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Um escritor em busca da fórmula mágica da paz

Sem terminar a escola e pulando entre empregos temporários por anos, o gaúcho José Falero escreveu ‘Os supridores’, um dos principais romances de 2020, sobre a periferia e feito na periferia

José Falero
O escritor José Falero, autor de 'Os supridores' (Todavia).Josemar Afrovulto
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José chegou à escola com a rima na ponta da língua: “Essa porra é um campo minado, quantas vezes eu pensei em me jogar daqui? Mas aí, minha área é tudo o que eu tenho, a minha vida é aqui e eu não consigo sair...”. Ele não tinha se preocupado em decorá-la, porque mais do que um poema para ler em voz alta em uma aula de Artes na sexta série, aqueles versos eram uma descrição honesta e densa —e ao mesmo tempo atraente— de tudo o que ele havia visto ao longo de seus 11 anos de vida no bairro onde nascera: a Lomba do Pinheiro, na periferia de Porto Alegre. Ali, o objetivo era só declamar a letra inteira diante dos colegas. Mas ele não teve tempo. Quando se preparava para entrar no quinto verso (“É muito fácil fugir, mas eu não vou...”), a professora lhe deu um grito maior: “Aqui você não vai falar essas coisas de maloqueiro!”.

Seria a última vez que o jovem falaria em sala de aula em muito tempo. “Aquilo ali era um lugar hostil pra caralho”, relembra ele em entrevista ao EL PAÍS, agora acrescido do sobrenome, Falero, exigência da sua profissão: escritor. “Eu não pertencia àquilo. Meu jeito de se vestir, de falar, as coisas que eu gostava, eu não era aceito do jeito que eu era”, continua.

No ano passado, aquela rima, parte da letra de Fórmula mágica da paz, do clássico álbum Sobrevivendo no inferno (1997) dos Racionais MC’s, retornou ao mundo não como um poema interrompido numa aula, mas como pano de fundo na história de Pedro e Marques, dois repositores de um supermercado precarizado da periferia da capital gaúcha. Eles protagonizam Os supridores (Todavia), primeiro romance de José Falero. No enredo, Pedro usa seu repertório intelectual para convencer o colega de trabalho, o intempestivo Marques, a vender maconha.

“Eu não quero mais saber de ética, de moral, de lei, de certo ou errado. Foda-se tudo! Eu quero é ficar rico. Eu quero dinheiro. E outra: quero logo!”, diz Pedro ao comparsa na iminência de colocar o plano em prática. A bonança de fato acontece, atraindo mais gente para o negócio, como a esposa de Marques e um outro colega do supermercado, Luan, dando a tônica de boa parte do livro. Porém, não demoram a surgir dilemas que permeiam uma vida dedicada ao crime.

“Não há nada igual ao José Falero na literatura brasileira”, diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor, entre outros, de Literatura brasileira: modos de usar (L&PM). “Em Os supridores, ele demonstra não apenas a busca por uma validação da língua falada naquele mundo, das periferias do país, que já vimos em escritores como Ferréz e Paulo Lins, mas também um domínio absoluto da chamada norma culta”, completa.

Os supridores é, assim como O avesso da pele, de Jeferson Tenório, Marrom e amarelo, de Paulo Scott, e Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, resultado de uma geração contemporânea de escritores que, apesar das diferenças narrativas e das influências literárias, têm em comum o foco na discussão do racismo e da desigualdade social no Brasil. “Cada um deles tem sua própria carga de inconformismo, mas o Falero possui um tom irônico que lhe é próprio. Ele leva a discussão a sério, mas sabe que é possível rir disso também”, explica Leandro Sarmatz, editor responsável por encontrá-lo e levá-lo à Todavia.

A escola permaneceria hostil a Falero de muitas formas até o ensino médio. Primeiro, por deslegitimar todas as coisas que lhe interessavam —as letras dos Racionais MC’s que, decoradas, eram moedas de troca entre os amigos, os filmes de ação a que assistia ou os animes. Depois, por ela ser longe de casa. “Demorou um tempo para eu entender o porquê de os colégios públicos de ensino médio de Porto Alegre serem todos no centro da cidade. Não é casual, mas uma forma de exclusão. Não era todo dia que eu tinha grana para a passagem de ônibus e, quando tinha, muitas vezes faltava para comer. Chegava em casa depois de duas horas morrendo de fome”, conta.

“Mas o mais difícil foi quando eu percebi que tinha que ajudar em casa. Esse é um dilema comum aos jovens da periferia. E eu escolhi trabalhar”, continua Falero, explicando a saída precoce da escola, aos 16 anos. Ele só voltaria a uma sala de aula em 2020, aos 34 anos —já com um livro publicado, Vila Sapo (Venas Abiertas), de 2019—, para recuperar o ensino médio por meio do EJA (Educação de Jovens e Adultos). O diploma chegou às suas mãos, enfim, neste mês de julho.

A escrita permaneceu na vida de Falero como prática e estudo constante, embora não mais guiada pela lógica escolar. O aperfeiçoamento do processo criativo começou nos roteiros com desfechos diferentes para os desenhos japoneses que consumia pela televisão. Depois, virou prática esforçada, quando ele escrevia e desenhava as próprias histórias usando familiares e amigos como personagens. “Chegou a um ponto que eles batiam em casa perguntando quando sairia a revistinha seguinte.” Com o tempo, os traços viraram palavras, em crônicas que ele escrevia mentalmente enquanto perambulava em empregos temporários.

