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O lado romântico de Picasso, revelado em joias indiscretas recém expostas

Exposição no Museu Picasso de Barcelona explora um dos universos criativos menos conhecidos do artista: a joalheria

Pablo Picasso com Françoise Gilot e seu sobrinho Javier Vilato na praia, em agosto de 1948.
Pablo Picasso com Françoise Gilot e seu sobrinho Javier Vilato na praia, em agosto de 1948.Robert Capa © International Cen (MUSEO PICASSO)

Setembro de 1937. Picasso passa o verão nas praias de Juan-les-Pins com o casal formado por Paul e Nusch Éluard, fotografados de modo jubiloso por Dora Maar, que na verdade se chamava Henriette Theodora. Desde que conheceu Picasso no café Les Deux Magots, em Paris, mexendo em uma navalha e brincando de não cortar o dedo, estavam juntos havia mais de um ano e tinham superado a eclosão de uma Guerra Civil que ele condensou no mural mais famoso do mundo, Guernica. Ela havia terminado com Bataille, e ele com Marie-Thérèse, mãe de sua filha Maya, e a paixão fluía tanto quanto o flash de uma câmera fotográfica que não deixava escapar nenhuma anedota.

Depois daquele ano, ambos necessitavam de uma pausa na praia que a Tate Modern guarda em sua coleção. Dora Maar usa um colar de conchas e um biquíni branco que já havia se tornado um ícone cultural. O colar foi feito por Picasso para agradecer sua companhia enquanto pintava o Guernica, documento tão inestimável quanto esta miçanga improvisada, que ninguém sabe onde está exceto a casa de leilões Maison de la Chimie, em Paris, onde uma grande quantidade de joias de Dora Maar foi parar quando ela morreu em 1997. Foi o primeiro colar de muitos. O artista há muito colocava miçangas nos decotes das mulheres que pintava e costumava comprar pingentes e bugigangas em mercados de pulgas, fazendo intervenções como pequenos desenhos ou gravuras e que usava para paquerar. Eva Gouel, Fernande Olivier, Gabrielle Depeyre, Diane Deriaz... Às vezes com sorte e outras com desventura, as joias pareciam um barômetro de suas relações amorosas. Um pequeno museu portátil de afetos imperfeitos.

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Dora mudou tudo. Os melhores ornamentos foram para ela, inclusive os poucos anéis que o malaguenho desenhou e que agora estão na exposição que o Museu Picasso de Barcelona dedica às suas joias, uma das áreas menos estudadas de sua trajetória. Uma pequena proeza para um museu que viu seu orçamento encolher depois da queda do turismo neste ano e também da dimensão desta exposição, pensada inicialmente em uma escala maior. Mesmo assim, funciona bem como gabinete. No total, reúne 86 peças espalhadas pelo mundo e quase o mesmo número de peças de outros artistas cedidas pela coleção de Clo Fleiss, amiga pessoal de Emmanuel Guigon, diretor do museu, e um tanto relutante em expor sua caixa de tesouros. Em apenas três ocasiões deixou ver parte desse patrimônio de joias minúsculas, mas de incalculável valor. Entre as descobertas: uma pulseira de couro de Meret Oppenheim que deu origem à sua emblemática Le Déjeuner en Fourrure (1936), hoje propriedade do MoMA, e as joias feitas a partir de batatas germinadas de Jacqueline de Jong, artista da Internacional Situacionista.

Pablo Picasso. ‘Pingente com rosto feminino’ (edição única), Vallauris, 7 de junho de 1950. Terracota. Coleção particular, Paris. © Sucessão Pablo Picasso, VEGAP, Madri, 2021.
Pablo Picasso. ‘Pingente com rosto feminino’ (edição única), Vallauris, 7 de junho de 1950. Terracota. Coleção particular, Paris. © Sucessão Pablo Picasso, VEGAP, Madri, 2021.© Sucesión Pablo Picasso, VEGAP, Madrid 2021

Picasso foi prolífico ao estampar pingentes de argila. Ao fazê-lo, refletiu os temas que ocupavam sua cabeça e sua obra, cabeças de mulher ou de fauna. Sempre recusou a produção em série, razão pela qual cada peça é diferente. Sua coleção de medalhões é, certamente, o melhor da seleção, onde o artista indaga as possibilidades da cerâmica. Peças monocromáticas e minimalistas contrastam com outras cheias de cor. Alguns funcionam quase como amuletos. Vários foram assinados com o dedo indicador. Outros, com a data simplificada: “Juin 50” [junho de 1950]. Em raras ocasiões, fundiu as peças em ouro. Vemos isso também em uma série de fotografias da época que ajudam a contextualizar toda essa produção, que já em 1938 Gertrude Stein vinculou à sua infância, em contato com seus tios ourives. Uma saga que continua com sua filha Paloma Picasso, ligada à empresa Tiffany & Co., e sua neta Diana Widmaier (filha de Maya Picasso), que desenha para a princesa Olympia da Grécia e Mick Jagger.

A concatenação de histórias é fascinante. Outro colar relevante: aquele que Françoise Gilot usa em outra praia e em outra fotografia mítica, desta vez de Robert Capa, na qual Picasso segura um guarda-sol acompanhado por Javier Vilató. Data de 1948 e o pingente tem uma pedra central sobre a qual o artista desenhou um mocho. Um animal confuso que também poderia ser uma coruja, símbolo da deusa Atena, referência picassiana por excelência. O valor simbólico é semelhante ao do colar de conchas de Dora Maar: um registro do amor furtivo por uma mulher que também partiu seu coração.

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Verdadeira paixão

Brassaï disse em suas Conversas com Picasso que chegou a confessar-lhe na década de quarenta que essas pequenas miniaturas esculpidas e marginais eram para ele uma “verdadeira paixão”, embora durante décadas tenha se recusado a mostrá-las em público. Por pudor? Três das obras que vemos nesta mostra já foram apresentadas numa exposição mítica, Joias de Artista, no MNAC [Museu Nacional de Arte da Catalunha] em 2010, com mais de 300 peças, a mais completa até a data. Um ano depois, o Museu de Arte e Design de Nova York investigou a ideia do artista joalheiro na exposição De Picasso a Koons, assim como a National Portrait Gallery de Londres em 2017 e o Museu de Artes Decorativas de Paris em 2019. Dado o zelo que Picasso tinha em mostrar suas joias, cabe perguntar o que pensaria ao ver esta exposição. Não destoa no bairro barcelonês de Born e na quantidade de lojas de artesanato que cercam o museu, muitas delas com peças inspiradas em Picasso, outras diretamente falsas réplicas. “A inspiração existe –diria ele–, mas tem que te encontrar trabalhando”.

Picasso e as Joias de Artista. Museu Picasso. Barcelona. De 21 de maio a 26 de setembro.

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