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‘Caso Alec Baldwin’, as incógnitas de um ‘western’ que virou ‘thriller’

Centenas de pessoas se reúnem numa vigília em Albuquerque para se despedir de Halyna Hutchins, a diretora de fotografia morta por um disparo acidental feito por Alec Baldwin durante a rodagem do filme

Vigília em memória de Halyna Hutchins, no sábado à noite, em Albuquerque.
Vigília em memória de Halyna Hutchins, no sábado à noite, em Albuquerque.Andres Leighton (AP)
Luis Pablo Beauregard

A rodagem de Rust começou em 6 de outubro. A produção independente havia escolhido um belo rancho a 20 minutos de Santa Fe, a capital do Novo México, como locação de um western ambientado no século XIX. É um lugar de colinas, com um clima quase desértico, onde arbustos agrestes contrastam com a folhagem amarela dos álamos. Atrás do rancho há dezenas de hípicas. É lá, em meio a um povoado cenográfico de madeira, que Alec Baldwin, também produtor do filme, interpretava Harland Rust, um foragido que parte em socorro de seu neto de 13 anos, sentenciado à pena de morte pelo homicídio acidental de um homem. Este sucinto argumento acabou se revelando premonitório quando, duas semanas depois, o protagonista do filme matou a diretora de fotografia com uma bala de verdade, durante o ensaio de uma cena.

A polícia tenta responder a pergunta que todos se fazem: como uma bala de verdade chegou à produção? O projétil impactou o peito de Halyna Hutchins, de 42 anos, e feriu no ombro o diretor, Joel Souza, de 48, que já teve alta do hospital. Um médico da produção tentou frear a hemorragia da fotógrafa, enquanto Mamie Mitchell, a supervisora de roteiro, ligava para o número de emergência 911. “Temos duas pessoas feridas por uma arma, precisamos de ajuda imediatamente”, disse a mulher ao atendente, que pergunta: “A arma estava carregada com balas de verdade?”, “Não… não sei dizer…”, respondeu Mitchell. Segundos depois, se dirige a alguém junto a ela, conforme se ouve na ligação, que vazou à imprensa: “E esse merda desse assistente de direção, que gritou comigo na hora do almoço por causa de umas revisões, esse filho de puta… Supõe-se que ele deveria ter revisado as armas. Ele é o responsável”.

Um dos encarregados da investigação, Joel Cano, disse em seu relatório que Dave Halls, o assistente de direção, confirmou ter revisado que as três armas a serem usadas na cena não estavam carregadas. Eram armas reais. “Arma fria”, ou seja, sem munição, disse Halls antes de passá-la a Baldwin, que assim entendeu que poderia acioná-la de forma segura. Halls, noticiou a CNN neste domingo, tem um histórico de falhas nos sets onde trabalhou. Em uma série filmada em 2019 para a plataforma Hulu, não organizou as comissões de segurança exigidas nos protocolos nem alertou à produção sobre a presença de armas carregadas.

Um depoimento judicial vazado na noite de domingo afirma que Souza, o diretor do filme, não tinha total certeza de que a arma havia sido revisada por Halls antes do ensaio, onde Baldwin treinava como a sacaria.

Trabalhadores da indústria do cinema norte-americano exibem cartazes de protesto pelas falhas de segurança na rodagem, durante a vigília por Halyna Hutchins.
Trabalhadores da indústria do cinema norte-americano exibem cartazes de protesto pelas falhas de segurança na rodagem, durante a vigília por Halyna Hutchins. KEVIN MOHATT (Reuters)

Os fios soltos da história pairavam sobre as cabeças de centenas de profissionais do cinema que se reuniram na noite de sábado no centro de Albuquerque, a 60 quilômetros de Santa Fe, para se despedir de Hutchins. A fotógrafa era originária da Ucrânia e cresceu numa base militar soviética no Círculo Polar Ártico. Durante vários anos foi jornalista investigativa em Kiev e trabalhou em vários documentários britânicos. Em 2015 se graduou no American Filme Institute.

