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Trabalhar cansa, e descansar nos deixa esgotados

As esferas do trabalho e do lazer, cada vez mais confundidas, levam a arte a proteger o tempo improdutivo contra a obrigação moral de aproveitá-lo

‘Limits to Play’ (2020) e ‘Permutations’ (2019), de Céline Condorelli, em exposição na galeria TEA em Santa Cruz de Tenerife, Canárias.
‘Limits to Play’ (2020) e ‘Permutations’ (2019), de Céline Condorelli, em exposição na galeria TEA em Santa Cruz de Tenerife, Canárias.SERGIO ACOSTA
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Farejando o mundo pós-covid-19, o lobo corporativo já mostra suas garras sob a pele de bichinho de pelúcia fofinho do teletrabalho. Certo, tudo bem. Mas o que acontece com seu rabo, o telelazer? Também é inevitável? Será que é tão salvador e milagroso como dizem? Jantares de sábado e entretenimento de massa monopolizados e cobrados a domicílio e a distância segura por plataformas on-line, das quais a Netflix seria o cinema com pipocas do shoppings e a Filmin, a sala descolada e indie perfeita para levar sua paquera no primeiro encontro. Maratonas de videogames que duram semanas e meses, feitas por gamers (desculpe pela cafonice) que substituem a bendita gangue do fundão da sala de aula. Decomposição da experiência cultural coletiva (teatro, shows, fantoches) em bolhas caseiras que anulam sua essência. Palestras, leituras e apresentações transmitidas pelas redes para um mundinho literário que agora pratica pelo Twitter a autopromoção e a crítica impiedosa tradicionais das panelinhas. Feiras e galerias que inauguram e exibem suas obras em viewing rooms (mais um caso de mau gosto) onde não falta a cafonice simbólica do passe VIP. Museus que são visitados interativamente (?) do sofá. Viagens de cidadãos comuns restritas, quando não simplesmente proibidas, com base em regras obscuras e muitas vezes incoerentes ou ineficazes (de dinamarqueses para Madri, ok, de murcianos para Pamplona, de jeito nenhum)…

E o Zoom como nova praça central (no momento, gratuita, mas nada pública) que, sem pensar, todos adotamos como lugar de (des)encontro. A ameaça real da covid-19, ou principalmente a reação política global, movida primeiro pela emergência e agora pela inércia dos interesses criados, acelerou uma tendência de atomização e monetização (outra palavra feia) do tempo lúdico, improdutivo e de descanso, que já vinha se impondo havia uma década.

O que a arte recente tem a dizer sobre isso? Dois Anos de Férias, o novo projeto de Céline Condorelli (Paris, 1974), em exposição até junho na galeria TEA de Santa Cruz de Tenerife, no arquipélago espanhol das Canárias, levanta a questão e propõe uma resposta. Coincidiu um mês com a exposição dupla de Nogueras Blanchard com June Crespo em Barcelona. Condorelli faz isso em todos os seus trabalhos, entre a arquitetura, a instalação, o relacional e o performativo. Com base em sua lúcida e articulada abordagem glocal ―global e local― à frente da TEA, seu diretor, Gilberto González, propôs à artista uma pesquisa que dialogasse diretamente nas salas com a excelente coleção permanente e com a identidade simbólica e econômica das Ilhas Canárias como pátio de recreio e lazer da Europa.

O tempo de trabalho e o de lazer, compartimentados no século XX, misturaram-se no XXI, física e simbolicamente. Quando as pessoas atualizam seus perfis nas redes às escondidas enquanto trabalham, estão “descansando” ou continuam trabalhando para corporações que lucram com seus dados? E “descansam” e deixam de “produzir” vendo séries compulsivamente em seus quartos? Na sala mais brilhante de seu projeto na TEA, Condorelli justapõe sua mobília de descanso projetada especificamente e inspirada nos aparelhos para parques de diversão do pós-guerra do holandês Van Eyck com o mítico vídeo Semiótica da Cozinha, de Martha Rosler, e com a filmagem da saída de operários de uma fábrica de Allan Sekula, ambos da TEA: as formas de exploração mudam para poder seguir o padrão das filmadas pelos irmãos Lumière em 1895; a cozinha doméstica agora é uma “indústria de cuidados” não remunerada e atribuída por inércia às mulheres duplamente confinadas em casas onde o homem se apropria do melhor quarto; no passeio pelo centro de arte, tudo parece entretenimento asséptico e edificante, mas fica invisível o trabalho dos técnicos que o tornam possível.

Sexo a distância

A alusão a Van Eyck lembra a exposição Playgrounds do museu Reina Sofía, em Madri, que em 2014 defendeu seu trabalho e a urgência política de preservar espaços físicos e mentais para o lazer: essa não-atividade ineficiente que o capitalismo tardio pós-covid-19 aproveita para otimizar (mais uma palavra feia). Outra exposição do Reina Sofía, Manhattan, Uso Misto, deu há 10 anos contexto histórico e sentido político às notícias que agora anunciam a explosão do preço dos escritórios em Nova York e em outras metrópoles globais. As empresas inquilinas e as imobiliárias que gentrificaram em ritmo acelerado tantos bairros baratos já não têm interesse em pagar esses aluguéis que elas mesmas encareceram. Claro que não! Agora podem atomizá-los e deslocalizá-los entre seus milhares de trabalhadores-bolha, no calor de um teletrabalho cuja regulamentação exigiria negociações coletivas que pegam os empregados com estruturas e leis obsoletas ou desmanteladas. Os riders (outra palavra bonitinha para os tradicionais entregadores) já vivem essa realidade em carne e osso, e brigam e pedalam judicialmente em consequência do fechamento de bares, restaurantes e pequenas lojas. O sexo, recreativo e glorioso, cujos espaços físicos e políticos foram analisados em 2017 na obra 1.000 m² de Desejo no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB), agora é produzido e consumido a distância em plataformas como OnlyFans, Chaturbate e Cam4, onde se confunde a ideia de prostituição e todos podem ser trabalhadores sexuais e clientes respeitando as distâncias sanitárias. Já não é necessária a pergunta fatídica: você tem um lugar para fazermos?

O jogo é uma estratégia criativa? Ou, Deus nos livre, é uma arte? Pode continuar sendo uma forma de resistência política? Ou estamos transformando o lazer em negócio até o último resquício, e, paradoxalmente, os adultos em crianças eternas, viciados em brinquedos ultrassofisticados e prisioneiros de uma vida social e política trivializada em bolhinhas de telas sem fim? Quando Pavese dizia, sibilino e profético, que “trabalhar cansa”, talvez expressasse negativamente um paradoxo que Condorelli e sua geração de artistas podem nos ajudar a elucidar. Estamos esgotados com o descanso. Ou levamos nosso lazer e nossos jogos muito a sério e os defendemos, ou, com ou sem a covid-19, perderemos seu poder político e libertador.

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