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E Deus criou a literatura: o grande romance da Bíblia

Nova tradução do Gênesis reivindica seu valor literário acima dos dogmas e questiona a visão tradicional do monoteísmo, enquanto autores atuais o abordam a partir do laicismo e do feminismo

El Génesis
SERGIO GARCÍA SÁNCHEZ
Ricardo de Querol

Os autores, ou melhor, compiladores, que deram forma ao livro do Gênesis há 2.700 anos não se empenharam muito em ocultar as contradições, que saltam aos olhos de um leitor atento desde o começo. Dois relatos consecutivos da criação se sucedem um após o outro. No primeiro, Eloim vai dando forma ao universo ao longo de uma semana e, por fim, no sexto dia “criou o ser humano à imagem de Eloim: criou macho e fêmea”. Imediatamente depois, no segundo capítulo, a divindade passa a se chamar Javé-Eloim, modela o homem com o barro da terra, o leva a um jardim, depois faz brotar as árvores e cria os animais do campo; mas depois vê como o homem está sozinho e tira dele uma costela para que a mulher apareça. Outra passagem, somente algumas páginas depois, é muito mais desconcertante: quando os humanos se multiplicaram e tiveram filhas, “os filhos de Eloim viram que eram bonitas e tomaram algumas delas como esposas”. Depois disso, “os filhos de Eloim se juntaram com as filhas dos humanos e com elas fizeram filhos. Esses filhos são os heróis”. Heróis que, se diz, conviveram com gigantes.

É possível ler o Gênesis como uma obra literária, como outros grandes livros míticos da Antiguidade, do mesmo modo que a Odisseia de Homero e a Epopeia de Gilgamesh, despojado dos dogmas construídos a partir dele por judeus, cristãos e muçulmanos? Essa é a proposta dos editores de El libro del Génesis liberado (O Livro do Gênesis Liberado, ainda inédito em português), da coleção Clássicos Liberados da Blackie Books. O tomo incluiu uma nova tradução, notas que levam à sua marca cultural e uma série de textos de diversos pensadores — de Stephen Hawking a Kierkegaard, passando por Sara Mesa e Vinicius de Moraes— que trazem um olhar diferente. Com o objetivo, laico, de que seja lido como um romance. Com toda a “sua potência avassaladora, sua intensidade brutal, a construção de personagens, um estilo impactante e seco, que deixa os sentimentos de lado, que não dá muitos detalhes e que deixa margem à imaginação”, nas palavras do editor da obra, Pau Ferrandis. Esta versão inclui breves notas que dão um respiro na leitura, mas o objetivo não é proporcionar contexto histórico, muito menos teológico, e sim interpelar ao prazer estético.

Os editores também não querem chamar a atenção sobre as muitas peças do relato que não encaixam, incoerências que vão além das duas versões da criação. Caim, filho de Adão e Eva que matou seu irmão Abel, é desterrado, se casa e funda uma cidade. Quando Noé embarca em sua arca, Eloim diz a ele para pegar um casal de cada espécie, mas Javé diz em outro momento que a vida dos humanos não passará dos 120 anos — isso tem base científica— , mas os personagens do Gênesis continuam vivendo e tendo filhos, muitíssimo mais: Noé tem 600 anos quando constrói a arca. “Era uma tentação abordar essas contradições de maneira jocosa. Mas isso não faria justiça com um texto que surpreende e fascina”, diz Ferrandis.

Javier Alonso, filólogo especializado em línguas semíticas, traduziu do hebraico antigo o primeiro livro da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, baseada, por sua vez, no chamado Códice de Leningrado, do ano 1008. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto confirmou o acerto das reconstruções feitas nos dois últimos séculos. “Essa é a primeira tradução ao espanhol que não teve, em nenhum momento do processo, a intervenção de qualquer entidade religiosa”, se orgulha. Não há nenhuma tentativa, fica claro, de pregar uma fé.

A tradução evita a palavra “Deus”: mantém do original os diversos nomes que se dá à divindade. Ou talvez seja melhor dizer divindades: Javé é um deus humanizado e próximo, que caminha entre os humanos e os chama se não os vê, que foge, que fecha a porta da arca de Noé com suas mãos, que se arrepende de suas decisões e é capaz de se mostrar colérico. Eloim é um deus mais misterioso e distante, que se manifesta em sonhos e através de uma voz interior, com exceção do estranho episódio em que luta fisicamente com Jacó até o amanhecer e não consegue vencê-lo. Além disso, são utilizadas as denominações El-Elyon (o Altíssimo) e El-Shaddai, de origem menos clara e que, segundo Javier Alonso, provavelmente se refere ao deus da tempestade e da montanha. Porque “os deuses se manifestavam na montanha quando cada povo adorava o seu”.

