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Jeff Bezos, o homem que mudou o mercado e decidiu sair de cena aos 57 anos

Criador da Amazon deixará neste ano o cargo de executivo-chefe em uma empresa que bate recordes e acumula polêmicas por seu agressivo modelo de negócio

O executivo-chefe da Amazon, Jeff Bezos, durante um evento em Istambul, em 2019.
O executivo-chefe da Amazon, Jeff Bezos, durante um evento em Istambul, em 2019.Elif Ozturk/Anadolu Agency/ Getty Images (EL PAÍS)
Miguel Ángel García Vega

Imagine um bloco de uma tonelada de mármore de Carrara suspenso no ar a uma grande altura. Imagine que, livre de amarras, despenca sobre o centro de um lago. Imagine as ondas que gera em direção às margens. Este foi o choque no mundo da tecnologia (e fora dele) com a notícia, na terça-feira passada, de que Jeff Bezos (Novo México, EUA, 57 anos) deixará dentro de alguns meses de ser o executivo-chefe da Amazon, embora continue como presidente executivo. Não havia rumores sobre isso na companhia de Seattle. As águas estavam plácidas.

O homem que em duas longas décadas construiu um gigante com um valor em Bolsa de 1,7 trilhão de dólares (9,1 trilhões de reais) mudou para sempre o comércio eletrônico, desenvolveu o sistema logístico mais sofisticado que a humanidade já conheceu, acumulou em seus bolsos 188 bilhões de dólares (um trilhão de reais, fortuna só superada pela de Elon Musk, fundador da Tesla), expandiu até o céu o negócio da computação em nuvem; o homem que, no imaginário tecnológico, compartilha mesa no Valhalla com Mark Zuckerberg (Facebook), Tim Cook (Apple) e Bill Gates (Microsoft) —esse homem agora retrocedia até à margem e contemplava as vibrações na superfície da água.

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Tudo indicava que seria um dia tranquilo. As casas de análises prognosticavam em peso uma sucessão de recordes na apresentação do balanço trimestral da Amazon. Assim foi. O The New York Times qualificou os números como um “blockbuster financeiro”. O faturamento alcançou a marca de 125,6 bilhões de dólares (674,6 bilhões de reais) entre outubro e dezembro, enquanto os lucros (7,2 bilhões de dólares; 38,7 bilhões de reais) eram mais que o dobro do que no ano anterior. E pela primeira vez a empresa superava os 100 bilhões (537 bilhões de reais) em faturamento num só trimestre. O anual? Disparou para 386 bilhões (dois trilhões de reais). Ou 38% a mais. Mas Bezos decidiu pedir demissão. “A Amazon é o que é graças à invenção”, disse. “Se você fizer direito, depois de alguns anos essa novidade se torna algo habitual. As pessoas bocejam. Esse bocejo é o grande cumprimento que um inventor pode receber. Quando você analisa nossos resultados financeiros, o que realmente vê são os lucros acumulados pela invenção em longo prazo.” Mas Bezos decidiu pedir demissão.

Seu substituto é sua sombra desde os anos 2000. Andy Jassy, 53 anos, formado na Escola de Negócios de Harvard, amigo de Bezos, um executivo que entrou na companhia em 1997 e que fez crescer de forma inimaginável o negócio na nuvem, o Amazon Web Services (AWS). No ano passado, esta divisão gerou 45 bilhões de dólares (241,6 bilhões de reais), 30% mais que no exercício anterior. “Você quer reinventar quando está saudável, quer reinventar o todo tempo”, disse Jassy em um evento na empresa, em dezembro. “Você tem que ser implacável e tenaz sobre a verdade. Tem que saber o que funciona e o que não funciona.” E citou como exemplo a decisão da Amazon de canibalizar seu próprio negócio de aluguel de DVDs para impulsionar o streaming. Além disso, Jassy era a grande opção depois que Jeff Wilke, responsável pelo imenso mercado de consumo, se aposentou no começo do ano. Porque representava uma fissura. Os gastos operacionais dispararam 42%, devido ao aumento dos custos de envio. Mas Bezos decidiu pedir demissão.

