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O que essa máscara tem para aterrorizar há quatro décadas?

O sucesso de ‘Halloween Kills: O Terror Continua’ reafirma o trono de Michael Myers em um subgênero no qual ele tem muitos concorrentes

Guillermo Alonso
A célebre máscara de Michael Myers, neste caso em 'Halloween H20: 20 anos depois', que marcou sua sexta aparição nas telas em 1998.
A célebre máscara de Michael Myers, neste caso em 'Halloween H20: 20 anos depois', que marcou sua sexta aparição nas telas em 1998.Albert L. Ortega (WireImage)

No roteiro de Halloween —a noite do terror (1978), o assassino Michael Myers é descrito como alguém que usa “uma máscara de borracha com os traços grotescos de um homem”. Quando as filmagens começaram, com um orçamento apertado de 300.000 dólares (1,7 bilhão de dólares, pela cotação desta segunda-feira), a equipe se deparou com o dilema de qual máscara usar para atender a esses requisitos. No documentário Halloween Unmasked (2000), o desenhista de produção, Tommy Lee Wallace, explica que a intenção original era que o assassino usasse uma máscara de palhaço inspirada no artista de circo Emmett Kelly. Mas, para ter mais opções, Wallace também comprou por menos de dois dólares uma máscara de William Shatner como Capitão Kirk em Star Trek, em uma loja de Los Angeles. Depois, arregalou os olhos dela e pintou-a inteiramente de branco. Testaram as duas opções com Nick Castle, o ator contratado para interpretar o assassino mascarado. Wallace contou no documentário: “Primeiro experimentamos a de Emmett Kelly. [Castle] saiu do camarim e concordamos em que era inquietante, estranha, rara, fazia você se sentir desconfortável. Então ele voltou para o camarim e saiu com a outra máscara, e um calafrio percorreu todos nós. Era aterrorizante, insano, doentio. Então vimos que já tínhamos achado”.

Essa figura, Michael Myers, com sua máscara branca, macacão preto e movimentos lentos, mas implacáveis, se tornou um mito do cinema de terror e tem funcionado há mais de 40 anos. Sua primeira aparição no cinema fez de Halloween —A noite do terror o filme independente mais lucrativo até hoje (aquele orçamento de 300.000 dólares se traduziu em cerca de 70 milhões de dólares, ou 400 milhões de reais, em bilheteria). Atualmente, o décimo segundo filme da saga, Halloween Kills —O terror continua, arrecadou mais de 80 milhões de dólares só nos Estados Unidos e apenas em duas semanas. As arrecadações de toda a saga somadas chegam a 640 milhões de dólares (3,63 bilhões de reais), valor que aumentará com outro filme, Halloween Ends, no próximo ano.

Matar uma franquia de produção relativamente barata seria uma decisão artisticamente lógica, mas estúpida do ponto de vista empresarial. Halloween, filme de 2018 também conhecido como Halloween 2018, custou dez milhões de dólares e arrecadou mais de 255. Também é uma decisão praticamente impossível: de acordo com uma cláusula do contrato de Moustapha Akkad (o produtor executivo de todos os filmes até sua morte em um atentado em 2005 e dono dos direitos de uma franquia atualmente controlada por seus filhos), nenhum roteiro da saga pode terminar com a morte de Michael Myers.

Em 'Halloween 4: O retorno de Michael Myers' (1988), foi o ator George P. Wilbur quem vestiu o macacão preto e a máscara branca.
Em 'Halloween 4: O retorno de Michael Myers' (1988), foi o ator George P. Wilbur quem vestiu o macacão preto e a máscara branca.Archive Photos (Getty Images)

Esse detalhe de viés empresarial se tornou uma das características do personagem: o vilão da série Halloween foi crivado de balas, explodido em uma sala de caldeiras, jogado em um rio, envenenado, decapitado, eletrocutado e queimado vivo. Mas sempre volta. Nisso se parece com outros grandes mitos do cinema de terror contemporâneo que se recusam a morrer (Jason de Sexta-feira 13, Freddy Krueger de A hora do pesadelo ou Chuckie de Brinquedo assassino, mas quase todas as coincidências terminam aí. Michael, ao contrário de todos eles, é minimalista e elegante, um assassino autoral, gourmet, até de fleuma britânica. Freddie e Chuckie viraram personagens cômicos, Michael, jamais. Jason sempre tirava a máscara para revelar um rosto entre monstruoso e jocoso, Michael, nunca (desde 1978). Não sabemos o que ou quem está por trás. De Freddie, Jason e Chuckie nos contaram a vida e os milagres, criaram uma mitologia que os humanizou e, consequentemente, os desmistificou. De Michael só sabíamos que era uma máquina de matar sem motivo (em alguns filmes da saga tentaram criar uma lenda com seitas no meio, um erro que corrigiram ignorando e anulando essa subtrama em episódios posteriores). Silencioso, lento e letal, Michael, em sua máscara branca, ganhou o jogo: sua bilheteria é a mais alta de todas as sagas de terror do gênero slasher (ou seja, de assassinos triturando jovenzinhos). Michael dispõe de uma carta que nenhum outro anti-herói de filme de terror tem: o medo do desconhecido. Não se sabe como é, não se sabe por que mata, não se sabe onde vai aparecer. Nesse sentido, John Carpenter criou um vilão com ares de Lovecraft, que já constatava que “a emoção mais antiga e forte do ser humano é o medo, e o medo mais antigo e forte que existe é o medo do desconhecido”.