Adão e Eva. Mural da igreja de Abreha We Atsbeha (Etiópia).
Adão e Eva. Mural da igreja de Abreha We Atsbeha (Etiópia).

No Gênesis ocorreu uma tentativa de unificar diversas visões de um mesmo Deus, mas nem todos entendem assim. Em um dos textos que completam a edição, o filósofo Arthur Dobb (1917-1981) nega que Javé e Eloim fossem a mesma divindade. “O que nos é contado é uma história de ações entrecruzadas, de réplicas e contrarréplicas”, escreveu. Um exemplo: “É Eloim quem ordena a Abraão que ofereça a ele seu filho Isaac em sacrifício. Javé provavelmente acha uma barbaridade, porque manda seu anjo deter Abraão, que já está com a faca na mão”. Outro: é Javé quem fecha a porta da arca de Noé, mas é Eloim que precisa deter a chuva. Somente após seus confrontos com Jacó, defende Dobb, “Eloim e Javé desaparecem definitivamente” e a “humanidade começa sua longa e solitária marcha”.

Alguns especialistas afirmam que os que reuniram antigas tradições de Israel e Judá no Gênesis, por volta do ano 700 antes de Cristo, partindo de livros anteriores que não se conservaram (as fontes J ou javista, E ou eloísta e P ou sacerdotal), não pretendiam de modo nenhum que fossem entendidas literalmente, e sim dar um sentido — transcendente, místico, espiritual— ao povo judeu. A especialista em religiões Karen Armstrong, prêmio Princesa de Asturias de Ciências Sociais 2017, explica em seu livro El arte perdido de las Escrituras (A Arte Perdida das Escrituras) que o que se praticava em Canaã não era o monoteísmo, e sim a monolatria: cada povo adorava seu deus protetor. Antes de ser monoteístas, afirma, os israelitas “consideravam Javé como um dos filhos e poderes sagrados de El, o Deus Supremo de Canaã, e membro da assembleia divina de El”, onde estavam os deuses de todas as nações. Eloim é o plural de El, mas no Gênesis seu nome é empregado no singular. Há passagens bíblicas, além do Gênesis, que reforçam essa visão.

A Bíblia não era entendida literalmente? Outros pensadores discutem o tema, porque se tratava de explicar tudo, a origem do mundo, do bem e do mal, e do povo eleito. O fim era, principalmente, político: unificar as crenças das tribos divididas em duas nações — Judá, ao redor de Jerusalém, e Israel, ao norte de Canaã— para que formem uma só, o que se consegue aparentando seus patriarcas, para que todos sejam descendentes de Abraão. De modo que os textos originais foram reunidos no reinado de Ezequias. “Para criar identidade nacional”, afirma Javier Alonso.

A opinião de Reza Aslan em Dios. Una historia humana (Deus. Uma História Humana) é mais contundente: “A história de como o monoteísmo — após séculos de fracassos e repúdio— se estabilizou de modo definitivo e permanente na espiritualidade humana começa com a história de como o deus de Abraão, EI, e o deus de Moisés, Javé, se fundiram gradualmente para se transformar em uma só divindade singular que hoje chamamos de Deus. A introdução do monoteísmo entre os judeus foi um mecanismo para racionalizar a derrota catastrófica de Israel para os babilônios”.

Para o teólogo Juan José Tamayo, os autores do Gênesis se inspiraram em tradições culturais da região, mesopotâmicas, egípcias e fenício-cananeias, e mantêm parentesco com as sumérias, ugaríticas e babilônicas. “Não se pode, entretanto, falar de mera imitação e dependência servil, e sim a partir da fé monoteísta”, diz. É apresentado um Deus às vezes próximo, acompanhante, e ao mesmo tempo misterioso, onipotente. Definitivamente, “o Deus do Gênesis é o Deus da promessa, o Deus do futuro”.

