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Artistas pintam as memórias do hoje e acendem a intuição do público para quando a alegria voltar

Artistas brasileiros lidam com a inevitável interferência da pandemia da covid-19 em suas inspirações. “É impossível blindar o coração para a realidade e, sem coração, não se cria. Quanto mais grave a situação, menos se deve ficar calado”, diz Iole de Freitas

Obra em monotipia e pintura de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.
Obra em monotipia e pintura de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.

O artista plástico baiano Alberto Pitta sonha com o Carnaval. Fundador e diretor artístico do Cortejo Afro, em Salvador, ele tem fé de que a festa e alegria voltarão às ruas quando a pandemia de covid-19 passar. “Acredito que será uma celebração com instalações nas ruas, com mais arte, em todos os sentidos”, diz ao EL PAÍS. Pioneiro das estamparias baiano-africanas, que desenvolve com serigrafia e pinturas há mais de três décadas, Pitta diz ter necessidade de escrever nos panos, contar histórias nos tecidos, uma gana que se acentuou no último ano de recolhimento.

“Vivemos Tempos de cárceres [nome de sua última série de pinturas], não só pela pandemia, mas também pelo momento político do país. Mergulhei na pintura, nos tons terrosos que me remeteram às pinturas rupestres de nossos ancestrais, neste momento em que, de certa forma, nos vemos forçados a nos recolher em nossas cavernas”, comenta.

Pintura da série 'Tempos de cárceres', de Alberto Pitta.
Pintura da série 'Tempos de cárceres', de Alberto Pitta.
Pintura da série 'Tempos de cárceres', de Alberto Pitta.
Pintura da série 'Tempos de cárceres', de Alberto Pitta.

O resgate de uma arte ancestral é um dos pilares do trabalho de Jaider Esbell, indígena da etnia Makuxi natural de Roraima (nasceu na que hoje é reconhecida como Terra Indígena Raposa Serra do Sol). “A gente trabalha com a memória. Quem eu sou? De onde eu vim? Para onde eu vou?”, diz ele, que também trabalha com objetos e desenhos, mas que tem se voltado mais para a pintura. Suas obras mais recentes se destacam pelo fundo preto sobre a tela branca e o uso da tinta de jenipapo. “A gente sempre pintou o corpo, nossas panelas de barro... A pintura é, junto com a narrativa oral, um dos pilares de nossa cultura. Esse fundo preto traduz o grande medo coletivo, o grande abismo, a ideia de fim de mundo”, comenta o artista, cujas obras mais recentes estão na exposição Apresentação: Ruku, na Galeria Millan, em São Paulo.

'A festa do jacaré', obra de Jaider Esbell.
'A festa do jacaré', obra de Jaider Esbell.
'De onde surgem os sonhos', obra de Jaider Esbell.
'De onde surgem os sonhos', obra de Jaider Esbell.

Para a mineira Jeane Terra, a função da arte também é retratar o tempo e ajudar a construir a história através da memória. Enquanto ela preparava uma exposição individual sobre perdas e lembranças de uma cidade de Atafona (RJ), que vem sendo engolida pelo mar, passou a vivenciar um paradoxo com a reclusão imposta pela pandemia: “Enquanto eu relatava na obra a despedida de pessoas que deixavam suas moradas, a necessidade de distanciamento social exigia a permanência da população em suas casas”, relata. A artista conta que suas obras foram ressignificadas pelo recolhimento e pelas perdas de vidas ao seu redor. “O meu trabalho se transformou em uma sentinela desse novo cotidiano. Ele tem sido um grito.”

'Escavação Capilar - Pontal', instalação de Jeane Terra na vitrine da galeria Simone Cadinelli, no Rio de Janeiro.
'Escavação Capilar - Pontal', instalação de Jeane Terra na vitrine da galeria Simone Cadinelli, no Rio de Janeiro.Vicente de Mello


Instalação 'Escavação Capilar - Pontal', de Jeane Terra.
Instalação 'Escavação Capilar - Pontal', de Jeane Terra.Fernando Souza

Iole de Freitas, que iniciou sua carreira na arte contemporânea nos anos setenta, adota uma postura de “resistência pessoal” para manter seu fluxo criativo. Escritora, gravadora e artista multimídia, são famosas suas grandes esculturas em chapas de aço, mas agora ela conta que seus trabalhos se tornaram, em suas palavras, mais flexíveis e mais leves. “Tenho feito obras com mais movimento, com curvaturas e ângulos que fluem mais”, diz. A artista acredita que é inevitável que o momento coletivo que o país atravessa interfira em suas inspirações. “É impossível blindar o coração para a realidade e, sem coração, não se cria. Quanto mais grave a situação, menos se deve ficar in. A arte te leva a entrar em si mesmo, mas também a sair mais de si mesmo. Ela existe para chegar ao outro”, reflete.

