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‘Cine Marrocos’ coloca as pessoas que a sociedade escolhe não ver “na vitrine mais bonita do mundo”

Documentário de Ricardo Calil conta as histórias de pessoas que ocuparam o antigo Cine Marrocos, no centro de São Paulo, e que viraram estrelas da sétima arte depois de uma oficina de interpretação

Valter Machado, um dos moradores da ocupação no Cine Marrocos.
Valter Machado, um dos moradores da ocupação no Cine Marrocos.Loiro Cunha
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Valter Machado é um técnico de iluminação teatral que sofreu uma grande depressão após a morte do pai. Tatiana Oliveira sonha em ser uma campeã de MMA em Las Vegas. Dulce Tavares veio de Cabo Verde após terminar um casamento abusivo. Junior Panda, um jornalista congolês, teve que fugir do regime ditatorial de seu país. Esses são alguns dos protagonistas de Cine Marrocos, documentário dirigido por Ricardo Calil, vencedor do Festival É Tudo Verdade em 2019, que estreou nesta quinta-feira, 3 de junho. O longa conta as histórias dos que habitam o antigo cinema homônimo no centro de São Paulo —um palácio de luxo e da opulência de outrora—, ocupado entre 2013 e 2016 por pessoas sem-teto e imigrantes latino-americanos e africanos. Cerca de 2.000 pessoas de 17 países viveram no Cine Marrocos e aproximadamente 30 delas participaram de uma oficina de atuação para reencenar clássicos como Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, e Júlio César (1953) de Joseph L. Mankiewicz. Diante das câmeras, todos eles se convertem em estrelas da sétima arte.

Uma das maiores e mais majestosas salas de cinema da América Latina, o Cine Marrocos sediou, em 1954, o primeiro Festival Internacional de Cinema do Brasil —que contou com a presença de estrelas do calibre de Erroll Flynn, Jean Fontaine, Jeanette MacDonald, Ann Miller—, quando foram exibidas obras como Noites de circo (1953), de Ingmar Bergman e A grande ilusão (1937), de Jean Renoir, entre outros. Depois de ser tombado pela prefeitura de São Paulo em 1994, quando encerrou suas atividades, e, posteriormente, desapropriado em 2010, o prédio ficou sem utilidade até a ocupação coordenada pelo Movimento Sem-teto de São Paulo (MSTS), em 2013. “Em 2015, li uma notícia sobre a ocupação e fiquei fascinado com a ideia de um cinema virar lar”, conta ao EL PAÍS Ricardo Calil, diretor de Uma noite em 67, Eu sou Carlos Imperial e Os arrependidos (que venceu o É Tudo Verdade este ano).

“Quando fui visitar o prédio, vi que todos os espaços estavam ocupados, exceto a sala de cinema, então resolvi ocupar essa sala e a tela, reativar o cinema mesmo que temporariamente, para exibir aos moradores os filmes daquele festival de 1954″, continua o cineasta. A equipe do documentário fez panfletagem na porta do edifício para convidá-los para as sessões e, depois, para as oficinas de interpretação, que aconteceram ao longo de 30 dias, durante as noites. “Era complexo, porque estava todo mundo batalhando ali no dia a dia e não era fácil sentar para ver um filme antigo, em preto e branco e tal... 50 pessoas se inscreveram para a oficina e batemos papo com todas elas. No final, 30 conseguiram tirar realmente um tempo para fazer”, conta Calil.

Um híbrido que reúne várias linguagens do gênero documental, Cine Marrocos transita por passado e presente, luxo e precariedade, realidade e ficção. O público conhece as histórias de gente como a ex-bailarina Volusia Gama, que perdeu tudo por conta da depressão, ou o refugiado camaronês Yamaia Mohamed através de entrevistas pessoais, enquanto assiste também as oficinas de preparação de atores, vendo-os rolar pelo chão, cantar em coro, emocionar-se de olhos fechados. Por fim, Volusia desliza pelas majestosas escadas do cinema na sua reencarnação de Norma Desmond, de Crepúsculo dos deuses e Yamaia faz, em rap, o monólogo de Marco Antônio (interpretado por Marlon Brando) em Júlio César.

