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Mickey Mouse não se dá bem com distanciamento social

Disney atravessa um dos momentos mais delicados de sua história por sua aposta em cruzeiros e parques temáticos

Visitantes com máscaras na Disney Springs, em Orlando, que abriu parcialmente suas instalações.
Visitantes com máscaras na Disney Springs, em Orlando, que abriu parcialmente suas instalações.Stephen M. Dowell/TNS via ZUMA W / DPA (Europa Press)
Miguel Ángel García Vega

A Força já não está com Walt Disney. Evidentemente, o vírus foi destrutivo. A empresa de entretenimento fechou 14 parques temáticos (com 157 milhões de visitantes), cancelou seus quatro cruzeiros (com capacidade para 13.400 pessoas) e parou a construção de outros três (a um custo próximo a 1 bilhão de dólares (5 bilhões de reais) por embarcação), freou a edificação de uma segunda ilha privada (Eleuthera) nas Bahamas, parou 29 produções teatrais em quatro continentes, fechou 42.000 quartos de hotel e deteve a produção (seus roteiristas continuam escrevendo) de seus quatro estúdios de televisão que preparam 70 shows. É preciso tomar fôlego... A Força já não está com a Disney? Talvez parte tenha se diluído em 14 de dezembro de 2017. Bem antes do coronavírus e seu despertar.

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Nesse dia, a Disney anunciou a aquisição por 52,4 bilhões de dólares (282 bilhões de reais) dos estúdios 20th Century Fox. Mas seis meses depois surgiu a Comcast e forçou a empresa a pagar uma porcentagem que Bob Iger, seu presidente executivo e uma lenda na firma, nunca imaginou. Mais 34%. A Disney desembolsou 71,3 bilhões de dólares (384 bilhões de reais). Números que contrastam com os 4,1 bilhões de dólares (22 bilhões de reais) que pagou em 2012 pela produtora Lucasfilm, dona do multimilionário universo Star Wars. Desde então, ainda que a empresa tenha melhorado em várias áreas do negócio, esse número pesa em uma empresa que é a maior licenciamento de merchandising do planeta, com 51 bilhões de euros (305 bilhões de reais) de faturamento.

Mas como contrariar um executivo que quintuplicou o valor da ação em 14 anos, em 2019 teve 7 dos 10 maiores sucessos de bilheteria e lançou um serviço de streaming (Disney+) que desafia a Netflix e que alguns analistas acham que poderá gerar em cinco anos 30 bilhões de dólares (161 bilhões de reais). De fato, somente seis meses depois de sua apresentação já possui 54,4 milhões de assinantes. Quase o objetivo de 2024.

Mas a Covid-19 apareceu. Os números do primeiro trimestre mostram uma queda dos lucros de 1,4 bilhão de dólares (7,5 bilhões de reais); um colapso dos ganhos de 91% em relação ao ano anterior pelo fechamento de parques, cancelamentos de cruzeiros e produções de cinema e televisão, e a anulação da divisão (algo que não acontecia desde 1962) de 1,6 bilhão de dólares (8,6 bilhões de reais) em dividendos semestrais. Além de 120.000 pessoas – mais da metade em parques – com os empregos suspensos.

Visões contrapostas

John Hodulik, da UBS, afirma em uma nota que os “investidores estão se preparando para um segundo trimestre brutal”. Outros, por sua vez, olham o lado bom. Ivan Feinseth – broker da Tigress Financial – defende que o golpe de abril é “uma oportunidade de compra [de ações] a curto prazo”. Enquanto isso, Morgan Stanley mostra as “possibilidades [que tem] a distribuição de filmes”. Nisso o verão pode esquentar o negócio. “A Disney tem vários lançamentos importantes planejados para abrir os cinemas no final de julho e durante o restante do ano, o que deveria ajudar a proporcionar um ganho sólido ao estúdio”, reflete Shaw Robbins, especialista da revista focada na indústria do cinema Boxoffice Pro. Como adiantamento, em dezembro, Steven Spielberg estreará com 20th Century West Side Story (refilmagem de Amor Sublime Amor). Um contrapeso que ajudará a empresa a compensar que Bob Iger tenha dirigido o crescimento durante anos (em 2019 investiu 4,1 bilhões de dólares – 22 bilhões de reais) aos parques e alojamentos. Sem dúvida, os piores destinos em uma pandemia.

