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CRÍTICA | 'The Beatles: Get Back'
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

‘Get back’, o documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, é um acontecimento

Uma produção histórica, uma experiência imersiva em sua criatividade. Um período de 22 dias em que a banda entra meio perdida e acaba fazendo canções para um disco e meio

Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr, John Lennon
Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e John Lennon, em janeiro de 1969, durante as sessões de ‘Let it be’Linda McCartney (Linda McCartney / Apple Corps Ltd)
Ricardo de Querol

É conhecida a tendência de Peter Jackson ao excesso na metragem: sua aclamada trilogia O senhor dos anéis soma nove horas em sua versão comercial, e 11 na estendida. Agora, o diretor nos presenteia com The Beatles: Get back, que estreia nesta quinta-feira na plataforma Disney+, uma imersão de quase oito horas nas sessões de gravação de Let it be em janeiro de 1969, a partir das filmagens de 22 dias de trabalho dos Fab Four. Diz Jackson que pensava em um só filme de duas horas e meia, mas a pandemia lhe deu tempo de sobra para estudar, restaurar, editar e montar um material tão esmagador que desembocou em três capítulos de longa duração.

Os Beatles estão sob forte pressão, incomodados pelas câmeras que os observam sem descanso, indecisos sobre o rumo que devem tomar e, algo que não é tão explícito, próximos do final. E, entretanto, em apenas três semanas são capazes de criar do nada as canções do álbum Let it be e metade do seguinte e último disco, Abbey Road; ainda por cima, nos mostram todas as que foram deixadas de lado (uma pena pela rítmica e antirracista Commonwealth, entre outras), e algumas que acabariam em seus primeiros trabalhos solo (All things must pass, Jealous guy, Another day).

Get back é um acontecimento para a história da música popular, porque traz à luz uma quantidade enorme de material inédito dos Beatles, o mais relevante pelo menos desde Anthology, a trilogia lançada em 1995. E isso porque alcança todos os seus objetivos: mergulhar o espectador no estúdio de ensaio e gravação do grupo mais importante do século XX, observar o processo criativo da dupla mais fecunda produzida pelo pop. E mostrar ao mesmo tempo suas complexas relações pessoais: a camaradagem própria de uns garotos que estavam juntos desde a adolescência e haviam vivido algo extraordinário em apenas sete anos, mas nos quais já se entrevê o desgaste do sucesso e a tendência centrífuga que os levará a se separarem alguns meses depois.

Artesanato

É uma produção impecável e crua, em que apenas alguns subtítulos e um punhado de imagens de arquivo contextualizam o que os Beatles estão fazendo naquele momento e local. Para os melômanos, o gancho é observar o artesanato de cada canção: um traz uma melodia, a toca e a cantarola, porque não escreveu a letra, os outros ajudam a afiná-la ao longo de muitas sessões, até que ganha forma e acaba soando redonda, perfeita. Um dia, Lennon se atrasa, e McCartney começa a improvisar um riff enquanto canta, em uma mensagem ao colega ausente: “Volte para o seu lugar”. Assim nasce a canção que dá título ao filme. Para os fãs, o gancho é essa espécie de Big Brother com os Beatles, que permite observar como um voyeur um McCartney entusiasmado, que tenta se erigir como líder; um Lennon às vezes distante, outras sarcástico e divertido; um Harrison irritável, que se sente desprezado por seus companheiros em seu melhor momento criativo; um Ringo Starr que evita conflitos e está à vontade na sua discrição. Observa-se, e isso é novidade, que a química entre John e Paul funciona até o final: entendem-se, respeitam-se e complementam-se; isso coincide com o fato de George despontar como autor. E lá estão Yoko Ono como a intrusa onipresente (o filme evita apresentá-la como vilã), Linda McCartney com sua filha Heather, o tecladista Billy Preston como o quinto beatle desta etapa, o produtor George Martin e todo um exército de engenheiros, produtores, cinegrafistas, assessores e fotógrafos que pululam pelos estúdios.

Jackson trabalhou a partir de 60 horas de filmagens e 150 horas de som, um material guardado sob chave desde que foi registrado para o filme Let it be, de 1970. Montar tudo isso foi um esforço monumental, que obrigou inclusive à leitura labial para que tudo encaixasse; o resultado é deslumbrante em sua qualidade visual e sonora. Aquele primeiro filme dirigido por Michael Lindsay-Hogg, como o álbum homônimo, foi lançado depois que o quarteto se dissolveu. Por isso, é considerado a crônica do fim dos Beatles, mas na verdade este não foi seu último trabalho, e sim Abbey Road, gravado, já sem câmeras, meses depois.

Um pouco de contexto: em janeiro de 1969, já se passou um ano e meio desde a morte de Brian Epstein, o empresário que tinha cuidado deles; voltaram de um fracassado retiro espiritual na Índia; acabam de lançar o álbum branco (The Beatles), que marca sua volta à simplicidade do rock and roll depois da etapa psicodélica. Estão há três anos sem apresentações ao vivo, um período muito fértil, em que elevaram sua ambição artística. Ter simplificado seu som, em busca das essências, os leva a pensar em subir novamente aos palcos. Mais coisas estavam mudando: Lennon já estava com Yoko Ono e exigia que ela estivesse constante e literalmente ao seu lado; parecia menos comprometido com o projeto comum (acabava de colaborar com os Stones em Rock and Roll Circus; antes da separação oficial, já tinha feito dois shows com Ono e Eric Clapton). McCartney assumiu claramente as rédeas da banda, mas sua liderança é discutida, abertamente por Harrison e de forma mais sutil por John. Eles têm divergências, além disso, sobre quem deve administrar seus negócios, e como.

