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Entre a Amazon e a pressão por mais tributo, como é difícil a vida das livrarias de rua no Brasil

Emparedadas entre as práticas agressivas de gigantes como a multinacional americana e as ameaças tributárias de Paulo Guedes, o setor editorial e livreiro resiste apesar da pandemia

Uma leitora no interior da livraria Simples, em São Paulo.
Uma leitora no interior da livraria Simples, em São Paulo.Reprodução / redes sociais

Num largo em frente à areia do Porto da Barra, uma das praias mais famosas de Salvador (BA), um pequeno prédio de dois andares abrigava um acervo de 15.000 livros. A livraria e sebo Porto dos Livros, que celebrava saraus e recitais, era um refúgio para os amantes da literatura, com direito a um pôr-do-sol privilegiado em um dos cartões postais da capital baiana. “Era um lugar de encontro de toda forma de arte”, diz Carla Urbanetto, uma das proprietárias do local, assim, no passado, porque a sua foi uma das livrarias que fecharam as portas durante a pandemia no Brasil. As vendas online não foram suficientes para cobrir os custos do espaço físico e agora o Porto dos Livros existe apenas na internet. “Não tivemos alternativa a não ser vender pelo site e pelo Instagram. Ainda fazemos os saraus de forma online, mas não é a mesma coisa. Não é fácil viver de livro e vender livro no Brasil”, lamenta Urbanetto, ao telefone.

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A história do Porto dos Livros é um exemplo de como a pandemia agravou a crise que o mercado editorial e livreiro no Brasil arrasta nos últimos anos, principalmente com os processos de recuperação judicial das redes Saraiva e Cultura —que eram responsáveis por até 80% do faturamento das editoras, segundo as fontes ouvidas pelo EL PAÍS—. Agora, novas pressões somam-se ao caldo de dificuldades do setor: de um lado, a Amazon, que tornou-se uma das maiores revendedoras de livros no país, pressiona as editoras por mais descontos; do outro, a Receita Federal propõe acabar com a isenção de impostos sobre livros, considerando tratar-se de itens consumidos principalmente por uma parcela mais rica da população.

Foi justamente durante a quebra das grandes redes de livrarias que surgiu, em 2019, a Mandarina, uma livraria de rua em São Paulo, no bairro de Pinheiros, focada em obras sobre humanidades, poesia e literatura nacional e estrangeira. “Quando completamos oito meses, a pandemia se instalou. Aí, passamos a realizar cursos online e mantivemos nosso clube de leituras de modo virtual. Por sorte, já havíamos fidelizado uma clientela”, conta Daniela Amendola, sócia da Mandarina ao lado de Roberta Paixão. Apesar disso, elas tiveram que criar, em março, uma campanha nas redes sociais para manter em funcionamento a casinha com um charmoso quintal onde funciona a Mandarina. “Conseguimos negociar com as editoras e manter o negócio. Uma livraria de rua sobrevive a qualquer coisa desde que exista proximidade e conversa com editoras, autores e leitores”, afirma Amendola, que sempre teve o sonho de ser livreira, seguindo os passos do avô, João Amendola, considerado o primeiro livreiro da cidade de Campinas (SP).

Roberta Paixão (à esquerda) e Daniela Amendola (à direita), donas da livraria Mandarina, em São Paulo.
Roberta Paixão (à esquerda) e Daniela Amendola (à direita), donas da livraria Mandarina, em São Paulo.Pétala Lopes

São essas pequenas livrarias e editoras as mais afetadas pelas práticas comerciais mais agressivas no mercado. No dia 10 de março, a Amazon enviou um e-mail a diversas editoras sugerindo que ofereçam descontos entre 55% e 58% sobre o preço de capa dos livros, além de uma taxa de 5% para a publicidade das obras na plataforma —a praxe é oferecer entre 45% e 55% de desconto, mais 2% ou 3% para marketing—, o que gerou uma resposta conjunta do setor. “Hoje as editoras lucram, no máximo, 4% em relação à receita líquida. A Amazon pede descontos de até 8% da receita líquida, é impossível atender essa imposição. Ninguém em sã consciência acredita que seria possível repassar isso no valor do livro para o consumidor”, explica Henrique Farinha, presidente da editora Évora e porta-voz da iniciativa Juntos pelo Livro, composta por 130 pequenas e médias editoras. Todas elas enviaram à Amazon uma carta na qual afirmam ser inviável conceder descontos maiores, pois “as condições solicitadas estão muito além das nossas possibilidades”. A gigante tecnológica afirma, em nota, que não comenta acordos específicos com seus parceiros comerciais e que “autores, editores e livreiros trabalham juntos para conectar os leitores aos livros”.