Rosto inexpressivo

“Michael não causaria medo se corresse”, explica Rubén Lardín, crítico, roteirista, colaborador do Festival de Sitges e autor de estudos sobre o gênero do terror, como Las diez caras del miedo (As dez faces o medo, EditoraMidons). “A lentidão é a velocidade do outro mundo, faz parte do trajeto dos pesadelos, não há nenhuma pressa, temos toda a eternidade pela frente. Michael vem de muito longe para ter que correr”. Para José Viruete, estudante do cinema de terror em livros como Terror bajo las aguas (Terror debaixo d’água), o segredo do personagem é “essa sensação totalmente desumanizadora. Uma pessoa procuraria se conectar com o seu agressor de qualquer maneira, mesmo olhando-o nos olhos! Mas é impossível com uma máscara em branco em que não podemos ler absolutamente nada: nem medo, nem ódio, nem misericórdia, nem uma simples motivação. É normal que essa teoria de que Michael Myers é uma encarnação do mal seja tão popular entre seus fãs”.

Michael Myers em uma cena de ‘Halloween H20: 20 anos depois' (1998).
Michael Myers em uma cena de ‘Halloween H20: 20 anos depois' (1998).

Há tamanha mística em torno desse personagem que o YouTube contém dezenas de vídeos que explicam a história das máscaras usadas em cada episódio e ordenando-as da melhor para a pior. O New York Times entrevistou em 2018 vários dos atores encarregados de dar vida ao personagem em diferentes filmes. Um deles disse que se inspirou na maneira como os gatos se movem. Outro falou que decidiu que Michael deveria andar de um jeito pesado, como se estivesse caminhando na água. Outro, em um giro um tanto cômico, explicou que havia estudado teatro, dança e mímica. Não conhecemos o rosto de nenhum deles porque o segredo, aqui, é uma máscara aterrorizante na qual existem apenas olhos negros.

“Um rosto inexpressivo implica desconexão emocional, algo que aciona todos os nossos sistemas de alarme de mamífero”, disse ao EL PAÍS a psicóloga Violeta Alcocer. Isso poderia começar a explicar por que Myers causa um efeito tão forte no espectador, porque sua mera imagem, sem a necessidade de ver os filmes, impactava nas prateleiras da videolocadora. Além das convenções e dos sustos próprios do gênero. Alcocer faz referência a um experimento clássico no estudo do apego, realizado pelo dr. Edward Tronick e chamado de “experimento do rosto sem expressão”. Nele você pode ver uma mãe e um bebê de um ano. Quando a mãe faz gracinhas, o bebê sorri, entendendo que há alguém que compreende suas emoções e com quem pode se coordenar. Mas quando a mãe tira a expressão do rosto e olha para a filha de modo imperturbável (nem mesmo triste ou agressivo), o bebê rapidamente percebe que algo está errado e começa a chorar.

Lovecraft chega a Hollywood

Uma das características mais marcantes de Halloween —A noite do terror (1978) é que o assassino aparecia, arrasava e matava sem motivo ou explicação. É algo inédito ainda hoje, quando os filmes recebem luz verde após uma reunião de cinco minutos e o algoritmo se entrega à ditadura do espectador, que sempre exige motivos e respostas. “O que Carpenter entregou em Halloween —A noite do terror, mais do que uma história, foi uma temperatura”, reflete Lardín. “No final das contas é onde sempre esteve o poder das melhores histórias de terror, em sua atmosfera.” No segundo filme da franquia, intitulado Halloween 2 —O pesadelo continua (1981), é revelado que Myers era irmão da heroína, Jamie Lee Curtis (que retorna nestes últimos episódios). Carpenter nunca gostou dessa reviravolta (embora tenha assinado o roteiro) porque traía o espírito não humano e destituído de motivação do assassino. Por isso, quando se rodou um novo filme com sua aprovação, o de 2018, esse fato foi completamente ignorado e o assassino e a heroína voltaram a ser completos desconhecidos.

Essa sequência foi vista por muitos, por sua trama de mulheres que enfrentam o mal depois de anos vivendo com medo, como o grande filme de terror da era #MeToo, mas Lardín não é amigo de relacionar sangue e zeitgeist. “Leituras sociopolíticas são lorota acadêmica, um tique cheio de pudor que tira a paixão humana, levando-a ao tabuleiro econômico. As neuroses individuais são muito mais interessantes e, nos casos mais graves, transcendem sua época e contexto. Um cara sem rosto com uma faca é um cara sem rosto com uma faca. Um sujeito alheio à linguagem, esse é outro aspecto-chave. E ainda por cima ele usa um macacão de trabalho! Me dê uma ameaça mais mundana e, ao mesmo tempo, mais espectral. Algo que provoque mais medo. Não há. É ridículo tentar explicar de outro lugar, o cinema é uma carta branca, é uma de suas funções. Porque a pulsão da morte responde à morte, ao insuportável da morte, é assim simples. Personagens como Michael Myers nos mantêm a salvo de nossos medos.”

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