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O algoritmo que procura padrões ocultos na maior base de dados de sonhos do mundo

Suas conclusões ajudam a compreender, em tempo real, como eventos globais como a pandemia podem afetar a saúde mental da sociedade

sonho
Enrique Alpañés

“Estou em uma mansão, provavelmente um castelo. E há um demônio. Degola as pessoas somente com um estalar de dedos. De modo que subo na minha bicicleta, fujo e chego em meu bairro. Eu me refugio na creche em que faça estágio e começo a cantar uma canção com meus alunos. Depois chega um voluntário, se inclina e me beija. Não me lembro de seu rosto, mas parece que o conheço. Sinto uma enorme atração física por ele e espero que seja mútua. Então volto a estar com as crianças e estamos correndo, fugindo de outras crianças que são o diabo. O diabo parece vindo dos tempos de Bach. Perdi uma de minhas crianças”.

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Passengers wearing face masks to prevent the spread of coronavirus, walk along a tunnel in a metro station in Barcelona, Spain, Wednesday, April 15, 2020. Spain has eased this week the conditions of Europe's strictest lockdown, allowing manufacturing, construction and other nonessential activity in an attempt to cushion the economic impact of the pandemic. (AP Photo/Emilio Morenatti)
Um mundo de ansiedade, medo e estresse

A análise desse sonho, registrado no site Dreambank.net, pode nos dizer muito sobre sua autora. Mas se for estudado com os outros 38.000 sonhos armazenados nessa base de dados, a maior do mundo, pode nos dizer um pouquinho sobre a humanidade. Foi isso o que fez um grupo de pesquisadores do Nokia Bell Labs. “Os dados estão há anos lá”, diz Luca Aiello, diretor do projeto, em conversa por telefone, “mas a tecnologia para analisá-los, não. Até agora”.

Aiello e sua equipe, composta por pesquisadores das universidades de Cambridge e Roma Tre, há anos pesquisam a fronteira entre o social e o informático. Aplicam a inteligência artificial à leitura de textos, tentando desprender destes as condições psicológicas de seus autores. Por isso se fixaram no mundo onírico. Por isso construíram um pegador de sonhos virtual, um algoritmo capaz de processar os textos de centenas de sonhadores anônimos, identificando automaticamente neles personagens, interações e emoções. “São os elementos mais importantes de acordo com o sistema de Hall e Van de Castle, em que nos baseamos”, diz Aiello. Dessa forma, é possível determinar se uma pessoa sofre de ansiedade e depressão e se há padrões que se repetem em determinados grupos sociais. Até mesmo, diz o especialista em informática, compreender em tempo real como eventos globais como guerras, desastres naturais e a atual pandemia podem estar afetando a saúde mental da sociedade.

O estudo, publicado na revista científica Royal Society Open Science, concluiu que, em geral, as mulheres têm sonhos mais otimistas e amistosos. Os sonhos dos homens, por outro lado, costumam ser mais agressivos e negativos. Isso é especialmente notado em veteranos de guerra, em cujos sonhos continua existindo maior presença masculina e mais violência mesmo anos depois de abandonar a frente de batalha. “Qualquer experiência importante que tivemos na vida pode deixar uma marca em nossos sonhos do futuro”, diz Aiello.

O estudo mostra outros dados curiosos. Um grupo de sonhadores deficientes visuais reportou em seus sonhos maior importância do olfato, mais personagens imaginários e maior presença feminina. “Talvez por serem sonhos antigos e naquela época costumassem ser mais auxiliados por mulheres”, diz Aiello. Também confirma extremos que não surpreenderiam ninguém, como que os adolescentes têm muitos sonhos de conteúdo sexual. Apesar de ser esperado, esses dados são importantes, pois respaldam a teoria de que o que sonhamos “não são símbolos sofisticados que ocultam significados desconhecidos, e sim um prolongamento de nosso dia a dia”.

