primárias democratas, Bernie Sanders propôs um imposto para os que têm mais de 32 milhões de dólares e Elizabeth Warren para os que têm mais de 55 milhões de dólares. Houve muitas pesquisas sobre como as pessoas se sentiam em relação a essa ideia de um imposto sobre a riqueza e mostraram que a apoiam de maneira esmagadora. Cerca de 70%, inclusive 50% dos republicanos. Essa desconexão entre a vontade do eleitorado e o tipo de política fiscal implementada desde a década de oitenta é impressionante.

P. Mas venceu o candidato com uma proposta fiscal mais continuísta.

R. O Partido Democrata se aproximou de seus eleitores, adotou um programa tributário mais progressivo, embora não tão ambicioso quanto o que havia antes dos anos oitenta. Biden está implementando um programa muito mais progressivo do que Obama há 10 anos ou Clinton nos anos noventa.

P. Não lhe chama atenção que nestas primeiras semanas de sua presidência, nas quais arrasou o legado de Trump, Biden nem sequer tenha se referido àquela que talvez tenha sido sua medida de maior calado, que é a grande redução de impostos para os ricos e as empresas?

R. Bem, tenha em mente que a política fiscal exige leis no Congresso, não pode ser feita com decretos. Mas haverá uma lei em algum momento.

P. Você vê nesta crise uma oportunidade para propor um sistema tributário mais justo?

R. Eu acredito que a crise é simplesmente ruim em si mesma. Não basta que haja uma crise para que a história e as políticas mudem. O que faz a história mudar é uma combinação de ideias bem pensadas e um contexto determinado em que essas ideias possam prevalecer. Mas as crises não são suficientes por si mesmas. Para que as coisas mudem, o trabalho intelectual e a política são mais importantes. E acredito que há motivos para esperança.

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