Apesar de tudo há, como em tantas outras atividades, essa perseguição da urgência por voltar à normalidade. Os parques temáticos em Orlando (Flórida), Magic Kingdom, Animal Kingdom, Hollywood Studios e Epcot planejam, de acordo com a EFE, abrir gradualmente em meados de julho. Um mês antes, também na Flórida, poderiam abrir o SeaWorld e o Busch Gardens. Ainda que a Administração norte-americana lance os dados e, talvez, apesar das medidas de segurança, jogue com vidas. “Tudo pode mudar se os contágios e as mortes começarem a subir novamente”, alerta Jim Nail, analista da consultora Forrester Research. E acrescenta: “Bob Chapek, novo executivo-chefe da Disney [Iger abandonou o cargo em 26 de fevereiro, mas continua como presidente], sugeriu que o parque possa operar a um nível menor de capacidade se sentir que favorece a saúde e a segurança de seus hóspedes e trabalhadores”.

Mas a Disneyland é rentável abaixo de 30% de sua capacidade? Essa é a porcentagem permitida pelo parque de Xangai, reaberto em 11 de maio. Parece difícil. Os visitantes deverão usar máscaras e manter a distância social com Mickey Mouse, Pluto e os outros personagens. Uma separação que também será inevitável nos números. “Não esperamos que os rendimentos voltem aos níveis anteriores [à pandemia] até o ano fiscal [fecha o exercício em setembro] de 2022”, prevê Bernie McTernan, da Rosenblatt Securities. E afirma: “É um problema à rentabilidade da empresa, mas também pode ser um catalizador pensando em examinar a estrutura de custos e limitar o impacto”.

É, entretanto, uma lógica muito norte-americana saber lidar com os ventos contrários. Se neste trimestre os parques permanecerem fechados por dois meses, significará – de acordo com a Goldman Sachs – 280 milhões de dólares (1,5 bilhão de reais) de perdas, concentradas principalmente nos espaços asiáticos. Mas algumas das 312 lojas nos Estados Unidos, Japão e China estão prontas para voltar a abrir e o estabelecimento online da empresa cresce em novos clientes. Evidentemente, ninguém duvida que a fantasia atravessa um momento ruim. “Todos os esportes ao vivo [o que afetará sua rede ESPN) permanecerão fechados em junho e a maioria das salas de projeção; a Disney, portanto, não terá rendimentos dos filmes”, calcula Laura Martin, analista da Needham. De fato, foi adiada a finalização de Viúva Negra da Marvel e Soul: Uma Aventura com Alma (Pixar). Mas antes do vírus a ação estava no maior nível da história, e o ser humano precisa do cinema, do ócio e do teatro. O próprio Banco Central Suíço, que gere 887 bilhões de dólares (4,8 trilhões de reais) em ativos, sabe disso. Durante o primeiro trimestre do ano – em plena crise – acumulou títulos da Apple, General Electric e Disney.

OS HERDEIROS CRITICAM AS ALTAS REMUNERAÇÕES DOS EXECUTIVOS

A Disney não é uma empresa como as outras. Pertence à essência norte-americana como os Pais Fundadores à criação dos valores do país. É Walt Disney. Mas também é Alva Edison, Henry Ford, Steve Jobs. A inovação e a liberdade de criar. O melhor – com suas esquinas escuras – de uma nação. E nessa obscuridade, os responsáveis da Disney recebem enormes salários. Bob Iger, presidente executivo, ganhou 65,6 milhões de dólares (353 milhões de reais) em 2018 e 47 milhões (253 milhões de reais) no ano passado. Seu último pacote de ganhos supera em mais de 900 vezes o salário médio (52.000 dólares [280.000 reais]) de um trabalhador da Disney. Enquanto isso, por culpa da crise, 120.000 assalariados estão com os empregos suspensos. Essa desigualdade representa um profundo risco de imagem em uma empresa que defende a essência de uma terra. “Não tenho nenhum papel na companhia”, publicou no Twitter Abigail Disney, cineasta, vencedora de um Emmy e neta do cofundador da empresa, Roy Disney. “Sou somente uma pessoa preocupada. Mas também sou herdeira. E levo esse nome comigo a todas as partes. E tenho uma consciência que faz com que me sinta mal quando vejo que são cometidos abusos com esse sobrenome”, denunciou há pouco tempo.

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