Aposta espacial

Há algo além de tecnologia e números. A exposição social causada por seu divórcio com a escritora MacKenzie Scott aumentou o desejo de não ser a primeira onda que a água gera quando o mármore cai. E se centrar no que o apaixona: o espaço. Aquilo que existe entre as estrelas. Destinou um bilhão de dólares por ano à Blue Origin, uma empresa criada em 2000 que pretende levar pessoas e mercadorias para fora do planeta, cobrando por isso. E, também, o espaço que há entre as palavras. Em 2013 adquiriu o The Washington Post e o salvou da decadência.

Jeff Bezos participa de um Congresso sobre o espaço no Colorado.
Jeff Bezos participa de um Congresso sobre o espaço no Colorado.Isaiah Downing (Reuters)

O pecado original parece não existir no Jardim das Delícias da Amazon. Mas existe. É alvo de várias investigações por suposta posição monopolista na Europa e Estados Unidos. David Cicilline, presidente da subcomissão antimonopólio da Comissão Judicial da Câmara de Representantes (deputados) dos EUA, advertiu: “Estas empresas [tecnológicas], tal como existem hoje, desfrutam de um poder monopolístico”. E acrescentou: “Algumas precisam ser divididas, todas precisam ser reguladas adequadamente e ser responsáveis por sua gestão. Isto tem que acabar”.

A demissão de Bezos busca também reduzir essa tensão. Entretanto, o sentimento de dano é profundo. A companhia é um risco? Podemos ter Amazon Prime, mas não democracia? Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro de Finanças grego, reflete: “Houve um tempo em que costumávamos nos preocupar com o fato de as empresas monopolísticas serem uma afronta à competitividade dos mercados e, indiretamente, uma ameaça à democracia”. Na opinião dele, “com empresas como a Amazon, esses medos parecem tímidos e deslocados. A Amazon e demais grandes empresas tecnológicas não são unicamente um monopólio. Estas companhias de plataforma não são donas apenas dos produtos que compramos e das lojas onde os adquirimos, mas também das ruas e calçadas, dos bancos onde nos sentamos para descansar, do ar que respiramos e inclusive das palavras que utilizamos ou dos pensamentos que temos. Não pode haver democracia em um mundo assim”.

A empresa norte-americana —que não quis dar novas informações para a elaboração desta reportagem e limitou-se a citar notas oficiais e o depoimento de Jeff Bezos ao Comitê de Justiça do Congresso dos Estados Unidos— defende-se apresentando números que justificam que seu “poder” é limitado. Em seu depoimento de 29 de julho de 2020 à comissão que investiga a empresa por suposto monopólio, Bezos alegou que a Amazon controla menos de 1% dos 25 trilhões de dólares (134,2 trilhões de reais) atribuídos ao mercado varejista no mundo, e menos de 4% do norte-americano. A estratégia é argumentar que são apenas um player a mais dentro do comércio eletrônico.

Entretanto, fica difícil acreditar que ela representa a solidão de um número primo. Porque inclui, também, The Washington Post, Blue Origin, AWS, Amazon Go (alimentação), Amazon Fresh (produtos frescos), Ring (serviços de vigilância), Amazon Prime (entretenimento), Amazon Explore (uma proposta semelhante ao Zoom), Whole Foods (alimentos de luxo) e produtos digitais como Kindle, Fire TV, Alexa e Echo. Os pequenos comércios sabem que é impossível competir contra seu sistema logístico. Esta é a primeira frase do livro do seu sucesso. Não é mais a “loja de tudo” —aquele lema de Bezos—: é “a empresa de tudo”. Nada lhe parece alheio. Os analistas da corretora de valores Cowen preveem, por exemplo, que seu negócio de publicidade aumentará de 26,1 bilhões de dólares neste ano para 85,2 bilhões em 2026. De 140,1 para 457,65 bilhões de reais. E no auge da pandemia, a empresa ajudou a distribuir suprimentos médicos, o que lhe valeu o elogio de um incondicional inimigo (sobretudo pela posição do Post): Donald Trump. Celso Otero, especialista da corretora mercantil Rende 4, avalia que “uma de suas virtudes mais poderosas é o poder de distribuição, ser capaz de entregar no mesmo dia”. Não há Estado que chegue a isso.

