_
_
_
_
_

Como a nova era das conspirações alimenta o cinema e a televisão

Cada vez mais ganham espaço documentários sobre confabulações sinistras reais ou que tentam desmentir fantasias coletivas

Seis fotogramas do assassinato do ex-presidente dos EUA John Kennedy, filmado por Abraham Zapruder, em 22 de novembro de 1963.
Seis fotogramas do assassinato do ex-presidente dos EUA John Kennedy, filmado por Abraham Zapruder, em 22 de novembro de 1963.
Mais informações
Allen V. Farrow
Faz sentido um documentário de denúncia que só dá voz a um dos lados?
Imagen correspondiente a la serie 'Making a Murderer'.
‘Making a Murderer’: crimes reais voltam às séries
Logo de Netflix en sus oficinas en Hollywood.
O dilema social das redes... e da Netflix

Duas garotas abordam um desconhecido em um aeroporto. Tampam seus olhos, esfregam algo na sua cara e saem correndo. Em uma hora o homem está morto. Foi envenenado com uma toxina letal. As garotas são detidas e dizem não saber da morte de ninguém, pois acreditavam estar apenas participando de uma pegadinha com câmera oculta. Alegam ser bodes expiatórios de um complô para perpetrar um homicídio político.

O argumento é digno de Hitchcock, mas vem de uma história real: a do assassinato em 2017, na Malásia, de Kim Jong-nam, irmão de Kim Jong-un, exilado e crítico do regime norte-coreano. De fato, há um filme assim. Só que é um documentário: Assassins, de Ryan White. Na era da pós-verdade, as conspirações, reais ou imaginárias, já não alimentam apenas obscuras ficções da telona baseadas em teorias conspiratórias, como nos anos setenta, e sim documentários com gosto de thriller ou mesmo de filme de terror.

Assassins poderia compor uma perturbadora sessão dupla com The mole: undercover in North Korea, minissérie lançada em fevereiro pelo Filmin, no qual o documentarista Mads Brügger condensa as gravações feitas com câmera oculta por um chef dinamarquês durante a década em que atuou como espião nas redes de amigos da Coreia do Norte, com intenção de desmascarar as maracutaias da ditadura e seu principal proselitista na Europa, o espanhol Alejandro Cao de Benós.

São duas amostras de uma corrente em crescimento: em março estrearam O dissidente, de Bryan Fogel (no Filmin), que disseca o assassinato do jornalista Jamal Kashoggi no consulado da Arábia Saudita em Istambul —e como o regime saudita instalou o programa espião Pegasus no celular de Jeff Bezos, —e Q: No olho da tempestade, de Cullen Hoback (na HBO), que explica a origem e o funcionamento do QAnon, o movimento populista engendrado na internet e que, baseado em absurdas teorias conspiratórias, acabou instigando o ataque ao Capitólio. E desde setembro, pouco antes das eleições norte-americanas e desse horripilante epílogo da era Trump, a HBO também oferece Agentes do Caos, de Alex Gibney, que esmiúça as manobras russas para influenciar as eleições que levaram o magnata à Casa Branca em 2016.

A presidência de Donald Trump marcou o que Noel Ceballos, autor do livro El pensamiento conspiranoico (editora Arpa, sem tradução no Brasil), considera a era dourada das teorias conspiratórias. Em sua obra, ele afirma que “nunca um percentual tão elevado da população foi exposto, durante tanto tempo, a um número tão grande e normalizado de teorias conspiratórias como na segunda metade da década passada”. E o fenômeno cresce, acrescenta o autor em conversa ao EL PAÍS: “As teorias da conspiração atualmente estão no centro do discurso social, abrem noticiários”, adverte. “Podem levar as pessoas a não se vacinarem e a armarem manifestações negacionistas da covid-19, e podem levar uma multidão enfurecida a invadir o Capitólio”.

É fácil traçar um paralelismo com o final dos anos sessenta e a década de setenta. Naquela época, os assassinatos de John e Robert Kennedy, Malcolm X e Martin Luther King levaram a população norte-americana a acreditar que tudo era possível, e os documentos do Pentágono e o Watergate fizeram muita gente desconfiar do Governo. Agora, a convicção de que tudo pode acontecer e a desconfiança em relação ao establishment são um fenômeno global, ampliado e acelerado pela internet. Para Ceballos, “no final dos anos sessenta houve uma mudança de paradigma tecnológico, o escrutínio sobre o poder foi maior e mais escândalos foram revelados. Temos cada vez mais ferramentas para vigiar o poder, e isso acarreta um aumento da desconfiança. O problema é quando isso se torna algo patológico.”

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

Aqueles anos ainda alimentam criadores como Oliver Stone, que, 30 anos depois de JFK: A pergunta que não quer calar, ápice do thriller conspiratório, há um mês lançou no Festival de Cannes o seu JFK Revisited: Through The Looking Glass, com duas horas de documentário sobre a morte do presidente Kennedy baseadas em 2.800 relatórios secretos revelados em 2017 (ainda faltam outros 200, considerados decisivos pelos historiadores). Talvez nunca se saiba quem realmente esteve por trás daquele homicídio em 22 de novembro de 1963, mas Stone, com documentos em mãos, aponta o FBI e a CIA como manipuladores de todas as investigações posteriores. Como dizia o cineasta ao EL PAÍS no festival francês, “Kennedy tinha muitos inimigos —na verdade, não sei o que aconteceu, mas sim o que não aconteceu”. O filme estreará em cinemas na Espanha, mas ainda não há data marcada.

