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Coronavírus impulsiona propostas de renda básica, que deixa de ser utopia

Pandemia leva diversos países, como o Brasil, a ensaiarem planos de transferências diretas para compensar a redução na renda dos seus cidadãos

Pessoas fazem fila para pegar refeição doada em Hong Kong.
Pessoas fazem fila para pegar refeição doada em Hong Kong.ANTHONY WALLACE (AFP)
Ignacio Fariza

Em seu ponto culminante, todas as crises parecem fadadas a mudar o mundo. A Grande Recessão de 2008 deveria ter sido a refundação do capitalismo. A da dívida soberana no sul da Europa, a que lançaria as bases de uma nova União Europeia mais solidária. E esta, a do coronavírus, “escreverá um novo mundo com outras regras”, conforme apontava na semana passada o ministro europeu de Mercado Interno, Thierry Breton. O mais provável é que, como nas duas ocasiões anteriores, esse axioma acabará sendo levado pelo vento, e a mudança de rumos não terá passado de palavras bem intencionadas.

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Evangelicals from the Ministry International of  Restoration church, pray at a drive-thru system, amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Manaus, Brazil April 5, 2020. REUTERS/Bruno Kelly
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Entretanto, longe dos discursos pomposos e fora dos grandes holofotes, algumas ideias até agora consideradas de nicho começam a se enraizar: a renda básica (universal ou não), uma espécie de garantia de renda ao cidadão pelo simples fato de sê-lo, ganhou mais adeptos nos últimos poucos dias do que em todos os anos anteriores, dando um salto exponencial no debate público e apresentando uma sólida candidatura no menu de possíveis soluções para sair do atoleiro econômico e social da pandemia. E, ainda mais importante, é algo que começa a se instalar no terreno dos fatos, com diferentes Governos adotando suas próprias versões desta ferramenta para combater uma recessão que já é, nas palavras da diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, “tão ruim ou pior que a de 2009”.

Os Estados Unidos, um país onde o debate sobre a renda básica estava limitado a âmbitos acadêmicos relativamente estanques e a propostas eleitorais minoritárias, como a do ex-candidato presidencial democrata Andrew Yang, deu um primeiro e decisivo passo nessa direção: dará a seus cidadãos 1.200 dólares (6.420 reais) de uma tacada só, uma quantia que se reduz gradualmente para quem ganha mais de 75.000 dólares ao ano e que só deixa fora aqueles que recebem 99.000 dólares ou mais. O objetivo, segundo a Casa Branca, é tratar de paliar a redução de renda e assegurar o essencial. “Os fundamentos são idênticos [ao que proponho]: é uma transferência direta a indivíduos e lares”, afirmou Yang à rádio pública NPR. “A grande diferença é que eu sugiro que seja para sempre, como um direito básico de cidadania para cobrir as necessidades básicas, e o pacote de estímulos foi concebido para durar só alguns meses.”

Paralelamente, o Congresso brasileiro acaba de aprovar um esquema de pagamentos —neste caso, muito mais distante da universalidade— de 600 reais durante um trimestre para 60 milhões de trabalhadores informais. E a Espanha prepara para os próximos dias o lançamento de uma renda mínima que, aparentemente, ficará em torno de 440 euros (2.540 reais) por mês, na mesma linha da ajuda aprovada na semana passada aos trabalhadores temporários que fiquem sem emprego por causa da desaceleração econômica decorrente da epidemia e do que propôs a Airef (autoridade fiscal espanhola) em meados do ano passado. O objetivo será, novamente, proteger os grupos mais vulneráveis. Em outros países europeus, como o Reino Unido, a “renda universal de emergência” também chegou com força ao Parlamento, mas ainda não convenceu o conservador e heterodoxo primeiro-ministro Boris Johnson.

Por que uma renda básica, e por que agora? Seus cada vez mais numerosos defensores veem nela uma ferramenta útil para conter a emergência social que levou milhões de pessoas a ficarem sem renda alguma da noite para o dia. E, acrescentam os paladinos da ideia, seria também uma medida positiva para reativar a demanda quando as quarentenas puderem ser suspensas.