A Amazon às vezes é espelho, outras é janela. Reflete o mundo no qual já vivemos e revela o que poderia ser. Propõe perguntas de uma relevância abissal. O que significa trabalhar no século XXI? Poderia substituir uma boa parte de seus 1,2 milhão de funcionários por máquinas? Tim Bray conhece muito bem a mecânica da empresa. Foi seu vice-presidente. Esteve entre os pioneiros da Internet e é um “mestre” da engenharia. A elite da Amazon. Mas também foi o principal alto executivo a ter assinado uma carta em que pedia à empresa que encarasse com maior firmeza a emergência climática, e o único diretor a se queixar das condições de trabalho dos empregados dos armazéns em plena covid-19 (em outubro passado, cerca de 20.000 trabalhadores da empresa nos Estados Unidos, segundo o The Guardian, haviam sido infectados). Após cinco anos e cinco meses na empresa, pediu demissão em 1º de maio do ano passado. Não revela ressentimento, só análise. “A Amazon tem sido muito eficaz na detecção de oportunidades em múltiplos setores de negócio e em expandir-se com sucesso”, salienta Bray. “Entretanto, gera sérias preocupações de monopólio porque as empresas podem se subvencionar mutuamente, criando uma concorrência desleal. Embora não seja um problema que se limite à Amazon. Os produtos e serviços oferecidos por Apple, Facebook, Google, Microsoft e a própria Amazon deveriam provir de cem empresas, não de cinco.”

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Disputa com a UE

Mas a pressão aumenta. A Comissão Europeia tem duas investigações abertas. A primeira acusa a Amazon de aproveitar em benefício próprio os dados dos milhões de varejistas que vendem em sua plataforma. A outra questiona como é escolhido o ganhador do Buy Box, o quadro de aquisições que permite incluir produtos de um varejista diretamente para o carrinho de compra. Entrar aí pode multiplicar o faturamento diário em 500%. Enquanto isso, em Washington, a desconfiança democrata vai crescendo. “Deixe-me terminar”, disparou Bezos no seu comparecimento de julho, “dizendo que a Amazon deveria ser escrutinada. Todas as grandes instituições deveriam ser escrutinadas, sejam empresas, órgãos governamentais ou ONGs. Nossa responsabilidade é assegurar que passaremos por esse escrutínio com sucesso.”

Poucos duvidam de que cruzará a ponte. Os dados estão viciados, e os jogadores atiram com os dedos cruzados? “Não existem lugares mais infiltrados pelo dinheiro das grandes corporações tecnológicas norte-americanas que Washington e Bruxelas”, critica Renata Ávila, advogada, ativista tecnológica e parte da equipe jurídica que defende Julian Assange, fundador do WikiLeaks. “É muito fácil cumprir as regras se é você quem as dita, as faz sob medida e as constrói de forma que não possa haver ninguém exceto você. Esse é o problema que temos. Líderes eleitos democraticamente, mas neutralizados pela influência dos lobbies ou atomizados porque as regras os deixam de mãos atadas”, acrescenta.

Esta é a Amazon do século XXI: a que põe tudo a um clique. A que põe tudo de pernas para o ar? Talvez sinta falta de outros tempos. Até 2016, tinha um lucro mínimo, inclusive com alguns trimestres de prejuízo, como recorda José García Montalvo, catedrático de Economia da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. “Sua história foi a da busca contínua por um negócio que tivesse uma rentabilidade elevada, que não era dada nem pelos livros nem pelo comércio eletrônico em geral.”