Se em outros países, principalmente na Europa, já faz anos que a Amazon “ameaça” acabar com as livrarias de rua, no Brasil, esse fenômeno é recente, conforme explica Marisa Midori, professora especialista em História do Livro da Universidade de São Paulo (USP). “O movimento de venda de livros por e-commerce ainda era incipiente no Brasil antes da pandemia. A Amazon tinha chegado com timidez, mas, a partir do ano passado, ganhou mais terreno rapidamente. As condições que oferece são boas para grandes editores, mas não para as menores”, avalia.

A pressão por mais descontos, no entanto, não é exclusividade das vendas online e tampouco foi inventada pela multinacional, conforme conta Ivana Jinkings, publisher da Boitempo, editora que também participa do Juntos pelo Livro. “Sempre tivemos o cuidado de não concentrar muito nossas vendas em uma só livraria, porque as grandes redes faziam o mesmo que a Amazon faz hoje, e me orgulho em dizer que a gente não caía nesse tipo de chantagem. Elas ameaçavam não comprar mais com a gente se não aumentássemos os descontos. Ficavam duas semanas sem comprar, mas depois voltavam”, relata. Jinkinks reconhece, no entanto, que a plataforma virou uma “grande tábua de salvação” para algumas editoras, uma vez que a empresa chega a oferecer pagamentos à vista, quando a praxe em algumas livrarias é pagar em até dois meses ou mais.

A esperança do preço fixo

O preço é o principal fator de decisão na escolha de um título e influencia 22% dos leitores brasileiros na hora da compra de livros, de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. Os dados também mostram que cerca de 27 milhões de brasileiros da classe C consomem livros, número que contraria a tese de Paulo Guedes, ministro da Economia, de que apenas os ricos leem livros no país. Esse é o argumento usado para justificar a incidência da alíquota de 12% referente à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) apresentada na Reforma Tributária que tramita no Congresso —a venda de livros e do papel destinado à impressão é imune à cobrança de impostos, segundo determina a Constituição, e uma lei de 2014 concedeu isenção de Pis e Cofins sobre a receita da venda de livros e do papel usado para a fabricação desses produtos—.

Em um recorte socioeconômico, a pesquisa revela um paradoxo entre as classes sociais: A e B têm níveis mais altos de leitura do que C, D e E, mas também tiveram as maiores quedas entre 2015 e 2019: enquanto o número de leitores diminuiu 12% na classe A e 10% na B, a queda entre D e E foi de apenas 5%. No mesmo período, os preços dos livros caíram em 20%, apesar do aumento do preço do papel e do fechamento das grandes livrarias, como mostra o balanço de mercado feito pela Nielsen Books. “Não tem lógica impor tributo a um setor que gerou redução de preço para o consumidor. Além disso, a tributação geraria um efeito bumerangue para o próprio Governo, que é o maior comprador de livros didáticos no país, sendo responsável por metade das vendas do setor”, explica Henrique Farinha. Em 2019, o Governo federal gastou 1,1 bilhão de reais para adquirir 126 milhões exemplares no PNDL (Plano Nacional do Livro Didático).

Para Marisa Midori, o tributo geraria uma arrecadação “ínfima”, já que, segundo ela, “o Brasil está longe de ser uma potência editorial”, setor que contribui com menos de 0,1% do PIB nacional. “Se o Governo quer engordar o Tesouro, deveria criar estratégias para, de fato, taxar os mais ricos, como o imposto sobre grandes fortunas. Na Suíça, esse imposto tem impacto de 11% na arrecadação. Na Noruega, esse impacto corresponde 7%”, exemplifica a especialista.

