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Inhotim olha para o depois de amanhã

Com a inauguração de novas obras de Rommulo Vieira Conceição e Lucia Koch, o museu se aproxima de Brumadinho e reflete o contexto social da cidade ainda marcada pela lama e do Brasil em constante conflito

O artista Rommulo Vieira Conceição posa em frente a sua obra 'O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção', em Inhotim.
O artista Rommulo Vieira Conceição posa em frente a sua obra 'O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção', em Inhotim.Isis Medeiros

Quem chega em Brumadinho (MG) pela BR-381 se depara, logo na entrada da cidade, com dois painéis em lados opostos da rodovia. À esquerda, um outdoor reveza anúncios de um supermercado com a fotografia de uma caixa de madeira vazia, registrada por dentro, em escala arquitetônica, com aberturas laterais que aparentam ser janelas. À direita, estão as fotos das nove pessoas que continuam desaparecidas dois anos e meio depois do rompimento da barragem da Vale no córrego do Rio Doce, que mergulhou a cidade no luto e na lama. De um lado e de outro, estão pichações contra a empresa mineradora e clamores por justiça para as vítimas.

Pela primeira vez em 15 anos de existência do Museu de Inhotim, que conta com mais de 560 peças de arte ao longo de 140 hectares de montanhas e vasta vegetação, algumas dessas obras foram expostas também em Brumadinho. São fotos realizadas pela artista gaúcha Lucia Koch, que aparecem em cinco outdoors publicitários espalhados na cidade. Curiosa pelo movimento comercial e “consumista” da região depois do pagamento de indenizações à população local, ela decidiu ocupar esses dispositivos com imagens que, aparentemente, não informam nem vendem nada. “Quero investigar como a população reagirá a isso no próximo ano [período durante o qual as obras ficarão na cidade]”, diz.

Para causar estranhamento, a artista, que há 20 anos fotografa o interior de embalagens vazias, buscou elementos familiares aos moradores: queijeiras encontradas nos mercados municipais de Brumadinho e Belo Horizonte. “Quando eu tomo e fotografo uma embalagem vazia daquilo que ela continha, é como se ela fosse o depois da coisa”, explica Koch. E em Brumadinho, a cidade que tenta se reerguer da lama, isso se traduz no depois do amanhã.

A série da artista, intitulada Propaganda, foi oficialmente inaugurada em Inhotim no último sábado, 28 de agosto. Dela também faz parte a obra Arco-íris cor de sangue, que remete à cidade marcada pela tragédia da mineração: trata-se de uma foto, também em tamanho de outdoor, do interior de um saco de carvão. Em dimensão gigantesca, a imagem remete às profundezas da terra, os tons ocre e negros do papel pardo da embalagem fazendo as vezes de paredes e fundo de uma mina.

As indenizações pela tragédia mexeram com a economia local, fortemente dependente da mineração. Hoje, pipocam por Brumadinho outdoors que anunciam um boom imobiliário —desde terrenos com parcelas mensais de 400 reais até condomínios de luxo—, a venda de carros novos e de materiais de construção. Até o final de 2019, a Vale forneceu mensalmente um auxílio emergencial de um salário mínimo a todos os habitantes da cidade, vítimas diretas ou não da ruptura da barragem (adolescentes ganharam meio salário e crianças cerca de 250 reais). Neste ano, começou a pagar recursos a título de reparação aos municípios mineiros afetadas pelo acidente criminoso. “Todo dinheiro que recebemos melhorou o comércio. Eu até pude comprar um carro novo”, conta Lúcio Medeiros, guia de Inhotim, o museu ao ar livre que fica na cidade e que foi construído pelo empresário da mineração Bernardo Paz —80% dos funcionários da instituição são de Brumadinho.

'Propaganda', de Lucia Koch, exposta em Brumadinho.
'Propaganda', de Lucia Koch, exposta em Brumadinho.Divulgação

Diálogos em construção

Da profundidade plástica e terrosa de Lucia Koch, as trilhas verdes do Inhotim levam a uma grande instalação numa clareira, uma escultura de metal brilhante, retorcido em diferentes formas e pintado em cores vibrantes. É quase um parque infantil, mas os arcos lembram cúpulas islâmicas e domos judaicos. No chão, estão dispostas dezenas de quartinhas de barro —espécie de vasos com tampa usados por religiões de matriz africana— pintadas de roxo e amarelo. De um lado, brotam do chão, como se fossem flores, os apoios de braço de carteiras escolares, porque, para o artista Rommulo Vieira Conceição, a escola também é um templo. A obra O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção convida à entrada, automaticamente. Mas é uma armadilha. Ali, tudo está embaralhado. O visitante a percorre com a ânsia de escalar os andaimes e de atravessá-la de um lado a outro, mas não se pode: uma cerca pontiaguda cruza parte do espaço em diagonal e impede a passagem. Ou uma hermética parede azul e branca se interpõe no caminho.

“Interessa-me essa diferença tênue entre espaço e lugar. O espaço é indiferenciado, ele se torna um lugar à medida em que criamos familiaridade com ele”, reflete o artista diante de sua obra. Territórios específicos, aliás, é o nome do programa do Instituto Inhotim que comissionou os trabalhos de Conceição e Koch.

Obra 'O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção (2021)', de Rommulo Vieira Conceição, em Inhotim.
Obra 'O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção (2021)', de Rommulo Vieira Conceição, em Inhotim.Divulgação

Inspirado pelo “crescimento da intolerância” no Brasil, Conceição decidiu pegar referências arquitetônicas e objetos de diferentes religiões para para propor uma convivência harmônica —ainda que labiríntica— entre eles, e com elementos que dificultam, à primeira vista, uma aproximação. “É um jardim de Alá, mas também uma armadilha. A convivência não é fluída, exige trabalho, abertura e estratégias de diálogo”, diz.

Para a instalação em Inhotim, trabalhou com serralheiros e marceneiros periféricos de Brumadinho. “É uma possibilidade de construir obras de arte quando a arte não chega nas casas dessas pessoas. Conversei com cada uma delas para pensarmos juntos as propostas e soluções da realização do trabalho”, conta. Também é uma tentativa de amenizar a dor ainda latente na cidade, uma arte que convida, mais uma vez, a olhar para o depois de amanhã.

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