Novos nichos

Tudo mudou com a diversificação empreendida em 2018 e pelo crescimento do AWS. Para García Montalvo, “é possível que com o tamanho atual tenha se tornado um dinossauro operando na zona de rendimentos decrescentes conforme a escala no negócio do e-commerce. Por isso persegue novas fórmulas: pensemos na assinatura Prime [150 milhões de assinantes], ou outras divisões que crescem, como a publicidade”. Seu algoritmo é de uma precisão inimaginável há alguns anos. “O problema”, observa, “é que a rentabilidade do comércio eletrônico é tão baixa, e os novos algoritmos dos concorrentes são tão potentes, que a monetização não gera grandes lucros, apesar de gerar enorme faturamento”.

Funcionário escaneia um pacote num armazém da Amazon em Kegworth, na Inglaterra.
Funcionário escaneia um pacote num armazém da Amazon em Kegworth, na Inglaterra.Chris Ratcliffe/Bloomberg (Bloomberg)

Talvez Bezos (amante do cinema) pense na voz em off do filme Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-Wai: “Ele recorda essa época passada como se olhasse através de um vidro coberto de pó; o passado é algo que pode ver, mas não tocar. E tudo que ele olha está impreciso e confuso”. O presente é um vidro cristalino. A riqueza de Bezos (possui 10,6% da empresa) é tamanha que ele poderia dar a cada um dos seus milhão e tanto de empregados um bônus de 105.000 dólares (564.000 reais) e continuar tão rico quanto era antes da pandemia. Embora Casper Gelderblom, membro da Internacional Progressista, observe que “o verdadeiro problema não é Bezos, é a concentração de poder econômico nas mãos de alguns poucos à custa da maioria”.

Além disso, em 30 de setembro de 2020 a Amazon tinha um caixa de 35,5 bilhões de dólares (190,7 bilhões de reais). São as fronteiras de uma “empresa-Estado”. Amazonlândia. Renata Ávila cunha a expressão “brutalismo-tecnológico”. A ignição de uma revolta social contra os colossos digitais? Angus S. Deaton, prêmio Nobel de Economia em 2015, vaticina: “Não prevejo nada do estilo, mas estou certo de que haverá mudanças de um tipo ou de outro”.

A Amazon se protege da hostilidade da semântica. “Todas as grandes organizações atraem a atenção dos reguladores, e agradecemos por esse escrutínio. Mas as grandes empresas não são dominantes por definição, e a suposição de que o sucesso só pode ser o resultado de um comportamento anticompetitivo é simplesmente errônea”, argumenta em um post do seu blog. E a empresa envia por email uma cartilha com cifras impolutas. No ano passado, investiu na Europa mais de 2,2 bilhões de euros (14,2 bilhões de reais) em logística, ferramentas, serviços, programas e trabalhadores para respaldar seus parceiros nas vendas. Há mais de 150.000 negócios europeus que vendem através de suas lojas, gerando dezenas de bilhões de euros em faturamento anual e criando centenas de milhares de postos de trabalho (5.000 na Espanha, no ano passado). Este é o seu “editorial”.

A empresa lançou os dados sobre o feltro. Eles giram. Espera um seis duplo. Sairá? Diversos estudos publicados na década de 2000 descobriram que raramente as empresas com grandes lucros permanecem mais de uma década em seu posto de liderança. A inovação nunca se detém, e logo elas são substituídas por outras. Conseguirá a Amazon construir um modelo que resista à concorrência? “A Amazon enfrentará riscos trabalhistas”, prevê Jay Baer, fundador da consultoria Convence & Convert. “Porque, para continuar mantendo seu crescimento, precisa atrair e reter tantas pessoas que isso é um problema em si mesmo. E a verdade é que as condições em seus armazéns são tudo menos ideais.” Mas há olhares diferentes, como a do tecnólogo Enrique Dans: “Os que eu visitei estão ótimos e as pessoas não são exploradas”, defende.