“Este filme era um sonho para qualquer diretora de fotografia”, disse Miriam, membro do sindicato setorial IATSE. “Um longa-metragem em uma locação real, com este céu, um western de época e com um ator de primeira. Quem podia pensar que isto teria um desenlace tão trágico”, disse, com uma vela na mão.

Lane Luper, técnico que trabalhou com Hutchins em Rust, contou aos presentes na homenagem que a fotógrafa, em plena ascensão numa indústria onde as mulheres são apenas 5% dos profissionais detrás das câmeras, havia comprado recentemente uma casa em Los Angeles para viver com seu marido e seu filho. “Era uma alma maravilhosa, e muito talentosa… Tive muita sorte de trabalhar com ela”, disse, entre lágrimas.

Luper não deu detalhes sobre as acusações reveladas após a morte de Hutchins. Trata-se de uma rodagem caótica, que já tinha tido dois avisos de falhas de segurança no manejo de armas de fogo. Em 16 de outubro, já haviam ocorrido duas detonações acidentais, segundo confirmaram três membros da equipe que pediram aos responsáveis que reforçassem os protocolos de segurança no manejo de pistolas. Horas antes do acidente, seis técnicos deixaram a produção em protesto contra as condições de trabalho, que envolvia jornadas de 13 horas e o transtorno de precisar fazer todos os dias a viagem de volta até hotéis em Albuquerque, a 90 quilômetros, para que os custos de produção não disparassem.

Rust era uma produção de nível 1, segundo as categorias estabelecidas em Hollywood, o que significa um orçamento baixo para seus padrões, de apenas seis milhões de dólares e 21 dias para a conclusão da filmagem. “Um western de época exige mais dinheiro e tempo para ser bem feito. Minha impressão é de que este filme estava fora de orçamento e de cronograma”, disse Matthew, integrante do IATSE, o sindicato de técnicos, que foi se despedir de Hutchins.

Ashley Crandell, outro profissional presente à cerimônia, trabalha como armeira em sets de filmagem. Nas grandes produções, explica, as armas reais devem ter réplicas de borracha. Esses modelos são usados, por exemplo, em cenas onde elas são atiradas longe, ou não aparecem em destaque —se um policial a mantém no coldre, por exemplo. Em Rust não havia modelos de borracha; as três armas presentes no dia do acidente eram reais. Quando elas são acionadas, um armeiro deve ser o responsável por revisar as câmaras e travas das pistolas, além de instruir o elenco sobre sua operação. Nas produções com menos orçamento, como esta, é comum que os encarregados dos objetos de cena conciliem esta tarefa com outras responsabilidades. “Ao final, o encarregado de manter a toda a equipe segura é o AD (assistente de direção)”, observa Crandell.

Serge Svetnoy, o eletricista-chefe da produção, atribuiu o acidente, sem mencioná-la, à encarregada de objetos de cena e armamentos, Hannah Gutierrez Reed. “Tenho certeza de que tínhamos profissionais em todos os departamentos, exceto um, o departamento que se encarrega das armas... Não há forma de que uma mulher de 24 anos possa ser especialista de armamentos”, escreveu no Facebook o técnico, que antes tinha trabalhado com Hutchins em outro filme. “Para economizar algum dinheiro, às vezes se contrata gente que não está completamente qualificada para fazer um trabalho complicado e perigoso. E isso põe em risco a vida de outros e a própria”, acrescentou o eletricista, que contou ter amparado a diretora de fotografia em seus braços.

A morte de Hutchins reabriu o debate sobre a segurança nas filmagens. Algumas vozes pediam que as pistolas sejam definitivamente abolidas dos sets e substituídas por efeitos especiais. Isto será difícil no país mais armado do mundo. “Os atores gostam do peso de uma arma de verdade e, pelo menos a gente da velha guarda, acha que devem parecer as mais reais possíveis no quadro”, diz Crandell. Miriam concorda: “Todos os dias em todos os filmes há armas de fogo reais. E não há mortos. Foi preciso que se desse algo muito ruim para que isto acontecesse”.

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