Ashley Audrain: “O medo tem uma relação tão forte com a maternidade quanto o amor”

Escritora, autora de ‘O impulso’, diz que literatura está abrindo espaço para mães que não são nem ‘loucas’ nem ‘perfeitas’. “Muitas vezes nos movemos entre esses dois extremos”

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Ashley Audrain antes da apresentação virtual de seu livro para a Espanha. Alex Moskalyk
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Ashley Audrain atende o EL PAÍS pelo Zoom de Toronto, onde mora, apenas uma hora antes da apresentação virtual, para a Espanha, de seu livro O impulso —publicado no Brasil pela editora Paralela/Companhia das Letras. Exibe um sorriso radiante e responde sem pressa, dando-se tempo para a reflexão, às perguntas suscitadas por esse romance de estreia destinado a ser um sucesso editorial: aparece na lista dos livros mais vendidos do The New York Times, está em primeiro lugar no Canadá desde sua publicação e, até o fim deste ano, será lançado em 30 países. Ex-diretora de comunicação da Penguin Books do Canadá, Audrain reconhece que na concepção de O impulso pesou mais sua experiência com a maternidade (é mãe de dois filhos) do que seu conhecimento do setor editorial.

“Exatamente porque conhecia o setor e sabia como é difícil publicar e vender um livro, quando comecei a escrever não fiz isso com nenhuma expectativa. Simplesmente escrevia para mim mesma, e acho que, por isso mesmo, o livro é tão sombrio e entra em lugares tão tenebrosos. Se eu tivesse pensado em um leitor final, certamente não teria escrito da mesma forma”, afirma. É nos lugares sombrios da experiência materna, nas ambivalências e nos medos, que mergulha esse thriller psicológico com um final digno de Objetos cortantes, que se inscreve no cada vez mais popular gênero de mum noir, o romance policial materno: “Desde que sou mãe, vejo que há uma ligação muito grande entre a maternidade e o medo. Tão grande como entre a maternidade e o amor. Você não pode ser mãe sem sentir esse medo profundo de que aconteça algo com seu filho, de estar fazendo mal as coisas como mãe... É um medo que te consome e a literatura é um lugar muito bom para explorá-lo.”

Pergunta. Há um momento no que Cecilia, a mãe de Blythe, a protagonista, diz a ela que antes de ser mãe queria ser poeta. “Você pode tentar de novo”, responde sua filha. “Não, já não resta nada dentro de mim”, conclui Cecilia. Ao ler essa frase pensei em você, que começou a escrever o romance quando seu filho tinha seis meses. Um filho esvazia ou preenche a capacidade de escrever?

Resposta. Tenho ouvido e lido sobre outras escritoras que contam como, em seu caso, a maternidade tirou delas essa espécie de energia criativa. A maternidade te absorve muito. Isso também aconteceu comigo quando tive meu primeiro filho, mas no meu caso eu quase diria que em grande medida me ocorreu o contrário, surgiu em mim uma espécie de força criativa enorme e senti uma necessidade muito forte de escrever. Eu sempre quis escrever, mas nunca tinha tido esse desejo, essa vontade ardente. Quando fui mãe, aí sim senti isso. Olhando para trás, acho que não poderia ter escrito esse livro se não tivesse sido mãe.

P. O romance é um sucesso editorial, publicado em 30 países, incluindo o Brasil. Certamente isso tem muito a ver com seu estilo de thriller, com o fato de ser um daqueles romances que viciam, mas você acredita que esse sucesso também demonstra que a maternidade é um assunto que ganha cada vez mais destaque e reconhecimento no mundo literário?

R. Cada vez há mais apetite por parte dos leitores e mais demanda por explorar o mundo da maternidade e sua ligação com o medo. Afinal, todos esses livros que estão aparecendo e que transitam no campo do thriller psicológico, do que se resolveu chamar de mum noir, tratam dos piores medos das mães. Desde que sou mãe, vejo que há uma ligação muito grande entre a maternidade e o medo. Tão grande como entre a maternidade e o amor. Você não pode ser mãe sem sentir esse medo profundo de que aconteça algo com seu filho, de estar fazendo as coisas mal como mãe... É um medo que te consome e a literatura é um lugar muito bom para explorá-lo.

“Desde que sou mãe, vejo que há uma ligação muito grande entre a maternidade e o medo”.
“Desde que sou mãe, vejo que há uma ligação muito grande entre a maternidade e o medo”. Unsplash

P. Era necessário que, longe da idealização habitual, a literatura abordasse esse lado mais sombrio da maternidade?

R. É claro, porque muitas vezes nos movemos entre dois extremos de mãe: de um lado, a mãe totalmente descontrolada e louca. Do outro, a mãe perfeita e ideal que toma todas as decisões certas. A literatura está abrindo espaço para as mães que estão no meio, que afinal somos todas. As mães que em um dia se sentem loucas e, no dia seguinte, perfeitas.

P. Até recentemente, no entanto, parecia que renegar a experiência era quase um tabu. Você acha que, além da literatura, os blogs e as redes sociais ajudaram muito a quebrar esse tabu?