A “empresa de tudo” abriu, especialmente nos Estados Unidos, suas instalações em zonas rurais, fora das grandes urbes ou no “cinturão da ferrugem” (cidades perdedoras na globalização). E, para muitos jovens, ter hoje um “bom emprego” significa ter “esse” tipo de emprego. Será que a garotada assumiu que esses são os seus limites vitais? Em dezembro, um artigo da Bloomberg, intitulado “Amazon transformou um armazém de classe média em um ‘McJob’”, oferecia sua narrativa. “O objetivo da Amazon é convencer os possíveis candidatos de que não existe lugar melhor para trabalhar. A realidade é menos otimista. Muitos funcionários dos armazéns [norte-americanos] sofrem para pagar suas contas, e mais de 4.000 empregados têm que recorrer a cupons de alimentos em nove Estados”. Mas chegam mudanças. Cerca de 6.000 operários em Bessemer (Alabama) querem se sindicalizar, numa organização chamada BAmazon Union. Seria a primeira vez na história da companhia. “Por enquanto, não faremos comentários”, antecipa Chelsea Connor, seu chefe de comunicação. Mas é uma revolução adiada por 26 anos.

Talvez Renata Ávila se referisse a isso como “brutalismo-tecnológico”. Levantar a mão. Recuperar a magnitude do homem. A linha da privacidade, por exemplo, se mostra translúcida quando vista contra a luz. O manejo dos dados é um barco que faz água, e o capitão é o primeiro a abandoná-lo. Richard Stallman, uma lenda (criou o sistema operacional GNU em 1983 e desenvolveu o software livre) comenta. “Suspeito que a Amazon tenha aproveitado a pandemia porque as pessoas compram mais à distância. Vender mais, por si só, não é ruim, mas comprar online com os métodos atuais é um erro, porque exige se identificar, e então a loja fareja você. O rastreamento das atividades das pessoas é uma ameaça à liberdade.”

O terremoto. The Crack-Up. A fratura. O título que F. Scott Fitzgerald deu a um volume de ensaios que cartografam os anos vinte do século passado; nele se lê: “Na autêntica noite escura da alma são sempre três da madrugada”. A Amazon deveria encomendar esse livro. Porque muitos propõem dividir a companhia e separar o AWS. “Romper a Amazon ou o Facebook [como se fez com a AT&T nos anos oitenta] é acima de tudo uma ameaça de dissuasão nuclear, e é improvável que ocorra tão cedo”, prevê Thomas Husson, analista principal da consultoria Forrester. Só aplicar completamente a nova regulação europeia levaria dois anos. E a Amazon transferirá para as pequenas e médias empresas, no caso espanhol, a taxa digital de 3% que o Governo aprovou em 16 de janeiro. Adeus à fissura. Já Giles Alston, sócio da Oxford Analytica, justifica: “Talvez a principal razão para não dividi-la seja a importância do AWS. Existe uma intensa concorrência no setor do armazenamento na nuvem (Amazon, Google, Microsoft, HP Enterprise, Alibaba), e todas representaram um papel crucial durante a pandemia, permitindo que o Zoom ou a Netflix crescessem com rapidez e atendendo à demanda de seus clientes”.

Guerra tecnológica

Também parece improvável que a Administração Biden queira debilitar a Amazon frente ao crescimento chinês do Alibaba. Na opinião de Jacques-Aurélien Marcireau, gestor do fundo Edmond do Rothschild Fund Big Data, “nenhuma grande empresa tecnológica está preocupada, já que ainda existe espaço para influir na redação final da proposta das leis antimonopólio”.

Essa frase resume o que os analistas chamam de “o sentimento do mercado”. Um paradoxo. O problema da Amazon reside em seus efeitos secundários. Carl Benedikt Frey é pesquisador na Universidade de Oxford e autor de The Technology Trap (“a armadilha tecnológica”), um livro essencial para entender as mudanças que algumas empresas podem causar no mercado de trabalho. “A rápida expansão dos gigantes da tecnologia provavelmente será uma boa notícia para a produtividade, a menos em curto prazo. Por exemplo, permitiu que os consumidores tenham acesso a muitos dos bens que necessitam enquanto estão em suas casas”, afirma. “A preocupação é que a covid-19 solidifique a posição no mercado de algumas das grandes companhias, o que também aumenta sua influência política. Isto poderia criar barreiras à entrada de empresas menores, sufocando o tipo de concorrência e inovação que leva ao crescimento em longo prazo”, acrescenta.