Midori considera que o imposto sobre os livros teria, isso, sim, um impacto simbólico, já que o país ainda está em formação de leitores. “É uma mostra de que o Governo se recusa a amparar a população do ponto de vista da educação e da cultura”. Daniel Lameira, um dos sócios da editora Antofágica, concorda. “A proposta não visa um ganho tributário, é apenas um ataque a um setor que forma massa crítica”, diz. Lameira acrescenta ainda que o aumento nos preços de livros, caso a tributação fosse aprovada, aumentaria a pirataria e complicaria a diversidade literária, afetando o mercado nacional como um todo. “As editoras nacionais perderiam terreno para aquelas estrangeiras, como a Planeta [espanhola] e a Harper Collins [norte-americana]”, explica.

O publisher da Antofágica, que publica clássicos da literatura em edições especiais ilustradas artistas —um cuidado estético também presente na escolha de fontes e na diagramação de cada obra— também contesta o argumento de que apenas ricos leem. Com títulos que custam até 70 reais, Lameira arrisca dizer que o leitor e cliente da sua editora pertence, majoritariamente, às classes C e D. “É um leitor que responde muito bem às promoções. Por isso, fazemos uma pré-venda agressiva, em que um livro de 70 reais sai por 30 reais. Em uma outra ação, vendemos 70 mil e-books por 25 centavos, um preço meramente simbólico”, conta.

Todos os publishers, livreiros e especialistas ouvidos nesta reportagem concordam que uma medida que ajudaria a desafogar o setor seria a aprovação do Projeto de Lei do preço fixo do livro, que propõe que todas as livrarias (físicas e virtuais) poderão oferecer no máximo 10% de desconto em uma título durante o primeiro ano após o seu lançamento. Depois disso, caberia a cada loja decidir oferecer descontos superiores. De autoria do senador Jean Paul Prates (PT/RN), o projeto de lei —similar ao aplicado em países como a França— está estacionado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado desde 2017.

“Essa medida serviria justamente para barrar políticas agressivas de empresas como a Amazon, que, muitas vezes, vende mais barato que a própria editora. O mais grave é esse tipo de política pode ditar o que se publica, porque se eles só compram determinado tipo de livro, os demais podem deixar de existir”, diz Ivana Jinkings.

Sobrevivência graças às redes

Apesar de o mercado editorial e livreiro depender quase exclusivamente de tinta e papel —a última pesquisa sobre as vendas de e-books no país, divulgada em 2017, mostrou que os livros nesse formato correspondiam a apenas 1,09% do setor— é no mundo digital que está chance de sobrevivência das pequenas editoras e negócios livreiros. Foi precisamente da inquietude sobre como se comunicar com o público que nasceu a Antofágica, em 2019, criada por sócios que trabalharam durante anos em editoras como Intrínseca e Aleph.

“Antes, as editoras não precisavam falar com o leitor, mas isso mudou. Queríamos ser menos como um varejista que só vende um produto e mais como uma editora que cria experiências para o leitor”, diz Lameira. Por isso, a editora mantém um grupo com leitores no Telegram, e alguns títulos vêm com QR codes que levam a aulas online sobre aquela obra. “É essa relação com o leitor que pauta as decisões editoriais. O fato de a quarta capa de cada livro ser apenas uma frase, por exemplo, foi pensado para o formato dos stories do Instagram. A escolha dos títulos passa por isso, toda a estética foi pensada para a dinâmica de redes”, acrescenta Lameira. Curiosamente, os livros da Antofágica podem ser comprados apenas na Amazon ou em livrarias independentes.

Na livraria Simples, localizada em uma charmosa casinha azul no centro de São Paulo, a presença nas redes sociais tem sido fundamental para manter o funcionamento da loja. “Tivemos que migrar para a venda online por conta da pandemia. Até abril do ano passado, sequer tínhamos um site institucional”, conta Beto Ribeiro, dono da Simples. Agora, à medida que vai registrando as entradas de livros no catálogo da livraria, ele mesmo já vi postando fotos e vídeos das obras para gerar interação com os leitores. “Essa comunicação é um diferencial, mas é um trabalho quase artesanal e que demanda muito tempo e dedicação. Às vezes, você troca mais de dez mensagens com um cliente para fechar a venda de um livro de 15 reais”, explica. Ribeiro acrescenta ainda que o que tem “segurado o rojão” da crise —para ele e outras fontes ouvidas na reportagem— é o espírito de comunidade em torno das livraria de rua, a fidelização dos clientes. “É só com os leitores que podemos contar”, conclui.


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