R. Tenho sentimentos mistos quanto a isso. Por um lado, acredito que as redes sociais nos permitiram compartilhar muito mais coisas do que antes, abrir nossas vidas para o exterior. Por outro lado, porém, também acredito que censuramos o que dizemos. Ou seja: por uma lado, as mídias sociais nos incentivam a compartilhar nossas coisas, mas aplicamos um filtro nessas coisas, porque as redes sociais também nos abrem para o julgamento dos outros. É uma relação conflitante. Acho que minha geração é a primeira a ser mãe nas mídias sociais, e isso acrescenta um novo nível de complexidade na maternidade.

P. Há muitos assuntos para abordar em seu romance. Um é o das três maternidades que se entrecruzam nele: Etta, Cecilia e Blythe. Avó, mãe e filha, todas marcadas pela maternidade e pelo abandono. É impossível escapar dessa genética materna autodestrutiva?

R. O que eu estava explorando com essas três gerações de mães é uma pergunta. Podemos escapar do nosso passado? Podemos deixar de lado a bagagem que carregamos? Basta querer ser diferente? Blythe tenta com todas as forças escapar desse passado, está desesperada para ser diferente da mãe que teve, mas carrega um peso tão grande que a mutila e a incapacita.

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P. E depois estão as expectativas que o marido e os sogros colocam em Blythe. Até que ponto essas expectativas continuam pesando na experiência materna?

R. As expectativas sociais sobre a maternidade são um peso enorme para as mulheres. Foi o que eu, pelo menos, senti. A sociedade diz constantemente o tipo de mãe que devemos ser, como devemos nos sentir e até como devemos falar sobre a maternidade. E isso é algo que vejo até em relação à minha filha de três anos. Vejo como falam com ela, os brinquedos que lhe dão, a forma como as pessoas brincam com ela... Desde pequenas, vão nos impregnando a mensagem de que isso é instintivo e você tem de gostar. E pode ser que para muitas mulheres seja assim, mas não para todas. Estabelecemos uma conexão tão estreita entre a maternidade e o que é ser mulher que isso, do meu ponto de vista, acaba sendo muito problemático para muitas mulheres. E a sociedade não diz isso apenas às mulheres, diz também aos homens. Fox, o marido de Blythe, é o exemplo: ele sente que precisa de, ou merece, um determinado tipo de mulher, que a mulher com quem se casar deve ser uma mãe perfeita, como a dele. E quando sua expectativa não é cumprida, sente que sua situação se deve ao fracasso de sua mulher com a maternidade.

P. Gosto muito da personagem da filha, Violet, porque quebra o mito da inocência e da pureza infantis.

R. A ideia me fascinava. Todos nós adoramos acreditar na inocência natural de uma criança, acreditar que não são capazes de fazer alguma malvadeza, mas as crianças são, sim, capazes de coisas assim. E existem exemplos disso. Mas sempre se prefere acusar os pais e, principalmente, as mães das crianças que saem assim. Mas não acredito que seja o caso. Todos queremos que nossos filhos sejam boas pessoas, mas a verdade é que não estamos no controle. Frequentemente, quando vejo na televisão casos de adultos que fazem coisas terríveis, penso inconscientemente nos pais deles, em quem serão. Não para julgá-los, mas por curiosidade. Eu me pergunto como deve ter sido criar aquela pessoa quando era uma criança, em que momento esses pais perceberam que seu filho era capaz de fazer coisas assim.

P. A morte de Sam, o filho mais novo do casal, desfecha o golpe final na relação entre Blythe e Fox, que já começava a se desfazer. “Não há casal capaz de imaginar como será sua relação depois de ter filhos”, escreve.

R. Exatamente. Isso é algo que sempre me fascinou. Quando um casal tem um filho, os dois progenitores mudam muito como indivíduos. É quase impossível explicar o quanto que a gente muda assim que o bebê aparece. Mas, ao mesmo tempo, há uma pulsão para voltar à mesma relação de casal de sempre, tendemos a pensar que vai continuar funcionando do mesmo jeito, como se não houvesse acontecido nada. E isso é impossível. A relação que surge após a maternidade é nova e pode haver problemas se tivermos a expectativa de tentar manter a mesma relação de antes.

P. Blythe reclama que Fox já não a vê como mulher, apenas como a mãe de sua filha.

R. Acredito que muitas mulheres sintam algo parecido. De fato, muitas me escreveram a respeito de uma cena em que vemos tudo que Blythe faz ao longo do dia, uma lista interminável de tarefas (limpar, lavar, esfregar, cozinhar, alimentar as crianças, vesti-las e trocá-las etc.). É uma cena muito simples, mas com a qual as mães se identificaram muito, principalmente no final, quando Blythe fala de si mesmo como se fosse uma máquina. Todo mundo em seu mundo precisa dela por razões físicas. Mas ela, que passou a vida tentando ser escritora, de repente percebe que a única coisa que valorizam nela são todas essas tarefas domésticas que tem de fazer ao longo do dia.

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