A Amazonlândia ainda é uma direção, impulsionada pelas infinitas possibilidades da tecnologia, do poder e da riqueza extrema, mas depende da sociedade decidir que este seja o seu destino. Reescrevendo Charles Dickens: pode ser a melhor companhia do mundo, pode ser a pior companhia do mundo. A responsabilidade é um pacote que a sociedade deve aceitar ou rechaçar. Tanto faz se Bezos será ou não o executivo-chefe.

Uma escada para o céu

Em inglês, apocalypse significa revelation. A epifania de Jeff Bezos foi se centrar no cliente e não no acionista. Em meados de 1995, estava com sua esposa (MacKenzie Scott) empacotando obsessivamente livros de bolso na garagem da sua casa. Hoje, 26 anos depois, é, junto com Elon Musk (fundador da Tesla), o principal magnata do século XXI. E até o momento da sua demissão como executivo-chefe da companhia, no começo do segundo semestre, administrando-a de uma forma muito especial. “Estão proibidas as apresentações em PowerPoint, e os empregados devem propor suas ideias em breves notas por escrito”, diz Thomas Husson, analista principal da consultoria Forrester. Com sua renúncia como executivo-chefe, abandona o dia a dia. Porque o importante para Bezos são as estrelas. Esses cânticos que chegam de uma Terra longínqua. Sua infância coincidiu com a idade de ouro do Programa Apolo. E, embora fosse jovem demais para ver as primeiras alunissagens, a infância é o destino do homem. Giles Alston, especialista da consultoria Oxford Analytica, encontrou o fundador da Amazon em 1993 num leilão de objetos espaciais organizado pela casa Sotheby’s.

—Fui com a esperança de comprar algo, no máximo por uns duzentos dólares. Mas os preços dispararam, e nós dois fomos embora de mãos vazias. Os arremates eram exorbitantes!—, exclama.

Entretanto, a memória mistura a perseverança e o desejo, e em 2000 Bezos fundou a Blue Origin, seu negócio espacial. Neste sonho, demonstra a mesma obsessão que com a Amazon. Estudou informática e engenharia e se diverte resolvendo problemas que outros imaginam serem insolúveis. Tem mais alma de engenheiro que de empresário. Ultimamente, trabalha com a Lockheed Martin e a Northrop Grumman para construir o veículo lunar que transportará a próxima tripulação da NASA a caminhar sobre a Lua. Um astro-empreendedor. “Suspeito que ele será, e certamente está decidido a ser, um dos primeiros cidadãos privados a se lançarem ao espaço”, escreve seu biógrafo, Walter Isaacson. Como seu ídolo, o capitão Jean-Luc Picard, da série Star Trek, imagina “o espaço, a fronteira final!”. Ultrapassar o céu que nos protege. “Se o que alguém está construindo for um veículo voador, não pode ser mesquinho no orçamento”, defendeu Bezos.

Isto acontece no espaço, mas na Terra os versos soam diferentes. Bezos doou 10 bilhões de dólares para criar o Bezos Earth Fund, que ajudará grupos que lutam contra a emergência climática.

A filantropia é uma redenção muito norte-americana para lavar os pecados das mãos. “Porque quando os megabilionários decidem devolver suas fortunas à sociedade que as possibilitou, não as doam ao Estado (através de uma alíquota tributária de 90%, como propõe o economista Thomas Piketty), e sim a fundações criadas por estas grandes empresas, como fez Warren Buffett com a Fundação Gates, que compete com as agências das Nações Unidas e os programas de cooperação dos Estados para resolver os problemas da África”, critica Carlos Martín, responsável pelo Gabinete Econômico da central sindical espanhola Centrais Operárias. A Amazon tem poeira de estrelas nos olhos.

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