A instalação 'Babel 2001', do artista brasileiro Cildo Meireles, na Tate Modern Gallery de Londres em 2014.
A instalação 'Babel 2001', do artista brasileiro Cildo Meireles, na Tate Modern Gallery de Londres em 2014. DANIEL LEAL (AFP via Getty Images)

Um ângulo que não é evitado nesta edição é o do papel da mulher em um texto em que os nomes femininos costumam ser omitidos das genealogias. O contexto é o de uma sociedade patriarcal e violenta em que Ló — o único justo em Sodoma— oferece suas filhas virgens à multidão para que sejam estupradas e, desse modo, aplacar um conflito; em que o incesto é habitual, filhos são feitos com as escravas e são permitidas a compra e venda de filhos. Mas chama a atenção que, entre uma longa lista de homens submissos à vontade de seu deus, existam personagens femininos com caráter rebelde: Eva, as filhas de Ló, Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Sara, Agar. Sobre elas escreve Sara Mesa: “Lá estava latente o peso dessas mulheres fortes, decididas, corajosas, frequentemente sem escrúpulos para privilegiar os de sua estirpe. Manipulavam e confundiam os homens como queriam, fazendo-se valer de poderes que eu não consigo definir, mas que eram, ao que parece, tão infalíveis como os de um feitiço mágico”.

Tamayo, que acaba de publicar La compasión en un mundo injusto (A Compaixão em um Mundo Injusto), opina que o Gênesis admite duas leituras sobre o papel da mulher: “A discriminatória e patriarcal, que marca a dependência e submissão da mulher ao homem de acordo com os relatos javistas da criação. Mas também a igualitária e feminista, que frisa a igualdade entre o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança de Deus no relato sacerdotal da criação e no reconhecimento do protagonismo de Sara, Agar, Rebeca, Raquel e Lia, no mesmo nível dos patriarcas”.

O empenho em ler de modo literal o que o Gênesis conta motiva um dos capítulos mais delirantes de Gênesis Liberado: a entrada da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert em que são estudadas minuciosamente as medidas exatas que a arca de Noé deveria ter. Os céticos enciclopedistas, talvez por prudência, encarregaram este e outros artigos de temática religiosa ao abade conservador Edmé-François Mallet. Os autores da Enciclopédia não anotam o cálculo supostamente científico de um acontecimento tomado por histórico, assim como os editores desse novo livro, que acrescentam ilustrações muito trabalhadas a partir deste texto do século XVIII. Essa arca cuja porta Javé fecha e da qual não saem até Eloim ordenar.

Reconstrução em 3D da Arca de Noé, a partir da entrada na 'Enciclopédia', incluída em 'O livro do Gênesis liberado'.
Reconstrução em 3D da Arca de Noé, a partir da entrada na 'Enciclopédia', incluída em 'O livro do Gênesis liberado'. Anxo Miján Maroño

A Bíblia do Urso: uma versão perseguida 

O interesse pelas traduções bíblicas mais ou menos heterodoxas não acaba no Gênesis Liberado. A editora Alfaguara reedita A Bíblia do Urso, que Casiodoro de Reina (1520-1594), um monge jerônimo espanhol convertido ao protestantismo que precisou se exilar, traduziu sozinho ao espanhol (do hebraico, aramaico e grego). Publicada em Basileia em 1569, ilustrada na capa com um urso diante de uma colmeia, o emblema do editor suíço Matthias Apiarius, foi uma tarefa titânica para uma única pessoa, e é considerada uma das obras magistrais do espanhol do Século do Ouro. Mas a tradução a línguas vernáculas dos livros sagrados foi perseguida pela Igreja católica na época da Contrarreforma e só se tornaria comum com o século XX já bem adiantado; esta Bíblia só foi impressa na Espanha em 1987. Serviu de base à Bíblia Reina Valera, corrigida por seu colaborador Cipriano de Valera, e que é a mais conhecida no mundo protestante em espanhol. 

Se não fosse proscrita pelo catolicismo, essa obra ocuparia um local de destaque na história da literatura espanhola. “Estaria ao lado das de Cervantes e San Juan de la Cruz”, diz Andreu Jaume, responsável por essa edição. A tradução da Bíblia Reina Valera é rigorosa, diz, “de uma grande beleza, com ecos de Garcilaso, Góngora e Quevedo, e que no prólogo interpela o leitor em um tom próximo e caloroso como o de Cervantes”. Além disso, a obra introduziu notas que tentam unificar a crença, reconciliar as famílias cristãs. Porque o autor não era um reformista dogmático, e sim alguém que apostava na universalidade da fé. Jaume lamenta que o valor literário desta edição da Bíblia tenha sido desprezado pela censura católica. Desse modo, se viu frustrada a influência que poderia ter exercido nas literaturas hispânicas. “Do ponto de vista da língua, Casiodoro de Reina fez o trabalho de, no mínimo, 100 escritores”, conclui.

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