Há meio século o cinema traduziu esse mal-estar em thrillers como Três Dias do Condor (Sydney Pollack, 1975), mas agora é principalmente o documentário que aborda estes assuntos. Em 1976, Alan J. Pakula dramatizava em Todos os Homens do Presidente a façanha jornalística que custou a presidência a Nixon. Quatro décadas depois, em 2015, o Oscar de melhor documentário foi dado a Citizenfour (Laura Poitras), making-of de um dos furos jornalísticos da década: o vazamento de Edward Snowden que revelou que a Agência Nacional de Segurança dos EUA espiava os cidadãos de maneira ilegal.

Também há cada vez mais meios para revelar conspirações reais e para combater as teorias conspiratórias infundadas, opina Ceballos. “Por isso, tantos documentaristas estão centrando seu interesse nesse aspecto. É um tema fascinante, mas dedicamos nossa vida a isso.” O primeiro, que é desvendar complôs, é o que fazem O Dissidente e The Assassins. O segundo é o que faz Q: No Olho da Tempestade (embora também mostre como os paranoicos da conspiração se tornam eles próprios OS conspiradores). Ou El caso Alcàsser (2019), onde Elías León Siminiani desmonta as desatinadas hipóteses sobre um triplo assassinato ocorrido na Espanha e disseminadas durante anos em horário de máxima audiência televisiva.

Para León Siminiani, o próprio sistema judicial consagra a ideia da construção de um relato —no seu caso, de fatos provados na sentença. “A Justiça se entronca com a necessidade da sociedade de construir e consumir relatos”, explica. “Por isso, entre outras coisas houve o true crime fazem tanto sucesso” – e os docuthrillers sobre teorias conspiratórias são apenas uma variante a mais desse gênero de documentários sobre crimes reais.

“Desativar uma teoria conspiratória é complicado porque se somam à passagem do tempo e ao desconforto que a verdade pode causar”, explica o diretor. Desconforto já que admitir que alguém acreditou e espalhou falsidades durante muito tempo “não é fácil”, e porque, talvez, a realidade seja mais perturbadora que qualquer fantasia. O também documentarista Justin Webster acredita que “o problema é que as pessoas sempre, e agora mais do que nunca, querem certezas. E não há certezas”. E acrescenta: “Se algo confirma seus preconceitos você não precisa pensar, e pensar exige; é doloroso. E o mais cômodo é jogar a culpa no outro”. Webster cita como exemplo as hipóteses sobre a origem da covid-19. “Não sabemos o que aconteceu, mas a história de que escapou do laboratório e que os chineses são os culpados é tão atrativa...”. E a alternativa, a de que teria passado de animais a humanos de forma espontânea, “é muito mais aterradora”.

Vários filmes de Webster, mais interessado em “encontrar a verdade por trás das conspirações que em reproduzi-las”, desativam teorias conspiratórias. Em Eu Vou Ser Assassinado (2013), ele se ocupa do caso de um advogado guatemalteco que encarregou seu próprio assassinato e deixou um vídeo culpando o Governo. O mistério já havia sido resolvido bem antes do filme começar a ser rodado, mas “a selva tinha crescido outra vez, e a maioria das pessoas acreditava que ele tinha sido assassinado”. Já O promotor, a presidente e o Espião (2019), que aborda a morte do promotor argentino Alberto Nisman dias depois de apresentar uma denúncia contra a então presidenta argentina Cristina Kirchner, encara um caso em aberto, no qual são confrontadas as hipóteses de suicídio e assassinato. Webster expõe os fatos em uma estrutura em forma de “diálogo socrático”, para que o espectador chegue por si mesmo à conclusão —que é clara, embora a série não a explicite porque “doutrinar tampouco ajudaria”.

Siminiani e Webster admitem que muitos espectadores não se convenceram com seus documentários. Depois de El caso Alcàsser, conta seu diretor, “houve um pouco de tudo, mas o documentário abriu uma porta”. Para Webster, “o bom é que as pessoas se conectam com esta forma de trabalhar para tentar entender coisas ao nosso redor que não entendemos bem”.

Outra série de não ficção recente oferece um exemplo de como é espinhoso tentar desativar certos delírios coletivos: em seu último trabalho, Can’t Get You Out of My Head, estreado na BBC em fevereiro, Adam Curtis —às vezes acusado ele mesmo de difundir teorias conspiratórias por suas ecléticas leituras geopolíticas— explora justamente o crescente peso dessas quimeras na sociedade ocidental, explicando como, no final da década de sessenta, um grupo que pretendia parodiar a crescente onda conspiratória difundiu a teoria de que por trás de todos os assassinatos políticos nos EUA estavam os Illuminati, uma esquecida sociedade secreta crítica à Igreja católica que tinha tido uma efêmera vida na Baviera do século XVIII. Tratava-se de expor algo tão absurdo que ninguém poderia acreditar. Mas essas histórias caricaturais começaram a ser levadas cada vez mais a sério por cada vez mais gente, misturados com conspirações reais como o programa MK Ultra de controle mental da CIA. “A linha entre a realidade da corrupção política e um mundo fantasioso de teorias da conspiração começou a se apagar nos EUA”, diz Curtis na série.

E nos últimos anos, com a população submetida a esse incessante e acelerado bombardeio de informação, ou de ruído, sob o qual frequentemente pode ser difícil distinguir verdade e ficção, e por onde os documentaristas tentam abrir caminho, os Illuminati não pararam mais de participar das nossas mais paranoicas fantasias.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_