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Pago para escrever

Sem terminar o ensino médio, Falero fez de tudo: foi ajudante de obra (ou, como se diz na periferia de Porto Alegre, “cachorro” de pedreiro), assistente de gesseiro e de cozinheiro. Assim como os personagens de Os supridores, também trabalhou em mais de um supermercado. “Em um deles, minha primeira função era recolher carrinhos no estacionamento. Eu tinha inveja dos repositores, porque eles eram mais velhos, ganhavam mais, pareciam ter mais importância. Daí eu fui promovido a repositor e descobri que era uma merda também: trabalhava muito e ganhava pouco”, relembra.

Conciliando bicos aqui e ali com a sua produção literária, Falero passou a conceber suas histórias cada vez mais próximas da sua realidade. Escrever era, assim como empilhar blocos em uma parede ou recolher carrinhos de compras, sua profissão —embora ainda não remunerada. “Eram duas jornadas intensas de trabalho, apesar de só ganhar por uma delas”, conta ele, radicalizando uma postura consagrada pelo mineiro Luiz Ruffato, autor de obras como Eles eram muito Cavalos (Companhia das Letras), que, aliás, foi pipoqueiro e atendente de boteco na adolescência.

Foi assim que Os supridores começou a ser elaborado uma década atrás. “Os pedreiros riam de mim na obra em que trabalhava”, comenta Falero. “Mas eu entendia. Não ficava com raiva deles. Escritor não é um lugar destinado para a gente mesmo. Nós somos historicamente lixeiros, faxineiros, pedreiros, não escritores. Nem eu me considerava escritor”, afirma.

José Falero
Falero: “Não era todo dia que eu tinha grana para a passagem de ônibus e, quando tinha, muitas vezes faltava para comer”.Josemar Afrovulto

Para Fischer, ao contrário, Falero reelaborou o próprio fazer literário. “É um escritor que vai além da tradição realista ocidental, da produção de livros de classes confortáveis sobre pobres. É alguém cujo horizonte é o da pobreza e que transita entre a língua falada naquele mundo e a linguagem sofisticada”, argumenta o professor. “Lima Barreto, por exemplo, tinha um antecedente social semelhante, mas isso não se refletia no texto”, completa.

Sarmartz, editor da Todavia, concorda com a análise de Fischer. “Ele coloca, em um mesmo romance, uma linguagem passadista, amparada em clássicos literários, com as falas das vilas de Porto Alegre. Isso fica muito evidente na cena da emboscada, por exemplo”, diz, apontando para um momento de tensão de Os supridores, quando o grupo de Pedro e Marques bola um plano para retomar o controle de uma área perdida para traficantes rivais.

Da mesma forma que se negava o rótulo de escritor, Falero não deixava de ver literatura em tudo: em um diálogo marginal entre dois colegas, em um conflito no caixa do supermercado ou em uma história de um conhecido do bairro que lhe chegava aos ouvidos. Tudo foi transformado em insumo tal como suas inspirações mais explícitas, como as narrativas de Quentin Tarantino em Pulp Fiction (1994), o estilo épico da escrita de Eiji Yoshikawa, autor do clássico Musashi (Estação Liberdade), a ironia de Machado de Assis, e a construção de personagens que fez franquias de games como Mortal Kombat e The Legend of Zelda se tornarem mundialmente famosas. Tudo isso está em Os supridores.

Após muitas revisões e negativas de editoras, José Falero pode concluir seu romance graças a um emprego de porteiro em um prédio de classe média alta no bairro Bela Vista, em Porto Alegre, conciliando dupla jornada. Foi ali, em uma pequena cabine, que ele passou madrugadas inteiras aquecido do frio da capital gaúcha afinando a história de seu livro. “Depois das 22h, não tinha mais movimento, então ficava sozinho até amanhecer. Foi a primeira vez na vida que fui pago para escrever”, comenta.

Entre a conclusão do romance e a vida como porteiro, Falero não deixou de trabalhar também como distribuidor de sua própria obra literária: o livro de contos Vila Sapo, lançado em 2019. “Cruzava Porto Alegre com os exemplares na mochila. O dinheiro das vendas que ia entrando já ia saindo. Pegava 30 reais aqui e comia um lanche no caminho. Daí pegava mais 30 ali, já tinha que pagar a passagem e comprar alguma coisa no mercado. Não dava para viver disso”, explica.

Vida de escritor

Desde que Os supridores foi lançado, em novembro de 2020, José Falero abandonou a jornada dupla: agora, ele escreve crônicas semanais na revista literária gaúcha Parêntese. Dividido entre a Lomba do Pinheiro, onde vive na mesma casa da infância com sua mãe, e Belo Horizonte, cidade de sua namorada, a escritora Dalva Maria Soares, ele ainda conta com os recursos dos direitos sobre as vendas dos dois livros e de uma agenda quase sempre lotada de rodas de conversa e palestras. Segundo a editora, o livro já atingiu a marca de 5.000 cópias vendidas —que, no segmento editorial brasileiro, é a definição de um sucesso de mercado.

Em paralelo, Falero está refinando sua próxima publicação: uma coleção de crônicas, prevista para ser lançada em outubro deste ano também pela Todavia. No fim de junho, ele vendeu os direitos de Os supridores para uma produção audiovisual, ainda sem prazo de lançamento e formato definido.

Antes da pandemia, o autor voltou à escola onde, décadas atrás, a professora lhe expulsara da sala por recitar Racionais MC’s durante uma aula. O sentimento, mais do que a lembrança ruim, foi de surpresa. Não apenas porque, ao longo destes anos, o grupo de rap paulistano se tornara leitura obrigatória do vestibular da Unicamp, uma das principais universidades do Brasil, ou porque ele retornava ao local agora como escritor, ou porque a escola ainda pode ser um lugar hostil para muitos adolescentes espalhados pelo Brasil. “É que agora tem uma biblioteca enorme e pulsante lá.”

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