O filme de Jackson mostra, de início, os Beatles um tanto perdidos. Dão-se um prazo de três semanas para um projeto que não têm claro. É surpreendente que aceitassem ser filmados o tempo todo, frequentemente com as câmeras e microfones ligados quando não há mais ninguém no estúdio (contam que tampavam a luz vermelha da câmera). Ouvimos suas conversas, suas dúvidas, seus momentos de relaxamento e de tédio. Planejam reaparecer em um especial para a televisão, como tinha feito Elvis Presley no ano anterior, mas isso não chegou a acontecer. E, sobretudo, querem voltar a fazer shows em grande estilo. Cogitam diferentes fórmulas, muito a sério —sendo a mais delirante embarcar com o público na Inglaterra e navegar até a Líbia para se apresentar num antigo teatro romano à beira-mar.

A inspiração para as novas canções não aparece sozinha: dedicam muito tempo a improvisar, a revirar cada ideia, a fazer versões (sobretudo de Chuck Berry e outros clássicos dos primórdios do rock; pretendem voltar às raízes, ao que faziam em Hamburgo), às vezes trocam de instrumento (todos passam pela bateria e o piano); inclusive tentam recuperar canções que compuseram muito jovens. Quem chega ao terceiro capítulo vê aonde esse processo aparentemente caótico levou. A ideia de um show de massas sofre uma guinada e acaba numa modesta, mas genial, atuação-surpresa de pouco mais de 40 minutos no terraço do prédio da Apple Corps no centro de Londres, só para quem passava por lá, até que a polícia chega e manda parar. Essa atuação é recuperada na íntegra; é espantoso que no dia seguinte, concluído o projeto, voltem ao estúdio e já estejam falando das próximas canções que gravarão.

Rixas, desconcerto e talento

O Let it be de 1970 era um documentário tecnicamente um tanto rudimentar, que está há décadas sem ser reeditado e nunca teve versão digital. A maior parte de seus 80 minutos é ocupada pelas canções que eles interpretam no estúdio e por sua última apresentação ao vivo. Mas já inclui momentos de brincadeira e de brigas, entre elas a famosa discussão entre Paul e George em que este acaba por lhe dizer: “Vou tocar como você quiser, e se não quiser não toco”. Em Get back, entretanto, temos um relato completo daquela crise. Farto de se sentir humilhado por Paul, George lhe responde em outro momento: “Você precisa do Eric Clapton”. Sai pela porta e vai embora para Liverpool; levará seis dias até ser convencido a voltar. Nesse intervalo, Lennon diz a McCartney que, sim, talvez fosse o caso de chamar Clapton. Percebemos seu desconcerto. Ouvimos uma conversa de lanchonete em que John recrimina Paul por corrigir tanto os outros, sem depois admitir que ninguém diga nada sobre seus arranjos. Paul admite a John: você era o chefe aqui, mas eu tive que assumir isso nestes dois anos, e me custa muito. Meses depois, Lennon consideraria uma traição que fosse McCartney quem anunciasse o fim dos Beatles, da sua banda, a do John.

Dizem que Let it be é uma crônica amarga do final dos Beatles, e que o objetivo de Jackson com Get back era recuperar uma versão mais luminosa desse tempo, demonstrar que apesar dos atritos estavam unidos, que se divertiam juntos e estavam comprometidos com sua obra monumental. Na verdade, nem Let it be é tão sombrio, nem Get back é tão festivo. Nas duas produções vemos luzes e sombras. O que ocorre é que Get back se detém detalhadamente em episódios que foram omitidos ou só aparecem de relance no filme de 1970. Esta nova versão daquele material era necessária porque, na época, não se achou oportuno aproveitá-lo com esta ambição. Foram os próprios Beatles que evitaram uma distribuição mais ampla do filme Let it be, porque não ficaram satisfeitos com a imagem que passava deles. Ganharam um Oscar (melhor trilha sonora), que não foram receber. Ocorre que, visto um relato muito mais extenso daqueles 22 dias, os conflitos não são os protagonistas, embora existam, e sim o extraordinário talento de uns jovenzinhos (não tinham nem 30 anos) que precisaram de apenas três semanas para fazer de tudo.

A objeção que pode ficar a Get back é que foi feito por um fã e dirigido aos fãs. Nem todo o público achará tão legal ouvir oito versões diferentes de uma mesma canção, vê-la crescer ao longo do documentário. A longa duração pode ser dissuasiva; talvez fosse mais digerível em seis ou sete capítulos com pouco mais de uma hora.

Coincidindo com a estreia, saiu o livro The Beatles: Get Back, com textos do próprio Jackson, grandes fotos e a transcrição, dia a dia, de todos os diálogos que aparecem no documentário. Além disso, a gravadora Universal lançou uma edição especial em caixa super deluxe do álbum Let it be, que inclui 27 gravações inéditas até agora.

A Disney+ culmina com este lançamento sua aposta nos Beatles como franquia, ao estilo do que já faz com Star Wars e a Marvel; por sorte, os está explorando com muito mais carinho. A mesma plataforma já lançou McCartney 3, 2, 1, uma minissérie para melômanos em que Paul e o produtor Rick Rubin dissecam algumas de suas canções. Claramente é McCartney quem hoje controla o relato de quem foram os Beatles, mas o tempo transcorrido lhe permite olhar para trás com bom critério, porque os choques de egos não são tão irritantes meio século depois. Peter Jackson trabalhou em comum acordo com os beatles vivos e as viúvas dos falecidos, mas diz ter decidido com total liberdade. Get back completa como já não esperávamos o enorme legado dos Beatles na história da música.

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