Os cientistas há décadas se perguntam se as experiências que vivenciamos ao dormir são algo mais do que o eco neuronal de um cérebro em repouso. E se for assim, como podemos interpretá-las. E para que. Esse último extremo é claro para Aiello: “A relação entre sonhos e realidade não é unidirecional”, defende. “A vida não só impacta nos sonhos, como se escutarmos o que os sonhos nos dizem, também podemos mudar nossa vida”.

As técnicas de extração de dados e a inteligência artificial podem nos ajudar a fazê-lo. Até agora, a análise dos sonhos se baseava nos diários dos sonhadores e na interpretação dos especialistas, em um longo processo que pode ser útil no âmbito individual, mas impossível de ser feito em uma pesquisa global. A automatização desse processo está permitindo aos cientistas analisar o sonho em uma escala sem precedentes.

Mesmo estando em uma fase muito prematura e inicial, esses novos estudos sobre o sonho podem nos ajudar a entender como a sociedade reage a eventos globais. “Já se começou a pesquisar nesse sentido com o 11 de setembro”, diz Aiello, “com estudos que mostravam que o trauma, expressado através de pesadelos e sonhos violentos, não só respinga nos diretamente envolvidos como em todo os EUA”. Desde então a tecnologia avançou muito, permitindo ampliar a base de dados de estudos semelhantes. O do Nokia Bell Labs é o maior, mas não o único.

Um pedido para compartilhar os sonhos

A psicóloga Kelly Bulkeley, diretora do Sleep and Dream Database em Portland, EUA, fez uma pesquisa com 5.000 pessoas três semanas após a morte de George Floyd, no auge do movimento Black Lives Matters. Constatou um aumento nos sonhos sobre os protestos e a injustiça racial. “São instantâneos do medo, da tristeza e da confusão de nosso subconsciente”, afirmou o estudo.

Muito foi teorizado (e pouco se estudou) sobre o impacto que a pandemia e o confinamento tiveram em nossos sonhos. Um estudo da Universidade de Helsinki, que aplicou uma inteligência artificial sobre os sonhos de 800 pessoas, descobriu que essa experiência traumática homogeneizou os sonhos, na verdade pesadelos, de quem a sofreu. “Ficamos surpresos ao constatar como certos sonhos se repetiam entre indivíduos, refletindo o ambiente apocalíptico do confinamento pelo coronavírus”, disse sua autora, a doutora Anu-Katriina Pesonen. “Os resultados mostram que sonhar em circunstâncias extremas revela imagens visuais compartilhadas. Os sonhos podem indicar alguma forma de paisagem mental compartilhada entre indivíduos”.

Aiello não se mostra surpreso por esses estudos. Só lamenta que suas amostras sejam tão limitadas. “O problema não é a tecnologia, e sim os sonhos disponíveis para testá-la”, diz. Para encorajar a reverter essa situação, o Nokia Bell Labs tornou público seu algoritmo, que está disponível em código aberto para quem quiser usá-lo e adaptá-lo. “Existem muitos aplicativos de diários de sonhos, mas nenhum que os analise. Com isso poderiam fazê-lo desde que seja gratuito”, comenta o especialista em informática. E o diz com a esperança de que esses aplicativos animem as pessoas a publicar seus sonhos e a compartilhá-los com a comunidade científica. Desse modo, teriam uma nova base de dados grande o suficiente para levar as pesquisas um passo adiante.

“Entendo que as pessoas tenham medo por questões de privacidade, mas compartilhar os sonhos pode ser positivo para todos”, avisa. Sua experiência mostra a potencialidade dessa tecnologia, mas é o primeiro passo em uma maratona. “Por enquanto é uma inteligência artificial dirigida, mas no futuro poderia procurar autonomamente parâmetros e relações novas”, profetiza Aiello. Claro que para isso são necessários não milhares, mas milhões de registos oníricos. E isso, em si mesmo, é o maior dos sonhos.

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