Até agora, na Europa, a contingência foi tratada com ajudas por coletivos e, como na Itália, até com vouchers alimentares para buscar rebaixar a crescente tensão social no sul do país. Mas na América Latina e no resto do bloco emergente, onde a informalidade alcança cotas imensamente mais altas que nos países desenvolvidos, a gestão da crise está sendo e será muito mais complicada.

“Nestes países, que ainda estão em uma fase inicial da pandemia, a renda básica deve ser aplicada o mais rapidamente possível: você não tem como comprar sabão nem ter água limpa sem o dinheiro necessário para isso, e é mais simples transferi-lo diretamente às pessoas do que organizar um esquema complexo de subsídios”, aponta Guy Standing, professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres e autor do livro Basic Income: And How We Can Make It Happen (“renda básica: e como podemos fazê-la acontecer”).

Todos os esquemas desenhados ou adotados desde o início da pandemia estão, entretanto, pensados para desaparecer assim que a maré baixar, como destaca Philippe van Parijs, professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). “Têm um propósito útil e podem ser a melhor ferramenta disponível, mas são intrinsecamente temporários”, salienta aquele que é talvez o maior embaixador global do conceito.

“Muitos que a criticavam agora a defendem”

A renda básica não parou de se popularizar nos últimos anos, acompanhando o avanço da desigualdade e a redução do Estado de bem-estar social. Mas não é, nem de longe, uma ideia nova: começou a soar, embora em círculos muito reduzidos, no século XVIII, e em sua travessia conseguiu reunir ao seu redor economistas de orientações ideológicas tão diferentes quanto John Kenneth Galbraith, Milton Friedman e James Meade, entre outros. E cativou pensadores separados por dois séculos como Thomas Paine (1737-1809) e Bertrand Russell (1872-1970). Nunca, entretanto, esteve tão perto de virar realidade como hoje. “Acredito na utopia oportunista. As crises podem gerar oportunidades para grandes avanços e devemos aproveitar o impulso”, incentiva Van Parijs, coautor de Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy (“renda básica: uma proposta radical para uma sociedade livre e uma economia sã”).

A vertente universal da renda básica —a mais interessante, mas também a mais complexa pelos custos associados— está atraindo um interesse maior em um momento de indefinição econômica, como reconhece Louise Haagh, do departamento de Ciências Políticas da Universidade de York (Reino Unido). “Está ficando patente a falha de nosso sistema tanto para responder especificamente a esta crise como, de forma mais geral, para oferecer uma segurança econômica real”, observa por email. “É só uma peça do quebra-cabeça, mas ao menos seria uma tentativa séria de reconhecer os direitos e o status econômico de todos”. Também Standing vê uma mudança de padrão: “Muitos políticos, economistas e meios de comunicação, que no passado foram hostis à ideia, agora a defendem”.

O custo de uma renda básica permanente e não unicamente emergencial varia muito conforme o país. A renda mínima proposta na Espanha pelo hoje ministro da Segurança Social, José Luis Escrivá, quando estava à frente da Airef, custaria 3,5 bilhões de euros (18,7 bilhões de reais) se forem descontadas as superposições com outros programas sociais e reduziria a pobreza em 46% a 60%. Uma solução mais ambiciosa, como uma renda básica autenticamente universal e permanente de pouco mais 620 euros por mês por residente, representaria uma carga de quase 190 bilhões de euros anuais, aproximadamente 18% do PIB, conforme calculou em 2017 o serviço de estudos do BBVA. Para adotá-la, tanto em países europeus como emergentes, é preciso começar travando “um combate frontal contra a evasão e a concorrência fiscal [entre territórios] e repensar o objetivo da austeridade”, opina Haagh, presidente da Rede Global de Renda Básica (BEM, na sigla em inglês).

Na América Latina, uma região assolada pela desigualdade e a pobreza, e onde, portanto, seu sentido se multiplica, entregar a todos os lares o suficiente para que superem o limite de pobreza teria um custo para o erário equivalente a 4,7% do PIB, segundo um recente estudo da Cepal, o braço da ONU para o desenvolvimento econômico do subcontinente. “Não custaria tanto e daria segurança econômica em um momento de enorme incerteza”, salienta a secretária-executiva do organismo, Alicia Bárcena. “Esta crise convida a repensar a economia, a globalização e o capitalismo. São necessárias soluções inovadoras, e a renda básica é uma delas.” A utopia está mais perto do que nunca de virar realidade.

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