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A verdadeira história do jogo de futebol que envergonhou os nazistas

Pepe Gálvez e Guillem Escriche contam na HQ ‘A partida da morte’ a história real do jogo em que prisioneiros ucranianos derrotaram soldados alemães, recriada no filme ‘Fuga para a vitória’, que teve Pelé como ator

El partido de la muerte  comic
Ilustração do álbum em quadrinhos ‘A partida da morte’.Guillem Escriche

No álbum em quadrinhos El partido de la muerte (“A partida da morte)”, inédito no Brasil), o roteirista Pepe Gálvez e o desenhista Guillem Escriche descrevem uma história real de heroísmo frente à barbárie. Em 9 de agosto de 1942, em Kiev, disputou-se um jogo de futebol que fez murchar o sorriso hierático dos ocupantes nazistas. Dentro de campo eram 11 contra 11, mas a diferença de circunstâncias entre os dois times era enorme. A equipe local era formada por jogadores desnutridos, com profundas cicatrizes pela repressão, quase sem tempo de preparação e com o ódio de uma invasão genocida no seu cangote. Como diz uma das protagonistas da históra, eram “os restos de uma derrota”. Já a equipe visitante era um combinado preparado pela Luftwaffe com o único objetivo de vencer e humilhar o rival; queriam demonstrar que a raça ariana era superior também no terreno de jogo frente aos que considerava untermensch (sub-gente), por serem eslavos. Eram o time de futebol que representava a Operação Barbarossa, a descomunal ofensiva de Hitler contra a União Soviética. Uma frente de guerra que engasgou primeiro às portas de Moscou, e depois em Stalingrado, deixando milhões de mortes à sua passagem.

Essa perspectiva de um jogo disputado num tempo de tantas agruras é a base de uma graphic novel narrada em ritmo ágil, um roteiro bem documentado e um tratamento de cor, nas ilustrações e personagens, que reflete à perfeição aquele tempo. Gálvez e Escriche contam as desventuras desse grupo de jogadores que se reencontram depois da invasão nazista trabalhando em uma padaria. O dono os contratou para o ofício, esquivando dificuldades, com a intenção de voltar a montar um time de futebol com jogadores de dois conjuntos emblemáticos da cidade: Dínamo e Lokomotiv. O novo elenco assumiria o nome de FC Start (“Clube de Futebol Início”) e se tornaria uma equipe imbatível, exemplo de resistência coletiva, cujos jogadores entravam em campo cheios de dignidade, até a partida final contra o time nazista.

Dois quadrinhos de ‘A partida da morte’.
Dois quadrinhos de ‘A partida da morte’. Guillem Escriche

Gálvez e Escriche recuperam as vicissitudes daquele grupo e suas circunstâncias pela perspectiva da importância da memória histórica e da necessidade de não relativizar os horrores do passado. Para Gálvez, “os jogadores ucranianos eram um grupo de sobreviventes perante um desafio brutal”, que entraram no gramado motivados “pela reivindicação da vida”. E Escriche acrescenta: “Tínhamos a responsabilidade de sermos muito honestos com o que contaríamos. Em geral há duas versões desse jogo. Uma muito heroica, e outra que minimiza. Então, tínhamos a obrigação de ser sinceros, pois parte do nosso trabalho é nos posicionarmos, mas sem mentir nem alterar o ocorrido”.

La portada de la novela gráfica 'El partido de la muerte'
La portada de la novela gráfica 'El partido de la muerte'Guillem Escriche

No estádio do Zenit de Kiev, quem ganhou foi o FC Start —e muitos jogadores vieram a ser detidos, torturados e deportados para campos de concentração. Vários morreram antes que Kiev fosse liberada dos nazistas, em 6 de novembro de 1943. A façanha ecoou depois da guerra em livros, filmes e documentários. O cinema refletiu em diferentes visões esse duelo entre Davi e Golias. Houve relatos mais ou menos aproximados do que realmente passou, às vezes tratados pela exaltação patriótica, em outras vezes como referência difusa para contar uma história de resistência. O filme mais conhecido é Fuga para a vitória (1981), de John Houston, protagonizadopor Michael Caine, Sylvester Stallone e Max von Sydow, e com a participação especial de grandes referências do futebol, como Bobby Moore, Osvaldo Ardiles e Pelé. Entretanto, o argumento, a composição dos personagens e a localização do encontro final, em Paris, pouco têm a ver com a história original. Da documentação que consultaram, os autores consideram que a mais fidedigna é o livro Gagner à en mourir, de Pierre-Louis Basse, publicado na França em 2012.

El partido de la muerte é também um testemunho útil para não esquecer os desmandos do totalitarismo. O escritor soviético Boris Polevoi cobriu para o jornal Pravda o processo do Nuremberg contra os líderes nazistas depois da II Guerra Mundial. Suas anotações seriam publicadas 20 anos depois no livro Afinal de contas. Em sua narrativa, Polevoi descreve como outro autor russo, Alexei Tolstói, em um recesso do julgamento, se dirige a seus colegas da imprensa depois da projeção de gravações cinematográficas carregadas de horror, destruição e morte: “O fascismo é a quintessência da avareza, da baixeza, da abjeção e da covardia. Por que matar os feridos? Por que aniquilar milhares de pessoas pacíficas? Que racionalidade há nisso? Tudo para que alguém, Deus nos livre!, não fique sabendo que você não é um gigante, e sim, simplesmente, um psicopata medroso, e para que as pessoas não deixem de temer você...”. Essa covardia genocida foi derrotada nas quatro linhas por um grupo de futebolistas e amigos, “felizes dentro de campo”, como observa Mario Kempes no prólogo do livro, numa partida que confrontou a vida contra a morte.

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