'Sou minha própria arquitetura', escultura de Iole de Freitas.
'Sou minha própria arquitetura', escultura de Iole de Freitas.Sergio Araujo

Contemporâneo de Freitas, o artista Carlos Vergara continua trabalhando incessantemente em seu ateliê em Santa Tereza, no Rio de Janeiro. “Meu trabalho é meu refúgio”, garante. Ele diz, no entanto, não fazer obras que tenham, necessariamente, um discurso sobre o momento atual. “Prefiro acordar a intuição do público.” Além dos trabalhos com monotipia e pintura, a solidão fez com que Vergara iniciasse, no ano passado, uma conversa sem palavras com alguns de seus pares, ressuscitando a mail art: enviou à nata das artes plásticas uma carta em que diz: “Te escrevo esta mensagem para você continuar” e, no verso de cada uma, desenhou um grande envelope, convidando cada interlocutor a completá-lo com sua imaginação. “Quando percebi essa coisa do distanciamento, quis conversar com os amigos. Até criamos uma associação de artistas, chamada Jacarandá, para discutir os trabalhos um dos outros e falar mal pela frente”, conta Vergara, bem-humorado.

Obra em monotipia e pintura de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.
Obra em monotipia e pintura de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.

Qual é seu melhor trabalho? “O próximo. Sempre olho para frente”, arremata.

Obra de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.
Obra de Carlos Vergara, produzida durante a quarentena, em 2020.

Quem faz o mesmo é o carioca Maxwell Alexandre, jovem talento da Rocinha que se consagrou no circuito internacional de arte nos últimos anos e de quem Vergara se diz admirador. “Raramente estou no agora. Hoje me sinto mais como um antropólogo, um observador de tocaia da realidade. Isso me permite não me emocionar com coisas mundanas. Sempre estou na nostalgia ou olhando mais à frente”, diz o jovem que inaugurará no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no dia 8 de maio, a exposição Pardo é Papel —em 2017, Maxwell começou a pintar autorretratos em folhas de papel pardo e não demorou a perceber, além da potência estética, o valor político de pintar corpos negros sobre papel pardo, uma vez que a “cor” parda é frequentemente usada para velar a negritude.

Pintura da série 'Pardo é Papel', do artista Maxwell Alexandre.
Pintura da série 'Pardo é Papel', do artista Maxwell Alexandre.

Durante a quarentena, Maxwell fez uma série de obras chamada Distanciamento social. Em uma das pinturas de destaque, personagens usam camisas da rede pública de ensino do Rio de Janeiro (um elemento recorrente em sua arte) sobre o rosto, como um símbolo de proteção contra o coronavírus. “Isso remente a um distanciamento social que sempre esteve presente: a cidade inteira estava de quarentena e a favela continuava descendo o morro para trabalhar e manter a cidade funcionando”.

Pintura da série 'Pardo é Papel', do artista Maxwell Alexandre.
Pintura da série 'Pardo é Papel', do artista Maxwell Alexandre.

Por um tempo, o que deixou de funcionar foi o processo criativo de Regina Parra. A artista plástica conta que à medida em que os assuntos de vida e morte foram ficando mais urgentes, ela se sentiu “bloqueada” criativamente. “Fiquei um tempão sem conseguir pintar, quase como um respeito a esse momento que estamos vivendo”, conta ela, que também trabalha com fotografia, vídeo e performance. Mas a inspiração voltou com força e Parra viu-se, sem novos prazos para exposições, livre para focar em um projeto ambicioso —em colaboração com Ana Mazzei— que, até então, não tinha encontrado tempo para desenvolver. Além de uma série de pinturas, ela mergulhou na criação de uma opera-rock em sete atos simultâneos, com 25 mulheres performers e quatro músicos tocando ao vivo dentro de uma instalação composta de esculturas gigantes.

'História Exemplares da Carne', obra em andamento de Regina Parra, em colaboração com Ana Mazzei.
'História Exemplares da Carne', obra em andamento de Regina Parra, em colaboração com Ana Mazzei. Lindsay Morris, cortesia The Watermill Center


“Meu desejo é que o público possa transitar livremente por esse espaço”, diz ela, que teme o “trauma coletivo que a pandemia vai deixar em relação ao corpo do outro e o contato com o outro”, mas, como todo artista, ousa pensar o amanhã. “Temos que pensar e desejar o impossível não porque sejamos lunáticos, mas para alargar o agora”, afirma. É, de certo modo, o mesmo que Iole de Freitas responde a quem lhe pergunta por que falar de arte agora: “Por que não arte agora?”

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