Cena em que Volusia Gama encarna Norma Desmond, de 'Crepúsculo dos deuses' no documentário 'Cine Marrocos'.
Cena em que Volusia Gama encarna Norma Desmond, de 'Crepúsculo dos deuses' no documentário 'Cine Marrocos'.

Cada um dos moradores emprestou mais do que a própria carne a cada personagem. Muitas das cenas dialogavam com suas próprias histórias. Foi o caso de Junior Panda, jornalista do Congo cujo pai era um ministro de Defesa e foi assassinado a mando do presidente do país: ao interpretar o tenente Maréchal (vivido originalmente por Jean Gabin), um soldado francês que acaba preso numa base alemã durante a Primeira Guerra Mundial, Panda o faz em sua língua natal, o lingala, e acrescenta ao monólogo: “Não há voz no Congo!”

“Esse é um filme de processo coletivo, o grande drama é que você sabe como começa, mas não sabe como termina”, comenta Calil. A equipe fez o documentário com pouco orçamento e em apenas dois meses pois, quando chegou, pairava sobre o Cine Marrocos a ameaça de uma reintegração de posse em 90 dias —algo que só aconteceu, de fato, um ano depois. O diretor conta que o que mais o surpreendeu foi a “riqueza das histórias” de vida que se concentravam naquele edifício. Com a afinidade quase imediata que se estabeleceu entre a equipe e os moradores —um dos aspectos mais bonitos do documentário—, vê-se aflorar belezas e talentos que contrariam o senso comum da sociedade sobre aqueles que vivem em ocupações. “Pessoas que são vistas como bandidos, invasores, são pessoas de imensa força, potência e dignidade. Não é que eu não esperasse isso delas, é que não esperava que fosse tanto e de forma tão comovente. São pessoas que a gente escolhe não ver e que merecem estar na vitrine mais bonita do mundo, que é o cinema”, afirma Calil.

O documentário mergulha no que é a vida em uma ocupação, tratando inclusive de assuntos espinhosos, como a suspeita de tráfico de drogas no local e, embora não apareça na edição, o diretor conta que o drama da provisoriedade do lar era central nas conversas e demais interações. “Todo mundo vive com o temor cotidiano de perder a casa de um dia para o outro. A luta pela casa é uma luta muito justa, muito nobre, é uma luta linda.” Calil gravou, inclusive, algumas cenas da reintegração de posse, na qual os moradores tiveram seus bens empilhados e levados por caminhões de lixo da prefeitura, como se suas histórias, memórias e eles próprios fossem descartáveis.

“Cada vez que eu vejo o filme, ele me pega num ponto diferente. É um documento sobre a luta por moradia, que é um direito humano”, comenta ao EL PAÍS Fagner Oliveira, autônomo —faz dreadlocks e toca tambor— que viveu no Cine Marrocos e fez parte do projeto como ator (reproduziu uma cena de Noites de circo) e na equipe de produção do filme. Ironicamente, Fagner é filho de um corretor de imóveis, mas escolheu nas ocupações uma “maneira de aquilombar-se” e viver em comunidade. “Fui para o Cine Marrocos porque vi toda a riqueza cultural que havia ali, naquela torre de Babel, por isso, quando o Ricardo [Calil] apareceu, pensei ‘esse cara é maluco, vou ajudar ele’, porque senti que mais pessoas tinham entendido a riqueza cultural daquele prédio naquele momento, que aquilo precisava ser documentado”, lembra ele, que hoje vive no interior de São Paulo, onde cuida da avó octogenária.

Fagner, que já tinha estudado teatro por um tempo e chegou a vender como camelô filmes antigos de diretores como Bergman e Akira Kurosawa, conta que a oficina de interpretação aproximou muitos dos vizinhos da ocupação. “Fortaleceu a ideia de que a nossa luta é uma só. Conheci a história de vizinhos que têm 11 filhos e lutam há 20 por moradia”, diz. Para ele, o momento mais bonito de toda a experiência foi quando o imigrante senegalês Joseph foi surpreendido no meio de uma oficina com um bolo pelo seu aniversário de 37 anos e ouviu um coro de “parabéns para você” em diferentes línguas. O momento, registrado pelo documentário, capta o sorriso do homem sério. Só mais um desses intervalos de fantasia que a realidade insiste em soterrar.

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